![]() The Ugly Stepsister
Original:The Ugly Stepsister
Ano:2025•País:Noruega, Romênia, Dinamarca, Polônia, Suécia Direção:Emilie Blichfeldt Roteiro:Emilie Blichfeldt Produção:Maria Ekerhovd Elenco:Lea Myren, Ane Dahl Torp, Thea Sofie Loch Næss, Flo Fagerli, Isac Calmroth, Malte Gårdinger, Ralph Carlsson, Isac Aspberg, Albin Weidenbladh, Katarzyna Herman, Adam Lundgren, Willy Ramnek Petri |
A beleza dói: o sapatinho não coube e o “felizes para sempre” custou sangue
Os entusiastas das histórias da Disney sobre o amor entre princesas e príncipes vão, no mínimo, se horrorizar com a abordagem do novo filme norueguês The Ugly Stepsister. A promissora releitura da Cinderela, dirigida e roteirizada por Emilie Blichfeldt, aproveita o que há de mais macabro no conto, adiciona camadas aos personagens e faz comentários sociais sobre padrões de beleza, romantização das relações amorosas e liberdade sexual. Originalidade não é o melhor adjetivo para descrever essa pérola do horror, que, ainda nadando na onda de A Substância, destaca-se com uma atmosfera única, cenas gore muito bem executadas e escolhas estéticas que ajudam a contar a história.
Acompanhamos Elvira, uma jovem de trejeitos estranhos e pouco afeiçoada, segundo aquela sociedade. O filme começa com ela e sua irmã Alma chegando à casa do mais novo marido da mãe, que também tem uma filha – loira, esbelta e desejada por todos –, a Agnes, ou Cinderela para os mais íntimos. Após a morte do pai de Cinderela, Rebekka, mãe de Elvira e agora madrasta da Agnes, passa a gastar o pouco que resta da herança do marido em procedimentos estéticos na filha Elvira com o propósito de torná-la atraente para o príncipe Julian, promessa de salvação financeira da família e a obsessão romântica da jovem. Ao ser colocada em constante rivalização com Agnes, a meia-irmã passa a fazer de tudo para tirar Cinderela de seu caminho e conquistar o amor do príncipe – incluindo ingerir um ovo de tênia para ficar mais magra.
A obra, por si só, é uma deturpação do conto de fadas ao mudar o foco da narrativa. No entanto, a atmosfera do longa-metragem ainda é fantasiosa, mesmo que conte uma história mais visceral e chocante. Dito isto, o filme transita bem entre gêneros, dentre os quais destacam-se o drama, romance, horror e comédia, e estabelece um bom ritmo, sem perder o espectador por falta de ação em tela.
Um dos méritos da direção são as cenas com elementos gore, filmadas em um estilo único e que fazem jus aos diferentes gêneros trabalhados na obra. Muitas cores são usadas, todas em tons pasteis, além disso, a iluminação e a trilha sonora atemporal também contribuem para a construção de uma atmosfera fantástica nos momentos mais tensos e sangrentos do filme. Dessa forma, o body horror presente aqui não é sem intuito. Cada cena grotesca, a cada procedimento estético da personagem, possui uma função narrativa e são como camadas que ajudam a elevar o nível de loucura da personagem principal até o clímax da história.
No figurino, maquiagem e demais elementos em cena, principalmente durante os procedimentos estéticos realizados em Elvira, é possível ver objetos contemporâneos que ornam bastante com a proposta do filme, assim como em A Substância, deixando a temática dos padrões de beleza mais atemporais. Em um dos momentos mais inusitados do filme, o cirurgião plástico utiliza cocaína como anestésico para realizar um procedimento de extensão de cílios, feito com uma agulha, nos olhos da personagem.
Outro destaque da obra são os personagens, que estão mais interessantes e multifacetados do que na história infantil, em especial a Lea Myren como Elvira, e a Ane Dahl Torp, como Rebekka. A primeira convence como uma jovem que, aos poucos, vai dando lugar a uma obsessão e acaba caindo na armadilha mental que ela própria construiu. Já o trabalho da segunda atriz consegue transmitir a ideia de uma madrasta ambiciosa e cruel, mas que possui motivações financeiras compreensíveis, e que também sofre com sentimentos como culpa e tristeza.
Da mesma forma, a nossa não-protagonista Cinderela, interpretada por Thea Sofie Loch Næss, também acaba tendo o seu arquétipo desvirtuado. Ela continua sendo tratada como a mocinha, mas a personagem não é mais cem por cento boazinha e nem mesmo virginal (e sofre bastante por causa disso). Em diversos momentos, Agnes se mostra rancorosa, maldosa, esnobe e ainda pratica bullying com Elvira. Isso faz com que o espectador tenha sentimentos dúbios sobre ela. Ainda é esperado que o sapatinho entre no seu pé – mas, dessa vez, nossa empatia pela Gata Borralheira para nisso. Na nova trama, ela não é perdidamente apaixonada pelo príncipe. Seus interesses possuem outra motivação. Além disso, Agnes é apaixonada por um dos criados da casa, que é expulso assim que o romance dos dois é descoberto.
Um dos pontos fracos da obra é o pouco desenvolvimento da Alma (Flo Fagerli), que é a outra irmã de Elvira. Ela é uma personagem bastante enigmática, uma outsider, que aparece pouco, mas rende boas cenas e uma boa química com a protagonista. A presença dela poderia ser um ponto focal na decadência da personagem principal ao funcionar como uma bússola moral da realidade. No entanto, o filme só a aproveita nos momentos finais do filme, o que acaba deixando o encerramento um pouco desvinculado do que era construído até o momento.
Por outro lado, a maioria dos homens do filme, inclusive o príncipe, são retratados como pessoas desprezíveis, misóginas e fúteis. Nesse sentido, a diretora também não poupa cenas que sexualizam os corpos masculinos, invertendo a lógica da ultra exploração da nudez feminina. Esse tratamento também serve como contraste para com a visão de Elvira sobre o olhar masculino que aparece durante seus devaneios.
Enquanto um importante elemento narrativo, o body horror aparece com a função de mostrar como as pressões externas e uma mente adoecida podem resultar em um comportamento mortalmente autodestrutivo. Mais do que um filme sobre padrões de beleza, The Ugly Stepsister é uma tentativa de romper com uma perspectiva extremamente romantizada e irreal do que é o amor, o casamento e os homens. Um recado importante para Elvira e para todas as mulheres que crescem sob o viés de histórias fantásticas sobre reinos e príncipes que nunca existiram.