A Literatura complexa e reflexiva de Philip K.Dick

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Perdido em visões enevoadas de uma realidade arquetípica de protoforças cósmicas latentes no universo temporal
Perdido em visões enevoadas de uma realidade arquetípica de protoforças cósmicas latentes no universo temporal

“No início do século XXI a Tyrell Corporation criou os robôs da série NEXUS. Virtualmente idênticos aos seres humanos, eram chamados de replicantes. Os replicantes NEXUS-6 eram mais ágeis e fortes e no mínimo tão inteligentes quanto os engenheiros genéticos que os criaram. Eles eram usados fora da Terra como escravos em tarefas perigosas da colonização planetária. Após o motim sangrento de um grupo de NEXUS-6 os replicantes foram declarados ilegais, sob pena de morte. Policiais especiais – os blade runner’s – tinham ordens de atirar para matar, em qualquer replicante. Não se chamava isso de execução, chamava-se retirada”
(Blade Runner, O Caçador de Andróides, 1982)

2002 também foi um ano significativo para a ficção cientifica. Entre inúmeros aniversários importantes, lá se foram dez anos da morte de Isaac Asimov, autor que deixou uma das obras mais volumosas e significativas tanto na ficção quanto na divulgação científica. E lá se foram também vinte anos cravados que Philip K. Dick (nascido em 1928) deixou esse mundo, para, quem sabe, estar “perdido em visões enevoadas de uma realidade arquetípica de protoforças cósmicas latentes no universo temporal” (“Clãs da Lua Alfa“, 1964); e, como ele veio a falecer justamente durante a montagem final do filme Blade Runner, O Caçador de Andróides, baseado em obra sua, tivemos, também, o aniversário deste que é considerado o segundo melhor filme de ficção cientifica de todos os tempos.

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A despeito desse fato, entretanto, na época em que foi lançado, grande parte de crítica e público não compreendeu a profundidade do filme e virtualmente o abandonou, para vir a redescobri-lo muitos anos mais tarde e a amá-lo como a um “cult“. E talvez esse fato se justifique (pelo menos em partes), pois somente no começo dos anos de 1990 é que foi descoberta a versão original do final, aquela que Ridley Scott (o diretor) foi proibido de utilizar na montagem que seria levada às telas (ele teve de fazer uma versão alternativa, mais “soft“, devido à pressão dos produtores).

Essa versão alternativa não agradava ao diretor e nem mesmo aos atores envolvidos com a produção (incluindo Harrison Ford, o cabeça do elenco), mas, por motivos comerciais, ela teve de ser utilizada. Só depois que a versão original misteriosamente apareceu, em 1991, é que se percebeu como era medíocre e patético aquele final tipicamente hollywoodiano que os produtores impuseram; além de quebrar toda a dramaticidade da história, esse final (feito com sobras de O Iluminado,1980, de Stanley Kubrick), funcionava unicamente como um verdadeiro anticlímax, sem deixar margem para qualquer tipo de especulação (somente pode perceber isso quem sente um arrepio na espinha quando Deckard, o personagem central, antes de entrar no elevador com Raquel, para seguir adiante num futuro completamente indeterminado, pisa naquele unicorniozinho de papel: nunca um elemento tão insignificante significou tanto).

O Caçador de Andróides” (“Do Androids Dream of Eletric Sheep?”, 1968) foi o primeiro livro de Philip K. Dick que tive a oportunidade de ler (talvez por ser o mais fácil de se encontrar nesse país de oportunismo comercial acima de qualquer suspeita) e desde então caí fascinado pela obra desse autor complexo e definitivamente inovador. Embora nem se compare a Asimov no aspecto produtivo, Dick é igualmente idolatrado não só nos Estados Unidos, mas em todo mundo. Em vida, não foi levado muito seriamente, é verdade, mas bastou morrer para virar uma espécie de culto entre os amantes do gênero. Principalmente depois do lançamento do filme de Scott, que, a exemplo do também fascinante Alphaville (1965), de Jean Luc Godard, é um dos poucos “sci-fi noir” legítimos, a despeito do fato de ser ambientado numa sufocante megalópole cyberpunk que é a Los Angeles de 2019.

É verdade que Dick não foi um inovador absoluto, partindo do nada para remodelar os parâmetros de um gênero que, de certa forma, caminhava numa mesmice crescente. Quem lê as obras definitivas de Theodore SturgeonAlém do Humano“, “O Homem Sintético” e “Vênus mais X” sabe do que estou falando quando me refiro ao tipo de inovação que Dick iria propor em sua obra (Sturgeon foi, ao que parece, o primeiro dos autores da velha guarda da FC americana a fazer a transição da chamada era clássica – voltada aos aspectos “hards“, tecnológicos – à nova geração, ao “soft“, de preocupação psicológica e interior; Heinlein veio depois). Mas o fato é que Dick – um dos legítimos frutos diretos dessa nova era – foi o primeiro a se aprofundar verdadeiramente nestes aspectos mais obscuros e ignorados da ficção científica, ali ficando até morrer. Ao contrário de muitos outros autores, ele não quis se projetar para fora, mas para dentro do ser humano, fato que o tornou um dos verdadeiros pais da camada “New Wave” no início da década de 1960.

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Por trás de seus fascinantes robôs indagadores e seus famosos conflitos de realidade ou jogos de paranoia se escondia uma complexidade quase sobre-humana de indagações filosóficas e metafísicas. Ao longo de seu trabalho, e ainda que de maneira completamente desorganizada, Dick explorou à exaustão todas as possibilidades das questões “realidade” e “não-realidade“, ou os diversos modos como ambas podem ser interpretadas. No famoso “A Formiga Elétrica” (1969), por exemplo, um homem comum acorda um belo dia num hospital e descobre, para seu total espanto, que é um autômato, um simulacro enganado por uma realidade o tempo todo forjada em seus próprios mecanismos vitais. Mas essa não é a maior das surpresas… Em “Identidade Perdida” (1974) ocorre algo semelhante; porém, dessa vez toda a distorção provocada naquilo que parece ser o real é causada pela utilização da poderosa droga KR-3, que não só é capaz de alterar o equilíbrio da realidade de quem a ingere, mas também afetar esse equilíbrio de forma a distorcer tudo ao seu redor, no processo. No brilhante “Se Benny Cemoli não existisse” (1963) a distorção da realidade é causada de maneira intencional pelos personagens, tendo em vista enganar e saciar os interesses inescrupulosos de uma organização de reabilitação da Terra pós-guerra nuclear através de um jornal homeostático, que falsifica informações. Já no desconcertante “Ubik” (1969) a questão é levada às ultimas conseqüências, quando vemos a realidade se desdobrando em facetas inimagináveis, não só do ponto de vista individual, mas também coletivamente, até mesmo após a morte.

Insaciável “descascador de cebolas” que era, com o passar dos anos Dick se aprofunda ainda mais no tema, tornando-o cada vez mais complexo. Se a religião (fenômeno que o fascinava) vinha aparecendo de forma relativamente superficial em suas histórias até então, o mesmo não se daria com os livros que iria produzir a partir de “Dies Irae” (1976), que seria seguido por “O Mistério de Valis” e “Invasão Divina” (ambos de 1981), formando uma espécie de trilogia cujos contornos haviam sido levemente delineados no surpreendente “Labirinto da Morte” (1970), onde lança algumas interessantes ideias a respeito dos mitos divinos e do possível contato.

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Em “O Caçador de Andróides” o conflito de realidade – e suas quase sempre insuspeitas trocas de valores – é trabalhado de maneira mais sutil, quase alegórica, mas presente. Nesse livro, a alienação sub-realística causada pela religião é apresentada na figura messiânica de Mercer (um guru de valores duvidosos, para dizer pouco), que se manifesta a seus seguidores através de uma “caixa de empatia” (uma espécie de televisão inter-dimensional capaz de estabelecer contato físico), fornecendo um sentido para suas existências – um sentido aparentemente enganoso, se não bastasse (mas sempre devemos lembrar que com Dick nada é o que aparenta ser…) Deckard, afinal, pode ter sido enganado por uma realidade falsa e ser um androide; embora esta possibilidade não esteja completamente implícita no romance, é fácil perceber que o autor, bastante afeito a colocar dúvidas e mais dúvidas existenciais em seus personagens, deixa bastante perguntas sem respostas quanto a própria objetividade da trama. A questão é: em quem acreditar, afinal? (e essa pergunta se estende a toda obra do autor). No já citado “A Formiga Elétrica” o autor nos fala, através de seu personagem: “a objetividade não passa de um dispositivo sintético que lida com a universalização hipotética de uma infinidade de realidades subjetivas“.

No glorioso volume de contos sobre robôs “Máquinas que Pensam” (L&PM Editores, Porto Alegre, 1985), organizado por Patricia S. Warrick e Martin H. Greenberg e editado por Isaac Asimov, vemos a seguinte referência:

“Desde a primeira obra que publicou, nos idos de 1950 e poucos, Dick se interessou por invenções cibernéticas e o efeito que produzem sobre criaturas humanas. Ele e Asimov figuram entre os escritores mais prolíficos de histórias de robôs e computadores. Dick se mostra mais pessimista que Asimov ao considerar que o homem há de sempre utilizar a inteligência da máquina com critério, pois, segundo seu ponto de vista, a natureza humana está imbuída de um elemento destrutivo, que a leva, com grande freqüência, a empregar mal o poder que as invenções cibernéticas colocaram a eu alcance. Um dos temas que repete com mais freqüência é o de que o homem se transforma, cada vez mais, na máquina ou robôs criados por ele”.

Gramophones Digitais

O único incômodo de se ler Philip K. Dick atualmente é que ele tinha a incorrigível mania de ambientar suas histórias em futuros demasiadamente próximos. Seus melhores livros foram escritos na década de 1960 e na maioria deles a trama se passa nas décadas de 80 e 90, de modo que seu futurismo complexo e engenhoso, de uma forma ou de outra, acaba caindo no anacronismo – quase cômico – de nosso passado medíocre… O próprio “Caçador de Andróides” é um exemplo: apesar de ser um dos livros mais complexos e imaginativos da ficção científica, com uma das melhores (senão a melhor) especulações sobre eterno conflito homem-máquina, toda a sua trama, se analisada sob critérios “pouco pacientes“, digamos assim, corre o risco de cair na banalidade pelo simples fato de ter sido ambientada no início da década de 1990 do nosso passado – o nosso passado medíocre… Não é à toa que grande parte dos escritores de FC prefere não arriscar na sorte e jogar suas histórias para um futuro longínquo, que proporcione uma dose incalculada de imaginação e possibilite especulações das mais extravagantes na área que tange à tecnologia sem que isso signifique estar pisando terreno pantanoso. (Lembrando que no livro “Do Androids Dream of Eletric Sheep?” o ano em questão é 1992, enquanto no filme a história se passa em 2019).

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Embora Ridley Scott tenha feito um trabalho excepcional, criando um filme que não é só considerado um dos melhores da ficção cientifica, mas também como um dos melhores da história do cinema, é claro que o livro é mais complexo, e acho que não poderia ser diferente. Na “Science-Fiction – The Ilustrated Encyclopedia” (Dorling Kindersley Book, London, 1995), John Clute nos diz que o livro não ficou famoso apenas por causa do filme de Scott, mas única e tão somente pela sua própria complexidade, e ainda aponta Dick com um dos mais influentes autores da América na segunda metade do século XX. Não pela sua “ciência“, é claro, pois o autor sempre foi bastante arcaico neste aspecto, e nunca se preocupou muito com ele, a bem da verdade; mas sim pelas suas ideias, sempre ousadas e conflitantes, sempre interrogativas. Que no “Caçador de Andróides“, entretanto, ele tenha sido incrivelmente moderno do ponto de vista científico, talvez seja pura coincidência. Sim, porque numa época em que as palavras “androides” e “robôs” significavam seres de metal quase sempre feitos para durar indeterminadamente, mais do que ninguém ele se colocou à frente de seu tempo para especular em torno do que hoje não é mistério nenhum: clonagem, inseminação artificial, fertilização “in vitro“, etc. Se suas ovelhas eram elétricas, seus androides eram muito mais que isso. E que o digam os antiquados aparelhos de teste “Voigt-Kampff” (“mais humano que os humanos“, era o slogan). Mesmo na época do filme (começo dos anos 80) essas ideias eram altamente especulativas e, ao contrário do que se vê hoje diariamente, não tinham um contorno definido fora do contexto dos autores de FC. Daí a dúvida: afinal, quem impulsiona quem?: a FC inspira a ciência ou a ciência inspira a FC? Até hoje ninguém conseguiu responder essa pergunta…

Partindo desse princípio sólido e sofisticado por si só, Dick escolheu dois paralelos específicos para desenvolver suas especulações, dois elementos distintos no romance: o primeiro, e mais importante, se refere a desumanização crescente do ser humano em vista de seus poderes de criação; e o segundo, por contraste, a tentativa de retornar à humanidade perdida através do amor tardio aos animais, agora extintos. Trocando em miúdos: o homem aprendeu a criar androides ultra-sofisticados capazes até de superar seus criadores em indagações metafísicas e ao mesmo tempo destruiu grande parte da fauna e flora terrestres, as quais não consegue reproduzir a contento. Portanto, os animais verdadeiros que ainda restaram nesse mundo caótico de poluição e degradação social acima de qualquer controle valem mais – e fácil presumir – que qualquer ser humano. Acabaram por se transformar no mais novo símbolo de status.

Deckard ama os animais, mas tem dificuldades em conseguir um verdadeiro devido aos seus parcos recursos financeiros. Para conseguir um, não vê outra alternativa senão liquidar – ou retirar – um perigoso grupo de androides invasores – os NEXUS-6, proibidos na Terra e utilizados somente nas colônias espaciais, como escravos -, os mais avançados e capazes da Rosen Corporation (no filme é Tyrell Corporation), pelo que seria convenientemente remunerado. Androides que, acuados como verdadeiros animais, acabam por desenvolver um sentido de percepção ainda mais aguçado que o dos humanos verdadeiros – talvez pelo fato de que viverão por apenas quatro anos, após o que serão automaticamente desativados. (René Descartes, o filósofo francês, considerava os animais como meras máquinas pelo simples fato de serem destituídos da “substancia espiritual” – a alma – necessária para dar valor e dirigir um organismo; e aí vem a pergunta: o que esses revoltados androides invasores achariam dessa ideia?…).

As coisas perdem seus valores – ou trocam seus valores – e essa questão dos animais se tornado muito mais importantes do que androides orgânicos inteiramente capazes de compreender o sentido e o significado da existência foi parcialmente abolida na versão em filme de Ridley Scott, assim como a referência a Mercer e à caixa de empatia. O diretor e seus roteiristas Hampton Fancher e David Peoples (com uma mãozinha do próprio Philip Dick, segundo consta) preferiram abordar apenas a primeira questão (a do ser humano se confundindo e perdendo seu status pelos seus próprios simulacros, mais objetivos) e deixar de lado essa espécie de contraste existencial causado pela tentativa de redenção no amor aos animais. No entanto, nessa diferenciação de posturas, o filme ganha pontos por inserir mais explicitamente a ideia – esmagadora – de que o próprio Deckard, afinal de contas, pode ser um androide.

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E Bestas Elétricas

Ou não. Existem dois finais, apesar de tudo, e embora saibamos qual foi a intenção inicial do diretor, a questão perdura. De qualquer modo, sendo ou não um androide, a ideia não dilui o impacto, pois o que presenciamos com mais intensidade é a agonia dos seres artificiais, os “replicantes“, que lutam por uma humanidade que a própria humanidade está desprezando; eles querem algo que está sendo jogado fora e não se conformam de não conseguirem. Percebem que são no mínimo iguais a seus criadores, mas com somente quatro anos de vida, e querem mais. O filme retrata esta situação tão realisticamente que é impossível ficar indiferente com a espécie humana naquela cena (a mais forte) em que o replicante Roy Betty (interpretado magnificamente por Rutger Hauer), após salvar Deckard de se precipitar do alto do edifício, expõe os seus sentimentos da seguinte forma: “Eu vi coisas como vocês nunca acreditariam. Naves de ataque em chamas perto da Borda de Órion. Vi a luz do farol cintilar no escuro, na Comporta Tannhauser. Todos esses momentos se perderão no tempo… como lágrimas… na chuva. Hora de morrer“.

Após lutar com todas as suas forças e todos os seus instintos de sobrevivência o replicante morre, deixando um atônito Deckard com a alma em frangalhos. Com o seu próprio sentido de existência deformado. Com a dúvida.

Nada mal para “algo” que fora criado unicamente para servir como besta de carga móvel do programa de colonização espacial. Mas e quanto a Deckard? Viverá? Terá esse direito? Raquel (Sean Young), por quem, aliás, está apaixonado, sabemos desde o princípio ser uma androide. Mas e quanto a ele?

É possível obter a resposta no brilho impiedoso dos olhos de Gaff (Edward James Olmos), aquele oficial de polícia com mania de dobraduras.
Afinal“, complementa o próprio Gaff, “quem vive?“.

Talvez os replicantes estejam lutando por algo que não vale a pena.

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E R Corrêa

"No edifício do pensamento não encontrei nenhuma categoria na qual pousar a cabeça. Em contrapartida, que belo travesseiro é o Caos!" (Cioran)

2 thoughts on “A Literatura complexa e reflexiva de Philip K.Dick

  • 19/02/2018 em 11:36
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    Excelente matéria, capaz de ambientar o leitor no universo de Dick e ainda assim traçar um paralelo entre seu conteúdo escrito e cinematográfico. Sua escrita é elucidativa, dando contornos críticos a esse que é um dos pais da ficção científica e valorizando as particularidades do mesmo. Continue assim, por favor! E obrigada por compartilhar conosco.

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