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por Leonardo Castelo Branco

Pior do que se perder no cosmos é se perder dentro da própria mente. Essa talvez seja a grande mensagem de Solaris, uma ficção científica com elementos de horror cósmico que arrasta o espectador para um labirinto psicológico onde memórias ganham forma, a razão se desfaz e o espaço sideral se revela como um espelho do subconsciente humano.

A direção introspectiva de Andrei Tarkovsky não se volta para a exploração de novos universos, mas para o confronto com aquilo que carregamos dentro de nós e tentamos apagar. A narrativa, baseada no romance do escritor polonês Stanisław Lem, se desenrola com uma lentidão contemplativa que, em contraste com o ritmo frenético do mundo moderno, torna-se ainda mais inquietante.

O uso de planos longos é fundamental para criar uma experiência imersiva. Cada enquadramento carrega uma dualidade visual, onde os personagens frequentemente aparecem duplicados em superfícies aquáticas, vidros ou metais, simbolizando a dissolução da identidade e a fragilidade da memória. O ritmo contemplativo da cinematografia, combinado à iluminação natural e ao uso intencional de texturas visuais, aprofunda a experiência sensorial, convidando o espectador para um estado de estranhamento.

A história tem início na Terra, onde o psicólogo Kris Kelvin (Donatas Banionis) conversa com o cosmonauta Berton (Vladislav Dvorzhetskiy). Berton relata experiências perturbadoras vividas enquanto sobrevoava Solaris, um planeta coberto por um oceano misterioso que desafia a compreensão humana.

Logo adiante, descobrimos que esse oceano não é apenas uma paisagem alienígena, mas uma entidade ativa, capaz de interagir com a mente humana. Longe de ser um ambiente inerte, ele reage às emoções dos tripulantes, transformando suas lembranças em presenças físicas e desafiando a noção de realidade. Tão enigmática é essa entidade que os esforços para compreendê-la resultaram na criação de um campo de estudo próprio: a Solarística.

Após essa conversa, Berton atravessa uma cidade futurista de carro, mergulhado no fluxo ininterrupto do trânsito. Filmada em Tóquio, essa sequência hipnótica transforma o movimento das luzes e os sussurros mecânicos do trânsito em uma experiência imersiva. A trilha pulsante de Eduard Artemyev, com suas texturas eletrônicas e tons etéreos, torna um simples trajeto em um presságio perturbador. O pesadelo já começou.

Em paralelo a isso, Kelvin parte para a estação espacial sem qualquer vestígio de grandiosidade. Sua jornada é burocrática, fria e silenciosa. Durante o trajeto, quase tudo se reduz a seus olhos e ao brilho distante das estrelas, suspensas em uma imobilidade intimidadora.

Ao chegar na estação espacial, a atmosfera lovecraftiana se insinua em cada detalhe — nos corredores silenciosos, na desordem dos objetos, na sensação de que algo observa sem ser visto. O espaço, normalmente associado à grandiosidade e ao avanço tecnológico, aqui se apresenta como um ambiente decadente, um limbo onde o tempo parece dobrado sobre si mesmo. Um contraste evidente com 2001: Uma Odisseia no Espaço, de Stanley Kubrick, onde o cosmos se apresenta como um espetáculo de precisão e estética futurista.

Outro detalhe inquietante que reforça a estranheza de Solaris dentro do gênero de ficção científica: os personagens não usam trajes espaciais. Sem capacetes ou uniformes que os isolem, estão expostos não apenas ao desconhecido, mas também a si mesmos. A ausência desses elementos sugere que a barreira entre a estação e o planeta já não existe — como se Solaris tivesse se infiltrado em tudo ao redor. Conforme o filme avança para seu desfecho, os figurinos se desgastam e se sujam, refletindo visualmente não apenas a crescente influência do Oceano, mas também a degradação emocional e psicológica dos personagens.

Na estação, Kelvin encontra o Dr. Snaut (Jüri Järvet) e o Dr. Sartorius (Anatoly Alekseyevich Solonitsyn), cujos comportamentos paranoicos denunciam que o ambiente não está apenas em decadência, mas tomado por algo além da compreensão humana. Os dois cientistas evitam respostas diretas, como se qualquer explicação pudesse invocar aquilo que os assombra.

Não demora para que a memória de Kelvin se manifeste. Em uma cena fantasmagórica, o protagonista desperta em sua cama e se depara com uma figura que jamais poderia estar ali. Khari (Natalya Bondarchuk), sua falecida esposa, está de volta. Mas essa não é a Khari que ele conheceu. Ela não possui uma história própria, não é senão um reflexo do que Kelvin lembra dela. Cada traço de sua identidade está limitado à memória do marido, um fragmento incompleto de um amor marcado pela tragédia do suicídio.

O tormento de Kelvin não está apenas na impossibilidade de escapar desse espectro, mas na constatação de que Khari não pertence nem ao mundo dos vivos, nem ao dos mortos. Sua consciência se fragmenta em um ciclo interminável de existência e aniquilação. Em uma das cenas mais angustiantes do filme, ela se mata ingerindo oxigênio líquido, apenas para ressurgir minutos depois, sem lembranças do ocorrido. O verdadeiro abismo aqui reside na repetição incessante da dor e na ausência de qualquer resolução.

Em Solaris, os cientistas não estudam o planeta — são estudados por ele. O oceano enigmático não se comunica nem revela intenções, apenas reage. Tarkovsky transforma Solaris em uma experiência que desafia a lógica e dissolve as fronteiras entre realidade e ilusão. Seu horror não está apenas na incerteza entre real e ilusório, mas na impossibilidade de escapar do próprio subconsciente.

No fim, não há respostas, apenas uma constatação perturbadora: em Solaris, nós é que somos o desconhecido. Somos nós os alienígenas.

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