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por Mariane Conte

Na ocasião que se seguiu à morte do meu parceiro, recebi tapinhas nas costas, os mais sinceros pêsames e, num impulso piedoso daqueles que compartilhavam de meu sofrimento, armaram uma cerimônia em estilo intimista, onde honraram a minha enorme perda com uma medalha fosca, leve feito uma pluma, e que eu nunca chegaria a exibir entre os troféus da sala de visitas. Se me comovi durante ou após a fatalidade que nos privou da presença tirânica de Ernesto, devo tê-lo demostrado muito bem, pois ao longo de toda aquela semana recebi flores, cartas, e do senhor prefeito, o convite para acompanhá-lo em um jantar em família: nas palavras do grandalhão, seria formidável que os filhos pequenos soubessem qual a aparência de uma heroína da vida real.

Pela primeira vez em sete anos e mais de uma centena de crimes brutais que fariam o inferno parecer um parque infantil, me convidaram para uma entrevista em um telejornal de horário nobre, um tipo especializado em desgraças: por cinco minutos inteiros estive no ar, os olhos marejados, gesticulando com certo torpor, dramática o suficiente para garantir a liderança na audiência. Tratava-se de um acontecimento que gerara grande comoção: queriam saber se ele tinha agonizado, chorado, implorado, dito suas últimas palavras.

EXCLUSIVO: AMIGA REVELA COMO FORAM OS MOMENTOS FINAIS DE POLICIAL QUE SE AFOGOU DURANTE RONDA NOTURNA EM ÁREA RURAL.

Eu não sabia, até então, que poderia me acostumar com a aprovação daqueles que engoliam a comida, mastigando nervosamente enquanto me ouviam repetir como Ernesto caíra na água, afundou, emergiu, gritou, e então desapareceu enquanto eu, a pobre policial indefesa, entrava em desespero. Por cinco minutos eu sofri violentamente, numa determinação tão intensa e convincente que, ao secar minhas lágrimas, já acreditava que em algum momento chegara até mesmo a sentir amor por meu parceiro, aquele homem alto e de sorriso raro, sempre disposto a amedrontar os vagabundos que se abrigavam como casulos empoeirados nos bancos da praça, na escadaria da igreja, nas portas das lojas do centro. Mas eu não o amava, apesar de suas inúmeras investidas para que me rendesse ao sentimento inventado, e no instante mesmo em que seus olhos esbugalhados me miraram pela última vez, quando sua boca de animal raivoso cuspiu a água poluída do rio, me xingando, me amaldiçoando, soube que nunca seria capaz de sentir nada além da simples sensação de paz e liberdade que me provocaria a sua partida imediata deste mundo.

— Eu não sei nadar — recordo-me de haver dito, de pé em cima da ponte, sorrindo feito duende pelo modo como ele se debatia sob a luz lançada de meu farolete.

A noite estava fria e o luar contornava a paisagem em tons de azul e prateado, uma fina névoa se dissipava, pairando sobre as águas do rio, lembrando almas penadas. Meus lábios estavam comprimidos, minha língua áspera, fixa no céu da boca. Me pergunto se em algum momento cheguei a pedir por ajuda; mentir para o público do meio-dia e rever tais mentiras na reprise das dezoito horas estava me deixando confusa, creio que sensibilizada pela minha própria versão dos fatos.

Como lhes confessei, ao longo de sete anos estive nos becos mais sombrios, lidando com as personalidades mais macabras, atendendo ao chamado das mulheres mais vulneráveis, indo ao socorro das criancinhas mais inocentes. Protegendo e Servindo, eles diziam. E a mim, quem estava vigiando? Quem, afinal, zelava o meu sono em noites de febre e pesadelos hostis?

Referiam-se a mim como sendo um anjo de farda, cuja docilidade no olhar cativava e a suavidade dos traços envolvia. E era a imagem de um Anjo de Farda que Ernesto teria gravada por toda a eternidade atrás de seus olhos injetados: a água e a escuridão invadiram tudo, dos pulmões ao mais longínquo de sua galáxia de estática.

— Por favor. — Ernesto se engasgava, debatendo-se, o pescoço espichado na minha direção.

— Por favor — repeti debilmente, segurando o farolete com mais força para não perdê-lo de vista; meus coturnos estavam presos ao chão de cimento da ponte, o cromado da viatura reluzia ao luar, as luzes alternavam em azul e vermelho sangue.

Enquanto o meu parceiro se debatia às braçadas, engolindo e soltando água pelas ventas, era o fantasma do bandido que eu via, criatura pálida que pesava toneladas, puxando-o pela cintura, para baixo, para baixo, cada vez para mais fundo naquelas águas escuras de fim de tudo. Eu estava consumida pelo medo, paralisada até os ossos. Conhecia aquela ausência de força e coragem: Ernesto me instigava aos limites da moralidade, me convidava a conhecer as maravilhas que se escondiam do outro lado da linha da justiça, me oferecia e então tomava de volta pequenos prêmios por uma conduta amedrontadora, o único jeito possível de fazer-se entender a Lei.

Havíamos participado, em equipe, da perseguição que terminara com a morte de um homem, pelo menos quatro meses antes. Nunca deixei de ser uma novata em minha profissão, uma policial tímida, porém excepcional, de modos trêmulos e nervosos, vulnerável aos gracejos de meus colegas, e por isso me ausentei das fotografias de peito estufado, dos rótulos e dos comentários de bravura e prazer em garantir a manutenção de uma sociedade mais justa. O legista tinha me apunhalado pelas costas, com seu garrancho gótico, apontando “19” no relatório (plantão ocupado, aquele). Desde criança os números ímpares me assombravam e incomodavam ao ponto da súbita fúria, eram cruéis, impertinentes, e desde então me entreguei à culpa por tamanho descuido sentimental: 19 disparos, 19 perfurações de arma de fogo calibre trinta e oito.

Por que não 20? A resposta também apontava um culpado inescrupuloso: fui eu quem não apertou o gatilho nenhuma vez.

O policial à minha direita apertou o gatilho três vezes. Sempre lembrei de sua expressão perturbada como sendo nobre demonstração de pesar.

Enquanto Ernesto se afogava, lenta e exageradamente (Vaca, vaca, me ajuda!), lembrei e revivi cada familiar presente no tribunal: uma senhora de cabelos recém pintados de preto, cuja pele lembrava os joelhos de uma galinha, enrolando no pulso um rosário de São Bento; outra senhora, de seios fartos, lenço na cabeça, lábios pintados em discreta cor de pêssego; um rapaz de tez bronzeada e feições de porquinho da Índia.

Eu não disparei nenhuma vez, jurei por Deus e provaram perante os membros do júri: Pillar V. López não era uma assassina, porca, monstro, membro do corpo de crápulas contratados pelo sistema.

Foi só quando Ernesto finalmente afundou que eu soube, as bolhas subindo aos montes, estourando enquanto ele era sugado pela escuridão e a superfície retornava ao estado de pacífica imobilidade; tive um estremecimento que me contorceu a boca do estômago, vomitei no meio da ponte, gemendo e escutando os disparos efetuados ao longe. Uma. Duas. Cinco. Sete vezes. Me chamaram pelo rádio. Me chamaram pelo rádio e solicitaram reforços.

Eu soube que quando descesse ao Mictlán, seria julgada por apenas um de meus crimes

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