Senhor das Moscas
Original:Lord of the Flies Ano:2024•País:UK Páginas:352• Autor:William Golding, Aimée de Jongh•Editora: Suma |
Publicado em 1954, Senhor das Moscas é um clássico atemporal que inspirou e inspira diversas obras nas mais diferentes mídias. Battle Royale, Jogos Vorazes, A Dança da Morte, Maze Runner e a série de sucesso Yellowjackets são alguns exemplos, além da própria obra já ter sido adaptada duas vezes para o cinema. Escrito por William Golding, ganhou até mesmo o prêmio Nobel de literatura em 1983 e é considerado um dos 100 melhores romances do século XX pela Modern Library, sendo leitura obrigatória em diversos colégios ao redor do mundo.
A ideia de Golding era retratar como crianças se comportariam em uma situação extrema – no caso, perdidos em uma ilha após um acidente de avião -, sem apelar para heroísmos exagerados e histórias de superação, como era o padrão de outras obras. E se crianças simplesmente agissem como crianças, cedendo aos seus instintos mais primitivos? Em meio a uma época pós Segunda Guerra Mundial, com todo o massacre que ocorreu, o positivismo e heroísmo desmedido perde a força. É aí que mora o brilhantismo de Senhor das Moscas e o motivo de ser mundialmente aclamado, sendo precursor de várias distopias. Pessoas pensam diferente, agem diferente, e tem caráter diferentes. Em situações extremas, é absurdo achar que toda uma sociedade seria sensata e controlada do modo que os romances costumavam mostrar, ainda mais crianças se vendo livres de adultos e regras sociais. Não demora para seres inocentes logo terem atitudes bestiais descontroladas.
Em comemoração aos 70 anos da publicação de Senhor das Moscas, a editora Suma lançou a versão em quadrinhos do clássico, adaptado e ilustrado por Aimée de Jongh.
Um avião cai em uma ilha deserta, e apenas as crianças sobrevivem. Rapidamente, um garoto chamado Ralph convoca todos para uma reunião, dizendo que precisam se organizar para que consigam ter uma convivência pacífica e prática até serem resgatados. Em contrapartida, um garoto chamado Jack tem interesse em ser o líder de todos e aparenta ser rígido e cruel, mas ele e Ralph entram em um acordo, e Jack fica responsável pela caça. A tarefa satisfaz o garoto, porém, conforme os dias passam, ele quer mais. As crianças muito pequenas pouco ajudam, Ralph sempre resolve tudo com o diálogo e de forma diplomática, e Jack quer mais ação e brutalidade, deixando seu lado mais selvagem aflorar. Com uma provável ameaça à espreita, não demora para que outros sigam seu exemplo, fazendo o caos e instintos primitivos dominarem, até que a linha da moralidade é ultrapassada de forma irreversível.
É um enredo que parece simples, mas é cheio de simbolismos e possui diversas camadas. O filósofo Thomas Hobbes afirma em sua obra, Leviatã, que a natureza do homem é ser egoísta, ambicioso e competitivo, e vemos isso claramente em Senhor das Moscas. Com crianças, fica ainda mais chocante a verdade. Suas noções do que é certo e errado ainda são borradas, especialmente dos mais novos, que apenas seguem os mais velhos e estão interessados em brincarem, dormirem e comerem, prazeres simples e imediatos. Quando crianças maiores começam a se comportar de forma violenta, seu instinto de sobrevivência diz para segui-los e se preservar, não os contrariar e virar alvo. Ralph possui um forte senso de liderança e justiça, e tenta passar isso aos outros, porém, quando confrontado por um agente do caos sedento por poder – Jack –, que mostra que seu lado é mais divertido e cheio de recompensas (comida, diversão, sem tarefas cansativas), perde rapidamente o apoio e a pequena sociedade entra em colapso. Assim que percebem que o lado de Jack é, na verdade, muito mais cruel e violento justamente por não ter restrições ou organização alguma, já é tarde demais. A barbárie toma conta, a trama fica cada vez mais intensa, e os mais fracos ou se adaptam e seguem o líder mais forte, ou serão engolidos pela selvageria desmedida. Viver ou morrer, essa é a lei mais primitiva. Em uma situação extrema como essa, sem comida ou ajuda, o mais forte é cegamente seguido por oferecer prazeres imediatos, mesmo sendo claramente a pior opção. Golding faz um paralelo com a própria democracia e deixa explícita uma ferrenha crítica à sociedade, especialmente após a guerra (e que vale até os dias de hoje): deixaram subir ao poder alguém que vai massacrar tudo e todos em seu caminho para alcançar seu objetivo, e será apoiado por isso ao oferecer um discurso manipulativo cheio de promessas atrativas, tocando exatamente no ponto fraco da sociedade e prometendo que será diferente. A sensatez e a ponderação são deixadas de lado, e as consequências disso só serão percebidas tarde demais. As portas do extremismo já foram abertas e ganharam força, discursos de ódio são proferidos sem medo de repreensão, o desastre é, e foi, inevitável.
Nessa versão em quadrinhos, Aimée de Jongh utiliza cores vibrantes e traços expressivos, captando muito bem toda a essência da obra e a crescente atmosfera de tensão, conseguindo passar os pensamentos de personagens a partir de seus desenhos. Raiva, inveja e medo são facilmente percebidos apenas pelos olhares, sem necessitar de palavras. A paisagem também sofre mudanças significativas; a ilha outrora paradisíaca, aparece em chamas e hostil conforme a desordem se estabelece. Para quem nunca teve contato com a obra de Golding, o quadrinho é uma ótima oportunidade de conhece-la, sendo muito eficaz em sua releitura, que deve agradar também quem já conhece a história.
Em Senhor das Moscas, a natureza humana é profundamente explorada sob condições de grandes adversidades, e vemos a perda da inocência de crianças que não entendem completamente suas atitudes ou a sociedade como um todo. O abandono da moralidade e a degradação de suas aparências, ficando mais bestiais tais quais suas ações, faz com que tudo seja ainda mais perturbador, com eventos que deixam a narrativa cada vez mais impactante e sombria. Como voltarão para suas vidas após as coisas que fizeram e viram? Quais os traumas que ficarão? Algumas crianças deixaram a escuridão dentro de si aflorar indiscriminadamente, e isso pode se tornar um caminho sem volta. Será que realmente vale tudo pela sobrevivência, inclusive perder a humanidade?