The Evil Clergyman
Original:The Evil Clergyman
Ano:1987•País:EUA Direção:Charles Band Roteiro:H.P.Lovecraft, Dennis Paoli Produção:Charles Band Elenco:Barbara Crampton, Jeffrey Combs, David Gale, David Warner, Una Brandon-Jones |
Qual adaptação para o cinema de um conto de H.P. Lovecraft reúne os atores Jeffrey Combs, Barbara Crampton e David Gale, num roteiro de Dennis Paoli produzido pela Empire Pictures, de Charles Band? Bem, até 2012 só havia uma resposta possível: o clássico Reanimator (1985), de Stuart Gordon. Mas de 2012 em diante, a pergunta também pode ser respondida citando-se The Evil Clergyman, um curta-metragem que reúne a mesma equipe talentosa de Reanimator já citada, apenas substituindo Stuart Gordon pelo produtor Charles Band na cadeira de diretor.
The Evil Clergyman foi filmado entre 1987 e 88, mas só foi oficialmente finalizado e lançado 25 anos depois (!!!). Mais precisamente em 11 de agosto de 2012, quando o curta teve uma concorridíssima premiére na mostra Chicago Flashback Weekend, sendo depois lançado em DVD, em outubro do mesmo ano.
Para entender porque esta adaptação esquecida de H.P. Lovecraft passou 25 anos no limbo, é preciso fazer uma pequena viagem no tempo, de volta à década de 1980. Naqueles tempos, a Empire Pictures, de Charles Band, era garantia de produções divertidas feitas com pouco dinheiro, como o já citado Reanimator, e também Do Além (1986, também de Stuart Gordon), Puppet Master / Bonecos da Morte (1989, de David Schmoeller) e Duro de Prender (1988, de Renny Harlin), entre outros.
Embora sempre tenha investido uma merreca em seus filmes, a Empire enfrentava sérias dificuldades financeiras lá por 1987, quando The Evil Clergyman começou a ser filmado. Assim, o produtor Band surgiu com um projeto arriscado: diminuir futuros longas que produziria para segmentos de meia hora, que iriam compor uma coletânea em longa-metragem chamada “Pulse Pounders”!
Eu desconheço se realmente era mais barato filmar três curtas de meia hora, cada um com sua história e elenco independentes, do que três longas inteiros. Seja como for, o próprio Charles Band dirigiu os três segmentos sem relação entre si, sendo que apenas um deles era original (a adaptação de Lovecraft sobre a qual estamos falando), e os outros dois eram continuações de filmes populares da Empire, Trancers (que Band dirigiu em 1985) e The Dungeonmaster (1984, de vários diretores).
Dessa forma, Pulse Pounders era composto por The Evil Clergyman, Trancers 2 – The Return of Jack Deth (com Tim Thomerson, Helen Hunt e Grace Zabriskie) e The Dungeonmaster 2 – A Sorcerer’s Nightmare (com Jeffrey Byron e Richard Moll). A ideia em si é bem curiosa, e você pode pensar nesta coletânea como uma espécie de “Grindhouse”, aquele projeto fracassado de Quentin Tarantino e Robert Rodriguez, só que 20 anos antes (chupa, Tarantino! chupa, Rodriguez!).
Enfim, os três filminhos de meia hora foram completados e Band já começava a divulgar sua antologia com o título Pulse Pounders Volume 1, comprovando que havia a intenção de produzir mais coletâneas no futuro, quem sabe até trazendo mini-sequências de meia hora para outros belos filmes da Empire Pictures, como Metalstorm ou Patrulheiros do Espaço, e quem sabe mais adaptações curtinhas de contos de Lovecraft.
Mas embora Pulse Pounders tenha sido anunciado e divulgado, inclusive com trailer em fitas da produtora (veja abaixo), a crise financeira da Empire Pictures decretou seu sepultamento: não demorou para a pequena empresa de Band ir à falência, e a prometida antologia acabou nunca sendo lançada. Pior: os negativos em 35mm foram extraviados no inferno que se desencadeia sempre que uma companhia fecha, e o projeto parecia perdido para sempre.
Trailer do nunca lançado Pulse Pounders:
https://www.youtube.com/watch?v=gLNqd3H-eXA
Pouco tempo depois, Charles Band abriu uma nova empresa, a Full Moon, e retomou diversos projetos antigos, com ainda menos grana e direto para o mercado de vídeo. Com Pulse Pounders perdido para sempre (ou ao menos assim se imaginava), o produtor resolveu dirigir até um novo Trancers 2 em 1991, descartando completamente aquele curta filmado alguns anos antes.
Já The Dungeonmaster 2 ficou perdido no limbo, enquanto outras adaptações baratas de contos de H.P. Lovecraft (como Aprisionados pelo Medo, de 1994, e O Castelo Maldito, de 1995) ajudaram a manter The Evil Clergyman devidamente esquecido durante décadas.
Mas esta é uma história com final feliz, apesar de demorado: em 2011, Charles Band anunciou aos quatro ventos que encontrou uma velha fita VHS contendo a “workprint” (cópia de trabalho) de Pulse Pounders. Os negativos originais continuam perdidos, mas já era alguma coisa, considerando que muita gente aguardava para ver pelo menos um dos segmentos da coletânea há vinte e poucos anos!
Como bom espertalhão e comerciante que é, Band resolveu desmembrar Pulse Pounders e lançar os três curtas separadamente, um por ano, fazendo o possível e o impossível para dar-lhes um mínimo de restauração – já que, lembre-se, estamos falando de imagens capturadas de uma velha fita de vídeo, e sem música nem efeitos sonoros!
The Evil Clergyman foi o primeiro episódio a ser lançado, considerando o grande culto que existe às velhas adaptações de Lovecraft produzidas pela Empire. E para 2013 estava programada a estreia do Trancers 2 bastardo, agora rebatizado Trancers 1.5 – City of Lost Angels por causa da existência da outra Parte 2! Já The Dungeonmaster 2 ficaria para 2014, a não ser que Band inventasse alguma das suas…
Bem, encerrada a aula de história, vamos ao que interessa: o que se pode dizer do mítico The Evil Clergyman? Valeu a pena esperar 25 anos, ou seria melhor que o curta tivesse ficado perdido para sempre?
A resposta é simples: é óbvio que o que temos aqui não chega nem aos pés das adaptações mais clássicas de Lovecraft produzidas por Charles Band, como Reanimator e Do Além. Até porque o velho Charles não é nenhum Stuart Gordon. Mesmo assim, o resultado é bem acima da média. Talvez pela nostalgia de rever quase todo o time de Reanimator junto num outro filme inspirado em Lovecraft. Ou talvez pelo fato de as produções assinadas por Band hoje serem tão ruins que até os trabalhos menos expressivos da antiga Empire parecem bem melhores em comparação.
O conto homônimo que inspirou The Evil Clergyman foi publicado no Brasil como O Clérigo Diabólico numa velha antologia de contos do autor chamada A Tumba e Outras Histórias, lançada pela Francisco Alves Editora em 1991 (e republicado em 2007 no formato pocket pela L&PM). Trata-se de um conto bem curto (apenas cinco páginas) que Lovecraft escreveu em 1933, mas só foi publicado em 1939, depois da morte do autor (que foi em 1937), na revista “Weird Talers”. (Você pode ler o conto completo, em inglês, clicando aqui)
A história original é até bem inexpressiva, narrada por um homem que visita uma velha casa e é atraído até o sótão. Ali, encontra um clérigo queimando velhos livros de magia negra na lareira. Outros religiosos, incluindo um bispo, aparecem para confrontar o “clérigo diabólico”, mas ele os confronta usando um objeto mágico que estava sobre a mesa.
Quando o próprio narrador é ameaçado pela diabólica figura, ele resolve utilizar o mesmo objeto para se livrar do clérigo. Mas, ao tentar fugir da casa, se olha num espelho e percebe que está diferente: o reflexo não é dele, mas sim do “clérigo diabólico”. E o conto termina assim: “Pelo resto da minha vida, exteriormente, eu seria aquele homem!”.
Nada muito inspirador, certo? Assim, não é de se espantar que o roteirista Dennis Paoli, o mesmo que escreveu diversas adaptações de Lovecraft para Stuart Gordon dirigir (de Reanimator a Dagon), tenha aproveitado bem pouco do conto ao escrever The Evil Clergyman. E, mais uma vez, sexo e perversão são a mola-mestra da trama, a exemplo do que já havia acontecido em Reanimator e Do Além.
O narrador anônimo (e homem) do conto aqui foi transformado numa bela mulher, Said Brady, que obviamente é interpretada pela delícia da época Barbara Crampton (aquela mesma que quase foi estuprada por uma cabeça decepada em Reanimator). Ela vai visitar um velho castelo onde viveu e morreu um clérigo chamado Jonathan (Jeffrey Combs, o Dr. Herbert West de Reanimator), que não era exatamente um exemplo de pureza – lembre-se: ele é o “clérigo diabólico” do título!
Ocorre que Said e Jonathan foram amantes no passado. Ao saber da morte misteriosa do religioso, ocorrida há alguns dias, a garota resolve visitar o quarto onde ele vivia e onde ambos dividiram momentos de intimidade. Porém, no momento em que a moça fica sozinha no local, Jonathan reaparece. E não se trata de uma assombração, conforme ela irá confirmar por conta própria. No momento seguinte, os dois estão na cama “tirando o atraso”.
Pelos próximos vinte e poucos minutos, aparecem ainda um misterioso bispo (interpretado pelo excelente David Warner), que acusa Jonathan de assassinato, e uma bizarra criatura meio homem, meio rato (“interpretada” por David Gale, o Dr. Hill de Reanimator, aqui debaixo de carregada maquiagem). É quando Said começa a desconfiar das boas intenções do clérigo por quem se apaixonou…
Como se trata de um curta-metragem de 27 minutos, não dá para falar muito mais sobre The Evil Clergyman para não estragar a surpresa. Mas, para quem já leu o conto original de Lovecraft, é bom salientar que quase tudo que se vê na tela saiu da mente do roteirista Paoli, e a única coisa que realmente lembra a história em que o filme se inspira é a conclusão – mesmo que (infelizmente) sem usar o recurso do reflexo no espelho.
A exemplo do que já havia feito em seus roteiros de Reanimator e Do Além, Dennis Paoli escapa da armadilha de tentar adaptar Lovecraft com muita fidelidade, descartando a narrativa em primeira pessoa e buscando uma abordagem que mistura horror e erotismo – aqui, como acontecia em Reanimator, a pobre Barbara também leva umas lambidas em lugar estratégico do vilão interpretado por David Gale!
Aliás, é impossível não lembrar de Reanimator quando The Evil Clergyman parece uma reunião da equipe técnica daquele filme. Se não existisse um intervalo de tempo de pelo menos dois anos entre as duas produções, eu poderia até jurar que o curta tinha sido filmado nos intervalos das gravações de Reanimator. Além de dividir o mesmo elenco e o mesmo roteirista, o curta traz ainda o diretor de fotografia Mac Ahlberg e o técnico de efeitos especiais John Carl Buechler, que também trabalharam naquele filme.
É uma pena que Stuart Gordon também não tenha voltado para assinar a direção e deixar o clima ainda próximo do universo dos seus Reanimator e Do Além. Band até que se sai bem ao tentar emular esse clima, mas é impossível não ficar imaginando como o curta ficaria caso Gordon estivesse no comando, ainda mais conhecendo sua paixão pelos contos e pelo universo de Lovecraft.
Curiosamente, apesar do reencontro da turma de Reanimator, para mim a melhor coisa do curta é a pequena participação do lendário David Warner, que deve ter gravado todas as suas cenas em algumas poucas horas. Seu personagem, o bispo misterioso, aparece para reforçar as verdadeiras intenções de Jonathan, e justificar o porquê de ele ser o “clérigo diabólico” do título original.
O restante da turma manda muito bem, e, além dos quatro já citados, completa o reduzido elenco a veterana Una Brandon-Jones, no papel da proprietária do castelo. Eu só lamento o pouco tempo em cena de David Gale e seu homem-rato, já que, depois de anos lendo sobre o curta em minhas pesquisas sobre a antologia Pulse Pounders, eu sempre imaginei que o monstrinho teria um papel muito maior na trama. (O curta é dedicado ao ator, que faleceu em 1991.)
Irmão de Charles, o compositor Richard Band (que, vejam só, também é o responsável pela antológica trilha de Reanimator, aquela chupada do tema de Psicose!) foi convidado para compor a música de The Evil Clergyman mais de vinte anos depois do fim das filmagens. A trilha tem seu charme e lembra os melhores momentos do músico; se eu não soubesse que é coisa nova, juraria que ele tinha composto a música lá em 1987!
Claro que, como o curta foi resgatado de uma cópia em VHS de quase 30 anos atrás, a qualidade da imagem não é das melhores, um problema que é ainda mais perceptível nas cenas escuras. Infelizmente, não há muito o que fazer nesse departamento, a não ser que os negativos originais reapareçam e permitam fazer uma nova montagem – quem sabe até com cenas que não foram aproveitadas na “workprint” daquela época.
Considerando o nível das podreiras que Charles Band produz e dirige hoje, repletas de CGI de quinta categoria e roteiros tosquíssimos sobre bongs e biscoitos assassinos, The Evil Clergyman promove um autêntico retorno ao passado, a uma época não tão distante em que mesmo os filmes de horror mais baratos tentavam buscar um mínimo de sofisticação, e dependiam bastante do talento e criatividade do técnico em efeitos especiais, e não do computador.
É interessante constatar que os efeitos da criatura “homem-rato” não foram produzidos em stop-motion, como era comum naquela época nas produções da Empire. Pelo contrário, o pobre David Gale vestiu uma roupa de rato em tamanho natural e foi obrigado a zanzar de quatro por um cenário repleto de estruturas aumentadas, para dar a ideia de que o monstrinho é bem menor do que realmente era.
Isso exigiu bastante criatividade do time dos efeitos especiais, principalmente para a cena em que o homem-rato aparece dando umas lambidas na bunda da mocinha. Mesmo com pouco dinheiro em caixa, Band dispensou truques fotográficos ou montagens porcas e mandou construir uma réplica da bunda de Barbara Crampton em dimensões gigantes (!!!) só para poder filmar essa cena.
No bate-papo realizado na premiére do filme, em agosto do ano passado, a atriz inclusive lembrou com surpresa da réplica gigante dessa bela parte da sua anatomia, e questionou Band sobre o destino do “bundão”; segundo o diretor-produtor, alguém da equipe deve ter guardado de recordação, sabe-se lá com que propósito!
No mesmo bate-papo, Band lembrou que a equipe dos efeitos tentou fazer uma complicada trucagem em que o rosto de Jeffrey Combs se transformava no de Barbara Crampton; porém, após alguns testes, eles abandonaram a ideia e preferiram deixar a “transição” para a imaginação do espectador. Confesso que fiquei curioso para ver como resolveram algo tão complicado tecnicamente com os efeitos práticos da época…
Por falar em DVD, The Evil Clergyman está disponível no formato desde outubro de 2012, mas o material é a típica picaretagem do mercenário Charles Band: ao invés de esperar para finalmente lançar o tão sonhado Pulse Pounders num único DVD, o maquiavélico produtor optou por lançar discos separados com cada um dos curtas. Assim, você é obrigado a desembolsar o preço de um longa para ter o DVD com um curta e alguns extras mixurucas que foram gravados hoje. Bem, é justamente nesses casos que o download de filmes funciona como uma espécie de justiça poética, já que Band definitivamente não merece o dinheiro que está cobrando pelo material.
Picaretagens à parte, The Evil Clergyman é muito divertido e vale principalmente pelo fator nostalgia, já que todo fã das produções da extinta Empire, e de suas clássicas adaptações de Lovecraft, passou os últimos anos sonhando com esse curta-metragem. Vê-lo hoje, nesses tristes tempos em que o gênero parece dominado por refilmagens e overdose de CGI, é como fazer uma viagem no tempo até uma época que transpirava simplicidade e criatividade.
E, confesso, dá a maior saudade daquelas adaptações classe B de Lovecraft que a turma da Empire/Full Moon adorava produzir. Porque se hoje boa parte dos cinéfilos sonha com a tão comentada adaptação de Nas Montanhas da Loucura por Guillermo Del Toro, a única coisa que realmente me deixaria animado seria um retorno do velho Stuart Gordon aos textos de Lovecraft.
Mas como isso parece um sonho cada vez mais distante, o que nos resta são esses 27 minutos de The Evil Clergyman para quebrar o galho…