![]() Canina
Original:Nightbitch
Ano:2024•País:EUA Direção:Marielle Heller Roteiro:Marielle Heller, Rachel Yoder Produção:Amy Adams, Anne Carey, Marielle Heller, Sue Naegle, Thiago Andreo Barbosa Nogueira, Stacy O'Neil, Christina Oh Elenco:Amy Adams, Scoot McNairy, Arleigh Snowden, Emmett Snowden, Jessica Harper, Zoë Chao, Mary Holland, Archana Rajan, Nate Heller, Darius De La Cruz, Ella Thomas, Stacey Swift |
“Você não adora ficar com ele em casa o tempo todo? Deve ser maravilhoso!”
“Essa é uma ótima pergunta porque eu adoraria me sentir satisfeita. Mas, em vez disso, me sinto como se estivesse presa em uma prisão criada por mim, onde me atormento ao ponto de ficar comendo compulsivamente biscoitos recheados à meia-noite para não chorar. E sinto que as normas sociais, as expectativas de gênero e a velha biologia me forçaram a se tornar essa pessoa que não reconheço, e por isso, fico irritada o tempo todo. E, sabe, eu adoraria enviar algumas de minhas próprias obras de arte para críticos dos sistemas atuais e que articulam isso, mas meu cérebro simplesmente não funciona como antes de eu ter o bebê, e agora eu sou burra. E tenho muito medo de que não serei inteligente, ou feliz ou magra nunca mais.”
Em 1915, Franz Kafka publicou uma de suas obras de maior relevância sobre um homem comum, um caixeiro viajante, que declina de suas vontades em prol de suas obrigações financeiras e se transforma em um gigantesco inseto. Amplamente simbólico, o livro “Metamorfose” aborda temas como solidão, falta de perspectiva, sensação de não pertencimento, dificuldade de adaptação, opressão… A angústia de Gregor Samsa faz paralelo com a Mãe do longa Nightbitch, de Marielle Heller, que traz de maneira divertida no formato de uma crônica as mudanças de uma mulher na dedicação absoluta aos cuidados do filho.
Como dizia aquela propaganda: quando nasce um bebê também nasce uma mãe, em um pacote que envolve responsabilidades e sacrifícios. A personagem de Amy Adams, quando questionada sobre não ser a mesma pessoa de antes, diz acertadamente que morreu no parto. E ela representa muitas mulheres, quase sempre mães solteiras, que são obrigadas a deixar seus hobbies, seus momentos de prazer, seu cuidado pessoal e até a profissão para cuidar de um filho pequeno. E o que mais impressiona é que, mesmo com a linguagem bem humorada, isso é muito mais comum e assustador do que se imagina, em uma realidade machista em que somente as mães são obrigadas a abandonar a vida anterior, numa transformação surreal em algo completamente diferente, com a morte da versão ideal.
Começa em mais uma rotina de compras no supermercado onde, com a criança falando que poderia ser um robô ou uma aranha, ela encontra uma amiga e desabafa internamente no diálogo exposto na introdução desse texto, em um resumo de suas angústias. Na verdade, após a pergunta, ela simplesmente respondeu o que se espera: “Ah, sim, eu gosto. Eu adoro. Eu amo. Eu adoro ser mãe.“. Em uma edição frenética, o dia-a-dia da Mãe é exemplificado, alternando cenas em que prepara o café da manhã enquanto observa o filho, alimenta-o, leva-o para passear, prepara o café da manhã, dá comida pra ele, leva-o para passear…Ao mesmo tempo em que sua rotina traz alguns excessos caricatos, seus pensamentos são expostos, seja em casa, no clube do Bebê Livro, no parquinho, com o olhar ferino na excelente interpretação de Amy Adams: “Alguém que irá fazer xixi na sua cara sem pestanejar“.
E o pai? Denominado nos créditos como “Marido” (Scoot McNairy), ele está sempre ausente em suas viagens de trabalho, mas quando está em casa se mostra perdido nos principais cuidados da criança, sempre pedindo a ajuda da Mãe nas tarefas rotineiras. Em sua introspecção, a Mãe se vê agredindo as pessoas, esbofeteando o marido, atacando-o como uma fera descontrolada ou respondendo absurdos, enquanto começa a notar mudanças graduais em seu corpo como surgimento de pelos nas costas e novos mamilos, além de seus caninos se tornando pontiagudos. Atribuindo inicialmente a sintomas de estresse e à perimenopausa – um modo simplório de resumir um combo de angústias – a Mãe logo se convence que está se transformando em um cachorro.
Alguns de seus pensamentos recorrem à lembranças de sua infância, quando sua mãe se viu obrigada a abandonar um possível talento como cantora em prol da filha; mas também há vestígios dos preparos da avó com indicação de rituais de bruxaria. Seriam recordações ou sonhos que tentam explicar sua nova condição? Em um deles, ela chega a ver sua mãe saindo de casa e andando como um quadrúpede. Como em um filme de licantropia, ela passa a ter o olfato mais aguçado e ser perseguida por cães, ora no parque, ora à noite, chegando ao ápice quando mata seu gato de estimação, nas poucas vezes em que conseguiu fazer seu filho dormir.
Inspirado em um romance de Rachel Yoder, Nightbitch é um retrato dramático com elementos sutis de body horror, numa linguagem divertida para apresentar um soco no estômago nos encantos da maternidade. O inferno simbólico de muitas mães não se constrói apenas nas gags de um filho encapetado, que pinta as paredes de casa e acorda a mãe com fezes na mão, mas também em tudo que envolve um relacionamento. Para isso, é preciso dizer o óbvio: não é somente a mulher que tem filhos; e o pai também precisa se desdobrar na criação e entretenimento do pequeno de maneira a nenhum dos dois ficar sobrecarregado. Quando a balança pesa para um lado, há o desequilíbrio emocional e mudanças de personalidade, assim como transformações físicas.
Diferente de Gregor Samsa, já no limite de seu estresse, o filme de Marielle Heller traz as tais mudanças de maneira gradual. Quando a Mãe finalmente aceita sua nova condição, a sociedade, que a julga sem saber o que a levou a isso, expõe o mesmo estado de repugnância da obra de Kafka. A sensação de deslocamento, de não pertencimento e opressão é inevitável. Envolto em simbologia e surrealismo, com a profundidade necessária para sua compreensão, Nightbitch teve uma passagem pelo Festival de Toronto e em alguns cinemas lá fora, e também conquistou alguns prêmios, além do abanar dos rabos de alguns críticos. É um filme que traz questionamentos sobre se existe vida após a gestação e como lidar com a nova realidade, rosnando para quem finge que a maternidade é somente mil maravilhas.