por Hedjan C.S.
Tudo começou quando eu resolvi procurar, pela enésima vez, o significado “real” da letra da canção Hotel California, a mais famosa do grupo americano Eagles. Eu já tinha feito isso antes, mas nunca tinha chegado a algo oficial. Por oficial entenda-se algo do tipo “o compositor afirma que a música foi baseada em…”. Bom, até aquele momento.
Eu gosto bastante dessa música, especialmente da letra. Sem querer influenciar quem nunca escutou ou quem não conhece a letra, é uma história de terror. Pelo menos pra mim. É sobre um homem que, viajando sozinho por uma estrada deserta e escura, decide parar seu carro em um hotel de beira de estrada para passar a noite. Um hotel cheio de coisas bizarras. O final da história, ou da música, mostra o recepcionista noturno dizendo ao narrador que ele pode fazer até fechar a conta quando quiser, mas nunca poderá deixar aquele lugar.
A música é incrível do ponto de vista melódico. É um prazer para os ouvidos. Sem contar que tem o solo de guitarra considerado por muitos como o melhor da história. Mas ela não aparece nas conversas só por causa da sua qualidade. Também existem os rumores.
Esses rumores, que podem ser escutados em um podcast sobre música, em um blog sobre ocultismo ou até em uma mesa de bar com fãs de rock, envolvem as polêmicas em torno das interpretações diferentes sobre a letra.
Sem mais delongas, vamos falar um pouco sobre elas.
Canibais, assassinos, adoradores do coisa-ruim
Uma busca rápida pelo onisciente Google revela que algumas pessoas acreditam que a letra descreve um hospício ou sanatório. Quem acredita nessa teoria geralmente vai além, afirmando que a capa do álbum seria uma foto do Hospital Psiquiátrico de Camarillo (Camarillo State Mental Hospital), que funcionou na Califórnia entre os anos de 1936 e 1997. Na verdade, a foto é a da fachada do Beverley Hills Hotel, local onde a banda esteve hospedada por algum tempo.
Uma outra, muito mais conhecida, é a de que os integrantes da banda seriam praticantes do ocultismo e discípulos de Anton La Vey, fundador da igreja de Satã (1966). E os que acreditam nisso também possuem “provas visuais” na capa interna do álbum: uma foto que mostra um grupo de pessoas no lobby do Hotel Lido, em Hollywood. No fundo da foto, no alto de uma sacada, está um homem sozinho e que geralmente é descrito como “sinistro”. Alguns dizem que o homem seria o próprio LaVey. Outros dizem que ele seria o espírito de um homem assassinado por LaVey em um ritual. Seja como for, os próprios integrantes da banda negaram essas especulações e disseram que todos na foto, inclusive o “sinistro”, seriam modelos contratados. Claro que isso não convence quem está decidido a acreditar na teoria.
E vai ficando melhor. Outros entendem que a música fala sobre um hotel habitado por canibais. Existem os que acreditam que a música seja uma referência à família Manson e seus atos horríveis (1969, citado na música, foi o ano em que a Família invadiu a mansão do diretor Roman Polanski e assassinou cinco pessoas, entre elas Sharon Tate, esposa de Polanski e grávida na época). Só pra finalizar, um grupo acredita que Hotel California fala sobre o efeito do uso de substâncias tóxicas (digam não às drogas, crianças), ou seja, uma bela viagem descrita por um cara chapado, ou sobre dependência às drogas. Como prova disso existe a menção dos termos “colitas” (uma gíria em espanhol para brotos de canábis), “master” e “beast” (termos que fazem referência ao uso de heroína). Enfim, tem interpretação da música para todos os gostos. Só escolher a sua.
A “Verdade”
Então, lá estou eu em minha busca pela internet quando encontro a explicação do próprio Don Henley, o cara que escreveu a música. Ele confirma que a música foi pensada para ter uma pegada mais sombria como, nas palavras do próprio músico, um episódio de Além da Imaginação (Twilight Zone). Mas a intenção macabra/assustadora para por aí. Hotel California é sobre o lado sombrio do sonho americano, a perda da inocência. Nas palavras do autor a canção é “uma alegoria sobre o hedonismo e autodestruição na indústria da música durante a década de 1970”. Ou seja, uma canção sobre as tentações e os excessos atrelados ao sucesso que o Eagles experimentava nessa época.
Então é isso? Quer dizer que as outras interpretações estão erradas? Por que estariam? Faz de conta que Hotel California é um poema de um escritor já morto e não existem anotações do tipo “quando escrevi isso eu quis dizer que…”. Isso faria a percepção dos outros errada?
A Morte do Autor
Existe um texto chamado “A morte do autor” (1968), do escritor, sociólogo, crítico literário, semiólogo e filósofo francês Roland Barthes (1915-1980), que pode nos dar uma ajuda aqui. Barthes, ao elaborar tal teoria literária, A Morte do Autor, faz um interessante resgate histórico sobre o conceito de “autoria”, algo mais recente do que imaginamos. A figura do autor como gênio criador é uma das heranças do Renascimento, que colocou o Homem como o centro da criação. Até o começo da idade média essa preocupação em indicar o autor de uma história não existia. As histórias circulavam por aí, sendo contadas, recontadas e recriadas.
Barthes também critica o que ele chama de “Império do Autor” ou “tirania do autor”, que nada mais é do que a crença no direito de que o sentido daquilo que foi criado, daquilo que foi escrito, só pode ser determinado pelo próprio autor. Para Barthes, o sentido do texto deve estar no próprio texto. O significado depende de quem está lendo. O papel do leitor, dentro dessa ótica, se transforma, ganhando importância no seu contato com o texto escrito. A morte do autor acontece quando nasce o leitor.
Eu carrego comigo duas frases para a literatura. Uma delas é do jornalista e escritor carioca Vitor Abdala, autor de Caveiras e Macabra Mente. “O autor é dono de 50% da história”. A outra escutei durante um evento literário e, infelizmente mesmo, não lembro o nome do autor que a disse: “O leitor é soberano”.
Hotel California é uma musica que permite várias interpretações. Depende do que a pessoa que está escutando carrega dentro de si, suas experiências, sua maneira de ver o mundo. A arte não é apenas ficar parado na frente de uma tela de pintura abstrata tentando entender o que o autor quis dizer. Arte é muito do que carregamos também. E, mesmo que nossa interpretação se distancie daquela do autor, nem por isso está errada.
E isso não vale só pra essa música. Erga omnes.
Ou seja, sua interpretação é diferente, não errada. Isso vai deixar alguns fãs de “gênios da humanidade” fulos, mas, ei! Não fui eu quem disse… Foi o Barthes.
Até a próxima.