Lobisomens Reais: Gilles Garnier e Jean Grenier

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Um intenso arranhar na parte inferior da porta o faz questionar se aquilo poderia ser um cachorro em busca de abrigo. O som das unhas passando sobre a madeira, ainda mais forte, agora é acompanhado do rugido agressivo do animal. A janela da cozinha não traz respostas, principalmente pela falta de claridade artificial, o que esconde o insistente visitante e sua angústia pela necessidade de atravessar a barreira. Se aquela lua branca, vívida e circular como o farol da ilha, pudesse emprestar sua iluminação constante, talvez a misteriosa criatura pudesse se revelar.

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Lobisomens são o mote de um subgênero bastante apreciado pelos fãs de horror. A insconsciência, somada a uma triste maldição, conduz leitores e espectadores a uma simpatia natural pelas criaturas. E, como todos sabem, muitas histórias que originaram filmes e obras foram baseadas em relatos cruéis de canibalismo noturno, ataques vorazes de crianças e incautos, muitas vezes associados a doenças de ordem psicológica. Conheça o relato de dois casos franceses bem curiosos, principalmente pela proximidade das datas e da coincidência das vítimas, sempre crianças, indefesas e ingênuas como a Chapeuzinho Vermelho, uma das criações do escritor e poeta Charles Perrault (1628-1703), que, nem precisava dizer, era um francês – provável testemunha auricular desses acontecimentos.

Gilles Garnier
Em pleno século XVI, no pequeno vilarejo de Dole, na França, normas foram estabelecidas num escrito divulgado na praça principal. Nele, havia a autorização oficial de que os cidadãos pudessem caçar e matar um lobisomem que estaria aterrorizando a região. Armado, um grupo invadiu as densas florestas das proximidades em busca do inimigo sobrenatural, até ouvir um uivo cortante e o grito desesperado de uma criança. A visão não podia ser mais assustadora: ferido, o pequeno lutava com todas as suas forças com uma monstruosa criatura, identificada mais tarde como Gilles Garnier.

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Depois que um menino de dez anos desapareceu nas vizinhanças de Garnier, não houve dúvidas: ele foi preso e logo confessou ser um lobisomem. Ele seria queimado numa estaca, sob a acusação de licantropia e bruxaria, condenado à morte em 18 de janeiro de 1573, e encerrando o pesadelo nas cercanias. Sua pena não envolvia o tribunal da Inquisição, mas um julgamento próprio da região. Testemunhas diziam vê-lo em forma humana e outras vezes no que os franceses chamam de “loup-garou“.

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Durante sua confissão, Garnier disse que, durante uma busca à noite por comida na floresta, ele e sua esposa foram surpreendidos por um espectro. A assombração teria oferecido ao casal a possibilidade de adquirir comida, caso o homem optasse por se transformar em lobo. Depois de aceitar a proposta, Garnier teria matado pelo menos quatro crianças, com a idade variando entre 9 e 12 anos. Sua primeira vítima foi uma menina de 10 anos, em outubro de 1572, atacada num vinhedo, fora de Dole. Ele a estrangulou, tirou suas roupas, alimentou-se e levou carne fresca para sua esposa. Semanas depois, ele tentaria fazer o mesmo com outra menina, mas, devido a aparição de algumas pessoas, teve que abandoná-la no local, com apenas algumas mordidas. A menina morreria dias depois. Em novembro, um garoto de dez anos seria morto por Garnier, deixado com marcas de mordidas na perna e na barriga e sem uma perna, levada para comer mais tarde. Sua quarta e última vítima, também um menino, fora abandonada pelo homem-lobo por um grupo que passava no local.

Jean Grenier
O sumiço de crianças durante a primavera de 1603 no sudeste da França, em St.Sever, conduziu os cidadãos do vilarejo a uma onda de horror. Num dos casos, um bebê simplesmente desaparecera do berço, poucos instantes depois que sua mãe havia deixado-o para dormir. Muitos falavam sobre as ações de lobos na região, enquanto outros, apresentavam teorias ainda mais assustadoras. Elas gelavam os ouvintes pelas possibilidades cada vez mais concretas: diante do magistrado local, três testemunhas foram ouvidas, como uma menina de 13 anos chamada Marguerite Poirier, da aldeia de St. Paul na Paróquia de Esperons, que jurou que na Lua Cheia havia sido atacada por uma besta selvagem, muito parecida com um lobo. Nos relatos, ela conta que enquanto observava seus gados, viu uma criatura selvagem, repleta de pelos, como um cão imenso, sair do mato e rasgar seu vestido com seus dentes afiados. Ela só se safou do ataque porque no momento estava com uma bengala de metal nas mãos e inconscientemente o utilizou para se defender. O monstro, com uma cabeça pequena demais para ser um lobo, se afastou por cerca de dez ou doze passos, o suficiente para que a pequena pudesse fugir.

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Marguerite conhecia o jovem Jean Grenier muito bem. Por diversas vezes, Jean havia relatado que se transformava em lobo e que havia matado alguns cães e bebido seu sangue. Em uma oportunidade, confessou ter devorado uma criança, até o momento que deixou os restos para outros lobos se alimentarem, assim como também uma garota, quase completamente devorada, restando apenas seus ombros e suas costas.

Outra testemunha, a garota de dez anos Jeanne Gaboriout, disse que, enquanto recolhia o rebanho com outras meninas, Jean Grenier se aproximou e perguntou se aquelas pastoras eram as mais bonitas. Ao questionar o motivo, Jean teria dito que seu desejo era se casar com uma e que se fosse possível até mesmo com ela. Jeanne perguntou sobre o pai de Jean e ele disse que ele era um padre. Curiosa, a garota ainda insistiu em querer saber porque ele tinha a pele escura, se era por causa do frio ou calor, tendo como resposta o fato dele estar usando uma pele avermelhada de lobo. Esse tecido teria lhe sido dado por Pierre Labourutt, alguém que usava um colar de ferro, e que mantinha em sua residência várias pessoas, queimadas, expostas como se tivessem sido assadas em grandes fornos. Quando ele colocava a pele de lobo, era capaz de se transformar na criatura ou no que ele quissesse.

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Jean admitiu ter adquirido o mesmo hábito, iniciando seus ataques a cães até perceber que o gosto não era bom, tanto quanto o de uma criança. Ele se transformava em lobo às segundas, sextas e sábados, sob o luar, por apenas uma hora ao dia. Ele vagueava pela região com outros nove iguais a ele, sempre nos mesmos dias e horários. Tais informações foram suficientes para ocasionar sua prisão e interrogatório, onde ele admitiu ter matado mais do que estava sendo acusado.

Com riqueza de detalhes, o garoto disse ter adquirido uma marca, feita por ferro, de um mestre, indicado por uma pessoa da floresta. E que a partir desse encontro, por cerca de três ou quatro anos, ele teria se encontrado com o tal mestre e participado de treinamentos estranhos como se alimentar de cavalos até chegar às vítimas. Algumas foram atacadas na “forma humana“, enquanto outras, com a tal pele do lobo, dada pelo Senhor da Floresta. Entre seus atos confessos, ele dizia que costumava tirar as roupas das pequenas antes de se alimentar do sangue e da carne – o que contradizia qualquer possibilidade do ato ter sido inconsciente ou realizado por um animal.

Durante as investigações, o pai de Grenier, Pierre, também foi preso como cúmplice dos crimes. Negou durante um tempo, mas acabou confessando ter participado de muitas das orgias de sangue, sob a luz do luar. Como pena pelos crimes, tendo o tribunal admitido que o tal Senhor da Floresta seria o próprio Diabo, Jean acabou sendo encarcerado num monastério para o resto da vida; enquanto Pierre Granier e Pierre Labourutt enfrentariam um outro julgamento um tempo depois.

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Depois de Grenier encontrar seu destino no monastério, durante um tempo, algumas pessoas juravam ter visto uma criatura, parecida com um cachorro, matar pessoas e animais nas proximidades. Jean Grenier morreu no local, em 1610, quando os ataques finalmente se cessaram.

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Marcelo Milici

Professor e crítico de cinema há vinte anos, fundou o site Boca do Inferno, uma das principais referências do gênero fantástico no Brasil. Foi colunista do site Omelete, articulista da revista Amazing e jurado dos festivais Cinefantasy, Espantomania, SP Terror e do sarau da Casa das Rosas. Possui publicações em diversas antologias como “Terra Morta”, Arquivos do Mal”, “Galáxias Ocultas”, “A Hora Morta” e “Insanidade”, além de composições poéticas no livro “A Sociedade dos Poetas Vivos”. É um dos autores da enciclopédia “Medo de Palhaço”, lançado pela editora Évora.

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