Queer (em português, excêntrico, insólito, esquisito, bizarro) é uma palavra-ônibus proveniente do inglês usada para designar pessoas que não seguem o modelo de heterossexualidade ou da binaridade de gênero. O termo é usado para representar gays, lésbicas, bissexuais, pansexuais, polissexuais, assexuais e, frequentemente, também as pessoas não-binárias, transgêneras ou transsexuais, de forma análoga à sigla LGBTQ+.
Considerada ofensiva por anos, atualmente tem sido adotada pela comunidade LGBTQ+ com um sentido positivo. De um termo pejorativo, que colocava constantemente à margem os apontados por ela, a palavra passou a denominar um grupo de pessoas dispostas a romper com a heteronormatividade homofóbica e mesmo com a ordem homossexual padronizante, que exclui as formas mais populares, caricaturescas e até artísticas de condutas sexuais.
Ao longo da sua história, o cinema reforçou a definição do heterossexual. Os homossexuais, por causa do Código Hays (uma espécie de cartilha conservadora que zelava pela moral e bons costumes no cinema hollywoodiano) foram jogados de lado nas produções cinematográficas – não só como personagens, mas também como produtores. Somente a partir dos anos 1960, quando estouraram os primeiros movimentos sociais mais sólidos, que essas minorias começaram a ganhar maior representatividade e a criar suas próprias produções.
Dado que a homossexualidade era considerada uma enfermidade física ou psicológica no início do século 20, o código efetivamente legislava a existência de qualquer exceção gay. Embora a homossexualidade não tenha sido explicitamente proibida no texto de Hays, foi ordenado que “não se produzirá nenhum quadro que diminua os padrões morais daqueles que a veem. Por isso, a simpatia do público nunca deve ser jogada para o lado do crime, do mal, do pecado”. Foi também codificado que “apenas padrões corretos de vida deveriam ser apresentados, e que a perversão sexual ou qualquer inferência a ela é proibida”.
Em outras palavras, por muito tempo, os “queers cinematográficos” foram empurrados para o underground, relegados a existir apenas no subtexto – e, na maioria das vezes, como vilões. A fim de obter histórias com cunho homossexual na tela, os cineastas foram obrigados a encontrar maneiras criativas de subverter o sistema.
Os filmes de terror, em particular, criaram um estudo de caso fascinante nas percepções em evolução da presença queer; os cineastas e atores de filmes de terror queer eram muitas vezes forçados a aderir ao tópico do “gay predatório” ou do “gay monstruoso” para reivindicar alguma sensação de poder através da visibilidade e expressões descaradas da sexualidade. Desde as abominações codificadas dos filmes tabu nos rodapés dos anos 1930 sob o jugo de James Whale até o reinado contemporâneo de Boarding School, o Boca do Inferno apresenta para vocês nossa pequena introdução para o cinema de horror queer.
PARTE I: As décadas de 1930 e 1940 – O medo do monstro queer
Toda representação queer foi codificada como tabu quando o Código Hays entrou em vigor em 1934. Mas, ao mesmo tempo, o público estava faminto por histórias fantásticas de monstros como Drácula, Frankenstein, o Homem-Lobo, o Homem-Invisível, e assim por diante – todos avatares convenientes para os socialmente excluídos, os mal compreendidos e os desprivilegiados. Como Harry M. Benshoff explica em seu livro Monsters in the Closet: Homosexuality in the Horror Film (1997), “Antes e durante os anos da Segunda Guerra Mundial, os filmes de terror da Universal Studios começaram a empregar uma representação mais humanista de seus monstros”. Os filmes de Val Lewton, como Cat People, refletiam “uma crescente consciência, comunidades e da dinâmica da opressão homossexual, tal como acontecia na sociedade civil e nas Forças Armadas.” Sendo assim, embora os executivos de Hollywood se recusassem a mostrar o verdadeiro boom do horror no cinema americano, eles estavam dispostos a pagar por histórias sobre párias sociais e figuras sexualmente não-normativas. Os fãs de terror, portanto, encontraram-se inundados com alguns dos personagens mais icônicos de todos os tempos.
The Old Dark House (A Casa Sinistra, 1932) – Não é de surpreender que James Whale (um conhecido diretor gay), tenha trazido à vida alguns dos mais emblemáticos monstros universais durante o auge da década de 1930. Whale imbuiu seus filmes com uma forte sensibilidade gay: em The Old Dark House, cinco pessoas (Raymond Massey, Gloria Stuart, Melvyn Douglas, Charles Laughton e Lilian Bond) abrigam-se numa casa isolada para fugir de uma tempestade. Temas tabus como comportamento homossexual, androginia e desvio sexual são insinuados ao longo do filme. Whale também lançou o famoso ator (e melhor amigo) Ernest Thesiger para interpretar um dos irmãos Femm. The Old Dark House é um dos filmes gays mais influentes de sua década.
The Bride of Frankenstein (A Noiva de Frankenstein, 1935) – Whale também dirigiu uma sequência de seu sucesso, Frankenstein (1931), desta vez usando o intrigante Dr. Septimus Pretorius (Ernest Thesiger) para atrair o Dr. Frankenstein (Colin Clive) de volta ao seu laboratório após os eventos do primeiro filme. Por meio do retrato de Thesiger, Pretorius interpreta um dos personagens gay mais identificável em uma época onde esta façanha seria prontamente banida. E, finalmente, o próprio monstro acaba como um herói altruísta, que se tornou uma espécie de trunfo no início do cinema de horror: como Benshoff escreve em Monsters in the Closet: Homosexuality in the Horror Film, “muitos evitavam o casal ‘normal’ e se concentravam unicamente em seus protagonistas queer, sugerindo, assim como os filmes de terror das décadas posteriores, que é o monstro queer que o público realmente vê e se identifica, e não os heróis e heroínas heterossexuais. ”
Dracula’s Daughter (A Filha de Drácula, 1936) – Várias décadas antes do boom de vampiras lésbicas da década de 1970, havia Dracula’s Daughter, centrada em uma personagem desesperada para abandonar a doença do vampirismo e viver livremente como uma mulher normal (traduzindo: sob o jugo de um homem controlador). A condessa Marya Zaleska (Gloria Holden) seduzia suas vítimas – de ambos os sexos – para drenar-lhes o sangue. Ela lutava contra os “impulsos horríveis” que ela tentava reprimir, e até começa a ver um psiquiatra para analisar o “vampiro” em seu interior (claramente uma alusão aos tratamentos para curar a homossexualidade). Embora ela fosse mais uma “vilã queer”, ela cativou o público de 1930 devido ao seu desejo de expurgar o mal que faria ao próximo.
Rebecca (Rebecca, a Mulher Inesquecível, 1940) – Baseado no romance de Daphne du Maurier e adaptado por Alfred Hitchcock, Rebecca conta a história de uma garota comum (interpretada por Joan Fontaine) que se casa com um homem acima de sua posição, o aristocrata Maximilian “Maxim” de Winter (Laurence Olivier) e é forçada a viver na sombra da esposa morta de Maxim, Rebecca. A nova Sra. de Winter também se sente intimidada pela governanta Sra. Danvers (Judith Anderson) e pela responsabilidade de ser a nova castelã de Manderley. O ódio de Danvers pela nova castelã só é superado por sua obsessão com a bela e misteriosa Rebecca. Danvers obsessivamente mexia na gaveta de roupas íntimas da “patroa” morta e mergulhava com carinho em lembranças de quando ajudava a senhora Rebecca a se despir após as festas. Quase 80 anos depois, a Sra. Danvers continua sendo um dos grandes ícones queer codificados de todos os tempos.
Cat People (Sangue de Pantera, 1942) – O lendário produtor Val Lewton trouxe Cat People, a história de uma imigrante sérvia chamada Irena Dubrovna (Simone Simon) que devia se abster de qualquer sensação sexual para que não despertasse a maldição de seus descendentes, que condenavam as mulheres de sua tribo a se transformarem em panteras assassinas se seu desejo ou ciúme fosse despertado. Sua relutância é tida entre os críticos como sendo o desejo lésbico reprimido e codificado. Além de ser uma estranha nos Estados Unidos com costumes e tradições diferentes, Irena é ainda assombrada por sua incapacidade de consumar um casamento heteronormativo.
The Uninvited (O Solar das Almas Perdidas, 1944) – O conceito queer passou de figurativo para literal neste filme de fantasmas, onde um personagem lésbico codificado é na verdade um fantasma. Os irmãos Roderick (Ray Milland) e Pamela Fitzgerald (Ruth Hussey) adquirem uma casa abandonada na costa da Cornualha. Após um entusiasmo inicial, eles começam a ficar apreensivos com rumores de que o lugar seria assombrado. Em seguida, passam a receber visitas de Stella Meredith (Gail Russell), uma jovem envolta numa atmosfera maligna e cuja mãe seria o fantasma responsável pelos ruídos que têm perturbado a paz do local à noite. Fica claro que há um mistério no ar, que a casa possui um segredo, e que o avô de Stella sabe muito mais do que confessa. Além disso, parece haver um segundo fantasma, empenhado em proteger a moça, ao contrário do outro, que deseja sua ruína. A relação da protagonista, Stella, com o misterioso fantasma que ela pensa ser sua mãe, começa como uma paixão que tem sido interpretada como subtextualmente queer. “O fascínio da heroína é diretamente identificado como amor”, escreve Patricia White em Uninvited: Classical Hollywood Cinema and Lesbian Representability (1999), “Mas a condição desse desvelamento é que o objeto de sua atração se torna literalmente sua mãe. O filme, portanto, dramatiza a forma como a narrativa edípica feminina funciona como suporte para outra história, um desejo lésbico que é evocado e coberto.”
Um conto clássico de assombração. Um conto clássico de desprendimento gay!
The Picture of Dorian Gray (O Retrato de Dorian Gray, 1945) – Jovem, bonito e libertino, o aristocrata Dorian Gray (Hurd Hatfield) venderia até a alma para permanecer jovial. Guiado pelo amigo decadente Lord Henry Wotton (George Sanders), afunda-se em vícios degradantes e orgias homéricas. Vaidoso, ao mirar continuamente o retrato que dele fez o pintor Basil Hallward (Lowell Gilmore), Dorian faz um pacto fatal com o Diabo. Com isso, o tempo passa, mas ele remoça e fica cada dia mais belo, enquanto, à sua volta, todos envelhecem e morrem. Entretanto, escondido no sótão, o retrato vai ficando cada vez mais grotesco e desfigurado. Após a sua exibição, a puritana Legião da Decência deduziu que partes do filme “poderiam ser interpretadas como se estivessem transmitindo implicações sobre a homossexualidade” o que chega a ser ridículo, pois no próprio livro ficam claras as preferências sexuais de Dorian e o amor platônico de Basil pelo seu modelo.
FONTES:
Wikipedia – Queer Horror
Vulture – 50 Essential Queer Horror Films
Wussymag – Haunted: The intersections of queer culture and horror movies
Dazed – Queer horror: a Primer
Monsters in the Closet: Homosexuality in the Horror Film (Harry M. Benshoff – 1997)
New Queer Cinema: The Director’s Cut (Ruby Rich – 2013)
Uninvited: Classical Hollywood Cinema and Lesbian Representability (Patricia White – 1999)
A SEGUIR…
Os anos 50 – Monstros cafonas e mais subtextos queer
Incrível o texto! Desconhecia completamente esse lado do cinema queer da primeira metade do século XX! Imagino que o boom da década de 60 tenha forte relação com a contracultura.
Belo texto! Parabéns, Ian!
Ansioso pelas continuações desde já.
Vivi para ver a problematização de filmes de terror. Não demora e os justiceiros sociais vão começar a perseguir os autores de “obras proibidas”. Silêncio dos inocentes? Nem pensar! Ainda que o conflito humana estenda-se aos homossexuais, este mundo não pode ser retratado como lentes de negatividade, como retrata-se os conflitos heterossexuais. É uma abordagem existencial bem restrita.
Fomos dois. Apesar de um bom texto no geral, com informações ricas, fica evidente sua afetação a uma propaganda político – partidária modista e muitas vezes reducionista de mundo.
Abordagem muito interessante sobre esse período da história do cinema. E mais interessante ainda é como um simples ponto de vista incomoda algumas pessoas…
Esse texto é muito importante para entendermos a importância da representatividade na sétima arte. Aguardo a continuação…