4.8
(5)
Uma Família Feliz
Original:Uma Família Feliz
Ano:2024•País:Brasil
Autor:Raphael Montes•Editora: Companhia das Letras

Ah, a maternidade! Não existe nada mais belo para uma mulher do que ser mãe! O ato de gerar uma vida dentro de si, passando por mudanças hormonais caóticas – e corporais então, nem se fala – é o que faz qualquer uma alcançar a verdadeira plenitude! Os inúmeros incômodos durante a gravidez, a dor e sofrimento do parto, nada se compara ao momento em que enfim é dada à luz. Emoções e alegrias que não cabem no peito, tantos planos e sonhos para o pequeno ser que acabou de chegar ao mundo, o quartinho pronto, as roupinhas compradas. Quando enfim chega a hora da maior conexão que uma mãe e sua criança podem ter, a amamentação, é um misto de sensações, enfim, a mulher sente-se completa! Tudo é maravilhoso, cada nova coisinha feita pelo bebê é um deleite, nada pode abalar a felicidade de ser mãe. A mulher que não acha sublime e divino ser mãe, que chora de cansaço e estresse, que tem dificuldades na amamentação, que não consegue acalmar o choro de seu bebê de imediato e é logo julgada com olhares tortos e cochichos, que não dá conta de cuidar dos afazeres domésticos, da aparência, da profissão, das refeições, da criança e das necessidades do cônjuge, e tudo isso com seu melhor sorriso estampado no rosto, certamente não está fazendo direito. Afinal, a maternidade é sempre maravilhosa! Quantos comerciais reforçam isso, quantas pessoas vendem essa ideia de que ser mãe são apenas flores, quanta romantização e desvalorização das dificuldades. E quanto julgamento há quando alguma mulher desmente essa ideia. O simples fato de dizer que está esgotada é o suficiente para fofocarem o quanto ela é uma péssima mãe, esquecer algo então, um crime! Especialmente nessa era de redes sociais, onde tudo é um retrato da perfeição e todos parecem lindos e felizes. Em seu novo livro, Uma Família Feliz, Raphael Montes escancara as diversas rachaduras que esses impecáveis retratos possuem de perto.

Eva e Vicente são moradores do condomínio de alto padrão Blue Paradise, na Barra da Tijuca. Ali, tudo está ao alcance de poucos passos: mercado, piscina, academia, correios, médicos, escola e tudo mais que precisarem sem sair do conforto e segurança das imediações. Com gêmeas, o casal é a imagem da perfeição, sempre felizes, de aparência impecável e com o cronograma diário seguido à risca. Eva prepara fartas mesas de refeições, leva as meninas à escola, passa a roupa do marido, arruma a casa, vai à academia, trabalha como artista de bonecos reborn e ainda arranja tempo para manter os cabelos sempre escovados, as roupas alinhadas e um rosto sempre simpático, descansado e feliz para todos que cruzam seu caminho, é o orgulho do marido e das gêmeas de dez anos, Sara e Angela que, mesmo não sendo suas filhas biológicas, são cuidadas com muito amor e carinho. Em mais um de seus dias perfeitos, recebe a notícia de que está grávida, e não sabe bem como reagir. Um filho! É tudo que ela e Vicente queriam para aumentar ainda mais sua felicidade… não é? Questionamentos e medos permeiam a mente de Eva, que logo são dissipados ao dar a notícia para sua família, tamanha a alegria deles. Claro que tudo vai dar certo, sempre ouviu falar que maternidade é algo maravilhoso e incomparável, ela vai tirar isso de letra, já é uma ótima mãe para as gêmeas, nada vai mudar, apenas melhorar.

Pobre Eva. A gravidez já foi um suplício, mas aguentou com um sorriso no rosto e fazendo todas as tarefas de sempre, mesmo com dores em todas as partes do corpo e tendo que lidar com festas sem ser consultada. Não via a hora disso acabar. Finalmente, chega o dia! O parto não foi nada do que falaram que seria, foi uma experiência horrível onde ela quase desistiu, mas era importante para Vicente que ela não fracassasse independente de suas dores, o parto tinha que ser normal para não ser julgada pelas mães do condomínio. Enfim, seu filho chega ao mundo, e seu único sentimento instantâneo é a indiferença. Será que ela tem algum problema por não sentir aquele amor incondicional, que sempre ouviu falar, imediatamente ao ouvir o choro do filho?

Os dias passam, e a maternidade não é absolutamente nada do que pensou, do que contaram. É dificuldade atrás de dificuldade. Ela não dorme, não consegue mais um segundo para si, e ainda precisa cuidar das gêmeas, do marido, da casa, das encomendas de reborns. Eva não tem ajuda, não tem uma rede de apoio, todos apenas dizem o quanto ela parece cansada, só ouve cobranças quando a mesa não está posta ou quando seu filho, Luquinhas, não para de chorar. A sensação é de que seu filho a odeia, que ela é insuficiente para todos. Exaustão, frustração, desespero. E um acontecimento estarrecedor faz com que as máscaras comecem a cair, e sua vida perfeita e família feliz começam a despedaçar aos poucos bem na sua frente.

Primeiro de tudo, Raphael Montes começa esse livro pelo capítulo final. Ou seja, sabemos que algo deu terrivelmente errado e uma tragédia aconteceu, mas quem é o culpado ou o desenrolar que levou a isso, descobriremos ao longo da leitura. E que leitura intensa! A cada página ficamos ávidos por saber o que vai acontecer, especialmente já sabendo que o final não é nada feliz. Essa decisão se mostra muito acertada, já que no começo temos apenas o retrato de uma família perfeita, então saber como acaba dá um belo incentivo para devorar as páginas. Já ficamos tensos a cada atitude feita apenas para manter as aparências, o suspense aumentando cada vez mais. O enredo não demora a engatar, e o fato da história ser contada pelo ponto de vista de Eva ajuda nisso. Ela que é a mãe, ela que sofre todas as pressões sociais para ser perfeita, ela que não aguenta mais, ela que nos mostra que a maternidade pode ser sim feia, dolorosa, estressante, exaustiva, um horror, e isso não quer dizer que seja menos mãe, que ame menos seu filho ou que esteja fazendo algo errado. Todos os outros são apenas coadjuvantes na sua história. A história de uma mãe cansada de fingir que sua vida é um comercial de margarina.

Eva é uma personagem conturbada, que vive uma vida de aparências por causa de seu marido, e se esforça para agradá-lo em nome da tranquilidade e de sua vida de alto padrão. Quando dá à luz, suas prioridades mudam, e imperfeições vem à tona. Conhecemos seu passado, seu pior lado, mostrando que é uma pessoa falha, assim como somos todos, e é ela quem brilha aqui. Sabemos todos os seus pensamentos mais obscuros, e é exatamente isso que a torna tão interessante. Qualquer um que ler Uma Família Feliz vai pensar duas vezes antes de acreditar na imagem de perfeição que muitos tentam pintar por aí graças aos desabafos de Eva. Ela é a representação nua e crua do que são as famílias tradicionais de classe média alta de verdade, do que é uma maternidade real e do quanto é tóxico esse mundo de aparências. A ambiguidade está muito presente, e ora somos levados a crer que muita coisa aconteceu por causa de Eva justamente por a conhecermos em seu íntimo, ora achamos que é completamente impossível e começamos a criar teorias do que diabos pode estar acontecendo. E no final, é claro que somos surpreendidos. Quem é familiarizado com as obras de Raphael Montes sabe que ele tem o dom de nos deixar de queixos caídos com a resolução, que não é inédita, mas não é menos impactante por isso.

Entretanto, apesar de ser um suspense de tirar o fôlego e nos deixar encarando o nada por algum tempo (inclusive recomendo tirar uns minutos para absorver o que acabou de ler após finalizar o livro), nem tudo são elogios. Vários pequenos detalhes aqui e ali, que parecem ter importância na hora, acabam esquecidos pelo autor. Apesar das coisas fazerem sentido quando se olha o cenário maior, algumas pequenas coisinhas são deixadas de lado sem explicação, algumas pequenas pontas soltas que não necessariamente atrapalham o final, mas causa a sensação de que faltou algo, aquele mínimo detalhe que poderia ser apenas paranoia, mas nos deixa com uma curiosidade que jamais será saciada.

Uma Família Feliz é um thriller surpreendente, assim como as obras de Montes costumam ser, que desromantiza e faz críticas à idealização da maternidade e das vidas perfeitas. O suspense é alarmante, até mesmo perturbador em alguns momentos, e é impossível parar de ler na reta final.  Nunca acredite nas famílias perfeitas, são as que escondem os piores segredos. E muito menos nos vizinhos perfeitos, solícitos e sorridentes, eles estão ali apenas para fofocar e serem os primeiros a virarem juízes cruéis assim que cometer algum deslize e deixar transparecer algo além da perfeição.

Em abril de 2024 foi lançada a adaptação cinematográfica de Uma Família Feliz, estrelado por Grazi Massafera e Reinaldo Gianecchini e com direção de José Eduardo Belmonte. Raphael Montes participou ativamente da produção do filme e ainda avisa a seus futuros leitores para lerem o livro antes de assistirem ao filme.

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