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O mistério em torno do conteúdo de uma caixa de papelão está entre os momentos mais perturbadores do cinema dos anos 90, rivalizando com a face arrancada de um policial por Hannibal Lecter em O Silêncio dos Inocentes (1991). Recordo com precisão a minha ida aos cinemas na época da estreia, quando as propagandas e cartazes estampavam frases que pediam que o final não fosse revelado. Quando os créditos finais subiram pela tela na sala escura do cinema, poucas pessoas deixavam suas poltronas, expressando incredulidade enquanto uma sensação pessimista envolvia os espectadores. Um rapaz, na mesma fileira em que eu estava, boquiaberto, era consolado pela companheira, como se estivesse sido golpeado na altura do estômago. O “efeito Se7en” perduraria por um bom tempo e alteraria os thrillers da Sétima Arte como produções de impacto, com mais ousadia e surpresas.

A jornada sombria dos detetives Mills (Brad Pitt) e Somerset (Morgan Freeman) por uma cidade deplorável, cinzenta e chuvosa, daria um tom mais agressivo às produções vindouras, assim como desenvolveria a ideia do final surpresa. Mesmo não sendo novidade, principalmente entre os gialli e muitos dos slashers, o longa atiçou Kevin Williamson a desenvolver o primeiro Pânico (Scream, 1996), de Wes Craven, além de mostrar a M. Night Shyamalan que a fórmula poderia ser um sucesso. Também influenciou outros assassinos em série que despontariam em thrillers com narrativa “pesada“, como Beijos que Matam (Kiss the Girls, 1997), O Colecionador de Ossos (The Bone Collector, 1999), e impulsionados por temáticas hereges, como Ressurreição: Retalhos de um Crime (Resurrection, 1999). Até a franquia Jogos Mortais é, de certa forma, um herdeiro bastardo das ações de John Doe.

David Fincher vinha em baixa como cineasta promissor. Experiente diretor de videoclipes, havia arriscado na condução de longas com o irregular Alien 3 (1992), quando o roteiro de Andrew Kevin Walker chegou às suas mãos. O texto original foi inspirado na experiência própria do roteirista quando deixou para trás o subúrbio da Pensilvânia para morar em Nova York, sentindo a diferença cultural de um ambiente bucólico para uma cidade tomada pela prostituição, uso de drogas e violência. Era o cenário ideal para o desenvolvimento de um assassino, incomodado com os pecados, e para aprofundar o detetive recém-chegado a um local similar em busca de condições melhores para com sua esposa Tracy (Gwyneth Paltrow).

O roteiro foi comprado pela produtora italiana Penta Film, em 1990, que contratou o cineasta Jeremiah S. Chechik para comandar o projeto. Ambos queriam um final menos intenso e pediram para Walker atenuar a violência apresentada. Ele chegou a escrever treze versões do mesmo rascunho, sem que o material ganhasse luz verde. Em dificuldades financeiras, a produtora vendeu o roteiro a Arnold Kopelson, que o apresentou à New Line Cinema. Sob nova direção, Chechik abandonou o filme, enquanto a nova produtora tentava contratar Guillermo del Toro ou Phil Joanou. Fincher foi a terceira opção, embora também não tenha se empolgado com as primeiras páginas do roteiro original. Assim que chegou ao final, o diretor percebeu que se tratava de um trabalho único e que poderia mostrar um outro lado de sua capacidade como cineasta. A New Line até apresentou uma outra versão do texto de Walker, com um final mais “alegrinho“, mas Fincher insistiu na manutenção da conclusão aterradora.

Outro que pressentia que Seven pudesse mudar sua carreira foi o astro Brad Pitt. Vindo de produções que exploravam sua beleza física, o longa de Fincher poderia mostrar um outro viés de suas performances. O longa realmente mostrou vertentes até então desconhecidas do ator, que passaria a receber a partir de então papéis variados. No entanto, o mais engraçado dessa mudança foi o fato do filme atrair aos cinemas jovens fãs do ator e membros de fãs clubes e que não estão acostumados ao teor violento desse tipo de produção. Isso também afetou muitos críticos da época, que criticaram os excessos considerados gratuitos como o de um filme “exploitation“. Contudo, o longa, orçado em quase US$34 milhões, arrecadou US$327 em todas as suas passagens pela tela grande, e ainda passou a ser mais cultuado nos anos seguintes, sendo colocado hoje nas listas dos melhores filmes de todos os tempos em publicações da Total Film, Time Out e Empire, além de ser citado no livro “1001 Movies You Must See Before You Die“.

Em reexibição nos cinemas na comemoração de seu aniversário de 30 anos, Se7en – Os Sete Crimes Capitais continua “um soco no estômago“. A trama apresenta o tenente William Somerset (Freeman), a uma semana de sua aposentadoria, se unindo ao novato David Mills (Pitt), na investigação da morte de um homem obeso (Bob Mack), encontrado preso a uma cadeira, com um balde de vômito abaixo dele e com o rosto sobre um prato de macarrão instantâneo, com evidências posteriores de que ele teria “morrido de tanto comer“, tendo seu estômago estourado pelo excesso. Designado forçadamente pelo seu capitão (R. Lee Ermey) a investigar o crime, o impaciente tenente confronta as diferenças interpretativas de seu mal-humorado parceiro.

No dia seguinte, uma terça-feira – os dias da semana são expressos pela contagem final para a aposentadoria de Somerset e pelos corpos encontrados -, uma nova vítima chega ao conhecimento de Mills, o advogado Eli Gould (Gene Borkan), que teria cortado parte de seu corpo, e morrido em posição de penitência, com a palavra “Ganância” em destaque. Ao descobrir lascas de madeira no intestino da primeira vítima, Somerset retorna à cozinha e descobre atrás de um móvel, que arrancou as tais fibras, a palavra “Gula“. É o ponto de partida para que ele entenda a relação entre os dois crimes, nas ações de um assassino em série. Não demora para que eles descubram o que sobrou do que exemplifica a “Preguiça“, em uma das cenas mais perturbadoras da produção pela forma como Theodore “Victor” Allen (Michael Reid MacKay) atravessou um ano imóvel, sendo mantido preso a uma cama, com as visitas constantes de seu algoz.

Frases deixadas pelo vilão trazem citações que referenciam obras como “Paraíso Perdido“, de John Milton, e “Divina Comédia“, de Dante Alighieri. São os estudos em relação aos poemas, assim como a investigação sobre a retirada de livros da biblioteca, que permitem que os investigadores cheguem à casa de John Doe, em uma uma perseguição por corredores estreitos e apartamentos – um momento desnecessário para as intenções da narrativa, criando uma movimentação que poderia mudar toda a concepção planejada: e se Mills fosse morto na troca de tiros? Prefiro o tom investigativo, deixando para o último ato a revelação do modus operandi do personagem interpretado por Kevin Spacey, escondido do material publicitário a pedido do próprio ator, em uma revelação que contribuiu para o impacto final.

Além da ambientação favorecer a perspectiva de apatia e incerteza, a personagem de Gwyneth Paltrow contribui de maneira significativa para o tom proposto. Sem conhecidos na cidade e apenas existindo como esposa de Mills, a relação de doçura e amargura de Tracy no contato com Somerset, evidenciando as angústias de uma mulher que se sente estranha ao ambiente, ajuda a humanizar o conteúdo e amplia o soco estomacal do último acorde. Atuava como professora e teve que abandonar a profissão e a cidade tranquila do interior pelo marido em busca de ascensão profissional. Mills tinha tudo o que precisava ao seu alcance, como a esposa carinhosa e seu cachorro, isentos do pecado das ruas, o que desenvolveu a inveja justificada no ato de John Doe.

Apesar da boa condução de Fincher, além da sequência de perseguição que considerei desnecessária, há ainda outro acréscimo que eu deixaria de fora do enredo de Se7en. A sequência final não precisava de um helicóptero acompanhando o desfecho, assim como visões aéreas do encontro final. Teria sido melhor um final teatral, com três atores em cena além do entregador, com o deserto servindo a um cenário quase apocalíptico. Essa edição de videoclipe, com diversas câmeras em movimento, acelerou a narrativa, quase de maneira frenética, típica de uma perseguição, sendo que o drama construído já seria suficiente para o incômodo do espectador.

Mais do o conteúdo de uma caixa, remetendo ao princípio da incerteza de Schrödinger, Se7en – Os Sete Crimes Capitais é um thriller de degradação psicológica. Mesmo com todas as reinvenções do Cinema, o filme se mantém com suas características intensas originais como na experiência da primeira sessão. Ainda que você já saiba como ele irá terminar e saiba de boa parte de seus caminhos narrativos, é incrível como ele mantém sua inquietude perversa, consumindo o espectador para reflexões sobre religiosidade e ausência de temperança. Além de seus aspectos técnicos, favorecidos pelas interpretações, o longa passeia por temáticas que vão da arte, da concepção do Inferno na literatura à idolatria. Mais do que inspirar camisetas, como desdenhou Mills pelos alcances previstos pelo assassino, John Doe demonstrou inteligência e paciência na construção do desespero e da provocação, atingindo o espectador como um soco envolto em amargura e depressão.

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