A Freira e a Tortura (1983)

3.5
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A Freira e a Tortura (1983)

A Freira e a Tortura
Original:A Freira e a Tortura
Ano:1983•País:Brasil
Direção:Ozualdo Ribeiro Candeias
Roteiro:Ozualdo Ribeiro Candeias, Jorge Andrade
Produção:David Cardoso
Elenco:Claudia Alencar, David Cardoso Jr., David Cardoso, James Cardoso, Natanael Coragem, Elizabeth de Luiz, Lígia de Paula, Milton Donara, Sonia Garcia, Vera Gimenez

Dez anos depois de Caçada Sangrenta Ozualdo Candeias lança um curioso filme repleto de características singulares no que se refere a mistura de gêneros e subgêneros: A Freira e a Tortura. Produzido e protagonizado por David Cardoso, o filme tem como destaque do elenco a atriz Vera Gimenez no papel de uma freira ligada a uma espécie de pastoral das favelas ligada a grupos de esquerda em plena Ditadura Militar no Brasil. Vemos inicialmente a mulher religiosa vestindo o hábito tradicional que cobre seu corpo deixando somente seu rosto a mostra. Ela percorre ambientes sórdidos, com prostitutas doentes e um clima de tensão e violência no ar. Em seguida começa um trabalho com os habitantes de uma favela na periferia de São Paulo, vestindo roupas convencionais ela transita entre os barracos mostrados de maneira realista, sem efeitos de fotografia encobrindo a realidade daquele ambiente e as pessoas marginalizadas que o habitam.

Com sutileza, Candeias fala de política sem ser panfletário e mostrando ao espectador sua visão muito honesta da miséria, sem recursos maniqueístas. O encontro entre a freira com o agente da repressão política, interpretado por David Cardoso, revela mais uma vez a capacidade de Candeias em extrair de atores marcados por um estereótipo, como David Cardoso e Vera Gimenez, atuações fortes e contundentes. Cardoso encarna um torturador escroto, vulgar, ameaçador. Sua relação com a freira interpretada por Gimenez é marcada por uma crescente tensão sexual que será encenada até o final do filme. Na prisão, clandestina, a freira testemunha as atrocidades e aberrações daquele espaço hermético do cárcere. Além da imagem de Gimenez com o hábito de freira, que insere na trama elementos do Nunexploitation, vemos a rotina de torturas e práticas sexuais encenadas na prisão com mulheres aprisionadas, que nos remetem aos clássicos WIP. Candeias assim mistura subgêneros e os recria mostrando sequências de um anti-erotismo que beira o grotesco com figuras masculinas e femininas desnudando corpos repletos de fealdade e abjeção.

A Freira e a Tortura (1983) (1)

A tensão central de A Freira e a Tortura fica mesmo em torno da relação de atração e repulse que nasce entre o carrasco, e sua vítima aprisionada. Cardoso usa a sexualidade como arma de seu personagem torturador para derrubar psicologicamente sua vítima que por ser freira teme ter sua virgindade violada. Esse clima de assédio sexual ligado à tortura e o suspense da entrega da freira que aos poucos deseja seu torturador conseguem conduzir bem o filme até seu alegórico final. Vemos Cardoso se desnudando explicitamente diante de Gimenez como demonstração de força. O desejo se realiza posteriormente em uma situação limite, encenada de maneira realista em uma ruína próxima a uma ferrovia. Ao optarem pela entrega ao amor e o desejo, o casal de protagonistas sabe que está condenado ao abismo…

O filme tem como curiosidade uma inusitada cena de sexo entre homens rapidamente encenada durante uma orgia, numa das celas da prisão. Candeias ousa não só por tratar dessa questão de explicitar a homossexualidade masculina, um tabu até hoje no cinema brasileiro, mas também ousa por falar abertamente de tortura e repressão política em uma época de transição pela qual o Brasil passava no momento em que o filme foi lançado.

A Freira e a Tortura (1983) (2)

Com relação ao final alegórico temos um momento onde explicitamente elementos do Nunexploitation se revelam, na cena em que Vera Gimenez despe o hábito de freira para se lançar num idílio onírico com o amante também despido. Candeias parece acreditar nesse momento no grande poder redentor da natureza como único espaço possível para a plena liberdade dos seres em busca de seu gozo.

Menosprezado por alguns, aclamado como grande obra por outros, A Freira e a Tortura vai além de um possível título erótico da longa produção de David Cardoso na Boca do Lixo de São Paulo. O filme surge como uma ruptura nessa produção de Cardoso que tem nesse filme seu grande trabalho de ator. Detalhe interessante é a presença de seu filho David Cardoso Junior no papel do filho de seu personagem que nos intervalos das sessões de tortura vive uma pacata vida familiar.

A Freira e a Tortura (1983) (4)

Candeias não humaniza a figura do torturador, pelo contrário, mostra essa criatura como um burocrata que faz o “trabalho sujo” na manutenção do que o Governo Militar chamava de “Segurança Nacional”. As imagens de grande força dramática de A Freira e a Tortura foram fotografadas pelo próprio Candeias que acumulou as funções de diretor do filme e também de fotógrafo.

As figuras grotescas que encenam as orgias são um capítulo a parte dentro do filme. Corpos isentos de sensualidade, encenações over e situações bizarras acentuam o caráter grotesco dessas encenações “anti-eróticas”. Um filme que merece ser visto com olhos isentos de preconceitos para descobrir as muitas qualidades desse grande trabalho de Ozualdo Candeias.

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Marcelo Carrard

Marcelo Carrard é Jornalista, Pesquisador e Crítico de Cinema e Editor do Blog: Nudo e Selvaggio.

14 thoughts on “A Freira e a Tortura (1983)

  • 28/08/2023 em 13:37
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    Muito bom o seu texto! Acredito que a personagem da freira sofreu de síndrome de Estocolmo ao se relacionar com o carrasco. Acontece muito em cárceres. Nunca li o livro para saber se realmente é isso,mas me parece a única explicação razoável visto que como vc mesmo disse,o personagem de David não é humanizado. Então,como a freira iria se seduzir por um carrasco tão facilmente né?
    Eu gostei muito deste filme e merece mais destaque nas discussões sobre ditadura e cinema.

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  • 20/06/2019 em 12:23
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    Assisti ontem no canal brasil e confesso que adorei…de fato retrata aquela época como ninguém! Um Cult na minha opinião

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  • 11/09/2018 em 14:32
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    Até onde eu sei,apesar da Censura já ter se afrouxado,o filme teve alguns problemas para ser liberado.O texto está muito bem escrito.

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  • 25/12/2017 em 17:52
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    Marcelo, faltou informar que o filme é baseado na peça “O Milagre da Cela” de Jorge Andrade.

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  • 29/09/2017 em 17:04
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    Em 83 a ditadura já estava frouxa mano, se atualiza

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  • 29/09/2017 em 11:14
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    Tenho quase certeza que pela ideologia politica de muitos colaboradores do Boca serei ‘censurado’, mas preciso pergunta, como diabos um filme com ESSE CONTEUDO, foi liberado pela tal “Ditadura Militar” brasileira, tão firme, malvadona e cruelzona???

    Serio, Como Caldeiras meteu ESSE FILME na goela dos Censores?

    Propina???
    Funcionalismo público ruim???
    Ou todo o rigor da censura e da ditadura são um “mito esquerdista”??

    Nasci no exato ano desse filme, e logicamente não sei como funcionava o país na época, porem, tudo que aprendi na escola contrasta com um governo ou país que permitiria um filme desses, por isso pergunto, dos três motivos que coloquei, qual foi o que levou esse filme aos cinemas ou se houve um quarto, qual foi?

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      29/09/2017 em 12:41
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      Não tem por que você ser “censurado” se está conversando numa boa, Marcos 😉

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    • 25/12/2017 em 18:32
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      Marcos, sem querer soar mal educado, antes de escrever aberrações do tipo “como diabos um filme com ESSE CONTEUDO, foi liberado pela tal “Ditadura Militar” brasileira, tão firme, malvadona e cruelzona???” e “Ou todo o rigor da censura e da ditadura são um “mito esquerdista” “, faça como eu fiz ao ler à critica do Marcelo e o seu comentário: obter informações à respeito do filme, Censura e Abertura, esta última feita de forma lenta, gradual e segura.

      Não vou me alongar, por aqui não é lugar, mas vou citar algo que descobri em alguns minutos: o filme possuía uma citação crítica ao governo Médici, que foi cortada da montagem final pelo produtor.

      O problema de muitos internautas a meu ver, é preguiça de pesquisar à respeito de um assunto do qual possuem pouca informação. Quando eu sei pouco sobre o assunto, eu pesquiso à respeito em várias fontes, que é o melhor jeito de se informar.
      Um abraço.

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      • 05/06/2018 em 20:56
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        Rapaz usei as Aspas = (“”), nesses termos justamente para não ofender e nem tomar partido de ninquem, mas pelo visto não funcionou com você, mesmo que ironicamente você também tenha usado as aspas do mesmo jeito que usei.

        P.S: Mais interpretando a tua resposta, acredito que o mais perto das opções que eu dei seja justamente a terceira, ou seja, o governo NESSE ANO pelo menos, de 1983, já não era mais tão violento, porem, mesmo assim, é incrível que se HOJE EM DIA, o roteiro e a sinopse do filme seriam bastante polêmicos, e poderiam ate gerar muita animosidades, vejam só, tudo isso se fosse feito hoje em dia… Imagino como foi numa época onde a população nem podia votar diretamente no governo e onde é FATO que existiam censores como você mesmo confirmou no seu comentário… Apesar de não parecer meu questionamento também tem uma profunda admiração pelo diretor conseguir rodar, e exibir um filme desses naquela época.

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    • 31/12/2020 em 23:58
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      Marcos, na vdd foi um pouco de td. Entenda, à época o sistema já estava menos rígido, mas sobretudo bem familiarizado com o estilo pornochanchada nacional. Era nítido tb q os militares ñ só ñ se importavam tanto com o “pornoerotismo” nesses filmes, como penso eu q no fundo eles até curtiam. Naquela época ñ existia acesso à pornografia/erotismo em vídeo se não fosse importando filmes estrangeiros, mas msm assim era difícil ter tda aparelhagem necessária pra rodá-los de forma privada/individual. Então só msm em revistas de papel e slides (mas msm este precisava de um aparelho gigantesco). Então os filmes pornochanchada atendiam basicamente a uma demanda menos cultural e mais fisiológica da sociedade, sobretudo do povão em geral (apesar de reconhecer q até msm nesse gênero existam verdadeiras obras primas). Qd se pensava em filme com conteúdo era quase sempre estrangeiro. Penso q o sistema, dirigido em sua maioria por homens, entendia essa demanda fisiológica e nesse quesito dava uma bela afrouxada. Valia quase td desde q ñ existisse ideologia política, mas claro q às vezes até nisso passava alguma coisa. Vale lembrar que no msm período eram liberados os “cinemas pornôs”, locais onde as pessoas iam assistir só filmes pornográficos de tds os estilos, inclusive gay. Às vezes até na hora do almoço de trabalho, não sendo incomum os espectadores se masturbarem num cantinho escuro (isso era proibido, mas acontecia em mtos lugares). Esse panorama só veio mudar no início dos anos 90, com a abertura do mercado, a popularização do videocassete e a facilidade das fitas VHS com pornografia de tds os tipos. Td isso associado à criação da lei Rouanet de incentivo à cultura, que ajudou a revitalização do cinema brasileiro no regime pós militar. Assim acabou a pornochanchada e foram separados cinema desse “pornoerotismo” no Brasil. Posterior à isso, por volta de meados da década de 2000 a cultura do “Politicamente Correto” (na qual vivemos até hj) se fortaleceu no brasil, influenciada pela globalização na mídia e pela chegada da internet. E é por já estarmos tão impregnados por ela q sobretudo pra quem não viveu esses tempos antigos é tão difícil entender como obras como essa podem ter sido exibidas num período de repressão, qd hj sequer seriam produzidas/aceitas. Espero tê-lo ajudado e a quem mais tenha lido esse meu texto!!

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  • 24/11/2014 em 19:53
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    e tambem lançado em VHS pela extinta CIC VIDEO la nos anos 80 na Coleção ” Edição Nacional ” varios filmes nacionais foram lançados por esta distribuidora .

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  • 21/11/2014 em 19:54
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    Lançado pela mesma Amazonas que primeiro lançou os filmes do Zé do Caixão e alguns antigos do Polanski. Curioso que encontrei o dvd num hipermercado há poucas semanas e agora vejo essa matéria!

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