4.8
(6)
Garota, Interrompida
Original:Girl, Interrupted
Ano:2024•País:EUA
Autor:Susanna Kaysen•Editora: Darkside Books

 

 

Em 1999 chegou às telas de cinema o filme que rendeu Angelina Jolie seu primeiro – e, até o momento, único – Oscar na categoria de Melhor Atriz Coadjuvante, muito comentado e até mesmo chocante para a época por abordar o cotidiano de internas de um hospital psiquiátrico sem filtros. Estamos falando de Garota, Interrompida, e Susanna Kaysen foi uma crítica ferrenha do longa dirigido por James Mangold, afirmando que muitos pontos ali foram inventados apenas para efeitos de entretenimento, uma bobagem que não reflete a realidade. Susanna pode falar com total propriedade sobre isso, afinal, o longa é baseado em seu livro homônimo de memórias sobre o período que ficou internada, na década de 60, e diagnosticada com transtorno de personalidade borderline.

Em seu livro, Susanna conta sobre a decisão de seu psiquiatra de interná-la em um hospital psiquiátrico após ela ingerir aspirina e vodca em uma tentativa de suicídio e como foi esse período. Na época, a jovem tinha apenas 18 anos e relata que se sentia triste com frequência, tinha uma vida inconstante e, afinal, seus pais – aparentemente bem endinheirados, como os pais de todas as pessoas internadas em tal instituição – optam pela internação de sua filha problemática. Assim, após uma consulta, imediatamente foi encaminhada para um hospital psiquiátrico e lá ficou pelos próximos 18 meses. De início, ela não sabia seu diagnóstico, e fez amizade com outras internas que ali estavam: Lisa, diagnosticada como sociopata, Polly, uma jovem que ateou fogo em si mesma, Georgina, colega de quarto de Susanna e considerada uma mentirosa patológica, entre outras. Sua situação aparenta ser bem menos grave do que da maioria, inclusive de suas amigas, mas isso não impede que elas se juntem e se apoiem, seja durante a ronda dos enfermeiros, momentos de surto ou planos de fuga.

Susanna faz um relato realista, sem usar termos muito técnicos, sobre o período que ficou internada. Conta como se sentia, suas consultas diárias, como os remédios agiam em seu organismo, seu processo e pensamentos e, especialmente, como aquelas pessoas, tão quebradas quanto ela, viraram uma rede de apoio maior do que suas famílias, que raramente apareciam para uma visita, dando uma lição de empatia em um lugar extremamente inusitado. Seus medos e angústias são expostos e, no meio disso, vemos quanta lucidez há ali. Elas são vistas como párias, tendo que lidar com julgamentos e preconceitos, um estorvo para seus familiares ricos e, por isso, escondidas da sociedade em uma instituição, mas com frequência mostram um bom senso muito maior do que pessoas consideradas sãs, inclusive seus questionamentos – que são justamente o que faz a autora pensar que só pode estar louca, afinal, vê o mundo de outra forma – apresentam muita clareza. Ao longo da leitura, temos as fichas médicas de Kaysen e sua análise sobre as mesmas – leigas, é claro, mas com muita sagacidade –, sendo explicadas do seu jeito e fazendo paralelos com o dia-a-dia vivido na instituição. Um olhar amador, mas sincero, de alguém que de fato está passando por aquilo, e não especulações de estudiosos. Muito se diz sobre a personalidade de pessoas com algum transtorno psicológico, muitos estudos e termos médicos, mas poucas vezes essas pessoas são de fato ouvidas, e sim tratadas apenas como objetos de estudo, cobaias para que outros analisem seus cérebros e escrevam em livros suas observações. Aqui, a autora fala de forma crua sobre seus sentimentos e experiência, e provavelmente por isso seu livro fez tanto sucesso.

Também é interessante ressaltar que essa visão de alguém de dentro é muito útil para desmistificar as internações que são retratadas em filmes ou séries, que com frequência mostram exageros, violência e até mesmo romantizam situações.

Apesar disso, falta um pouco de aprofundamento na obra. Raramente é falado sobre a família de Kaysen, dá a entender que são omissos e esperam que sua filha problemática seja consertada para, só então, agirem como uma família, mas nem mesmo isso é dito diretamente pela autora. Pouco é falado sobre sua adolescência ou relacionamento com os pais antes da internação, apenas em um capítulo e de forma extremamente superficial. Até mesmo o momento de sua internação acaba ficando meio nebuloso, podemos apenas especular o que aconteceu, se o médico responsável realmente achou que ela seria um perigo para si e para os outros ou se mal olhou para ela e já a julgou como insana apenas por seus hábitos, se os pais que não sabiam lidar com seu jeito e preferiram a saída fácil e usando o médico apenas como uma formalidade. Vale lembrar que, nos anos 60, se você não estivesse perfeitamente dentro dos padrões aceitáveis pela sociedade, provavelmente seria considerado um desequilibrado com problemas, então não é difícil imaginar que qualquer decisão de internação recomendada por um médico seria imediatamente acatada por uma família com boas condições financeiras (ou vice versa), mesmo que ela não tivesse feito nada absurdamente grave como suas colegas internas. Assim como profissionais da área não eram tão preparados para lidarem com transtornos de personalidade e acabavam colocando tudo na mesma caixinha: sociopatas, esquizofrênicos, depressivos, bipolares e borderlines. E, mais de 60 anos depois, apesar de muitos avanços e informações, ainda há muito preconceito e ignorância sobre o assunto.

Garota, Interrompida é o diário sincero de uma mulher que viveu por quase dois anos em uma instituição psiquiátrica, que esmiúça sua rotina ali dentro e dá um choque de realidade nos mentalmente sãos com a simplicidade de sua narrativa, fazendo com que os leitores reflitam: será que somos todos loucos? Você tem certeza que é tão são quanto pensa? Esse relato e pensamentos podem te surpreender.

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1 comentário

  1. Saúde mental sempre foi um tabu, ainda mais na década de sessenta. Tenho mais vontade de ler o livro escrito pela autora do que assistir ao filme, mesmo ele sendo bom do mesmo jeito. Enfim será que a sociedade toda em si é normal ou tudo não passa de um jogo aparências coletivo onde todos querem a todo custo parecerem normais? Fica o questionamento.
    E ótimo texto como sempre.

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