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Como Nascem os Fantasmas
Original:Como Nascem os Fantasmas
Ano:2025•País:Brasil
Autor:Verena Cavalcante•Editora: Suma

A transição da infância para a adolescência nunca é fácil. A perda da inocência, os primeiros sentimentos de desejo aflorando, mudanças no corpo, hormônios desregulados, a vontade de querer a aceitação de pessoas irrelevantes, o receio de ficar para trás seja no desenvolvimento corporal, seja possuindo itens “da moda”. A alegria e satisfação de brincadeiras simples dão lugar a exigências imediatas, insatisfação constante, uma necessidade urgente, quase absurda, de ser marcante e considerado alguém descolado e “adulto” o suficiente entre os demais de mesma idade. A pré-adolescência é um período complicado de adaptação, onde a criança tenta abandonar a identidade dada a ela pelos pais e começa a ir atrás da própria, muitas vezes se rebelando. Em Como Nascem os Fantasmas, publicado pela editora Suma, Verena Cavalcante aborda essas mudanças, entre outros traumas e críticas sociais, em uma narrativa de terror sobrenatural impactante.

Em uma cidade do interior paulista em meados dos anos 90 conhecemos Beatriz, uma criança de 11 anos cuja mãe faleceu após seu nascimento. Criada pela sua avó médium, dona Divina, Beatriz sempre teve uma profunda relação com o mundo espiritual e vive na sombra da mãe que nunca conheceu. Dona Divina insiste que a neta é praticamente a reencarnação de sua falecida filha, e a trata como tal. Beatriz não tem as próprias roupas ou brinquedos, são todos de sua mãe, mesmo que mal caibam nela – fato que a faz ser constantemente criticada pela avó. Seu temperamento é forte e adora fazer traquinagens, o que também é reprovado por dona Divina, então tenta ao máximo ser a representação perfeita da mãe para que a avó enfim fique satisfeita e mostre amor. Para Beatriz, sua avó é uma deusa suprema por conta de seus dons, e seu desejo – entre a repressão da própria individualidade e a confusão da pré-adolescência – é ser igual a ela. Uma noite, enquanto cuidava de seu avô moribundo, as luzes da casa se apagam subitamente e a menina encontra a avó em um estado catatônico no banheiro; Dona Divina acaba de receber um espírito: o fantasma de uma criança brutalmente assassinada cujo corpo estava desaparecido. Após esse assustador episódio, Beatriz decide que quer se tornar médium de qualquer jeito, custe o que custar, e que não mais viverá sendo uma cópia malsucedida da mãe. Sua busca lhe custará muito, e fantasmas escondidos virão à tona para revelar terríveis verdades – sobre sua família e sobre si mesma.

Verena cria uma ambientação nostálgica e cheia de familiaridades, especialmente para aqueles que cresceram nos anos 90. Brinquedos da época, o que era exibido na televisão, como a mídia era (ainda mais) sensacionalista, lendas e mitos populares bem enraizados, entre outros elementos e referências, fazem parte dessa narrativa que não tem nada de delicada e sutil – tal qual a própria puberdade, que chega sem aviso prévio. Poderosa, crua e intensa, a escrita da autora é extremamente gráfica e lembra um pouco o estilo de Clive Barker, cheia de momentos perturbadores com detalhes de tirar o fôlego. Graças a isso, o horror psicológico presente e os sentimentos dos personagens – seja de raiva, sofrimento ou até mesmo timidez – saltam das páginas e nos são transmitidos com uma potência quase sufocante. Sentimos a dor da realidade de Beatriz, que é uma personagem cheia de complexidades e dúvidas, que se sente sozinha e perdida no mundo, que está passando por mudanças que não entende e não tem auxílio de ninguém, apenas rigidez e controle. Por isso, vai em busca da liberdade que o mundo espiritual promete.

Não só Beatriz tem uma construção muito interessante, mas também dona Divina. Com uma linguagem simples e direta, mesmo com o sobrenatural tão recorrente, o enredo é cheio de realismo, abordando herança e pressão familiares bem conhecidas. A dinâmica das duas é carregada de tensão e dor e, conforme avançamos, entendemos os motivos para agirem de determinado modo, apesar de ambas criarem feridas irreversíveis com seus erros.

O sobrenatural faz parte da trama desde o início, de forma natural. Médiuns e curandeiras eram muito procuradas, especialmente em cidades pequenas naquela época, de modo que esse elemento não é forçado ou usado de forma leviana, pelo contrário. O sobrenatural representa a dor, a opressão sofrida, o trauma, o abandono da infância, a mudança, o crescimento, o peso de gerações.

Assim como em Inventário de Predadores Domésticos, Verena mostra que os maiores horrores são cometidos por humanos, e os maiores medos são resultados de traumas obtidos em ambiente familiar, onde deveria ser o lugar de maior segurança. O mundo é um ambiente hostil cheio de ódio e injustiças, e são esses sentimentos de vingança e a busca por justiça que fazem nascer fantasmas que não se apagam e perduram.

Doloroso e pesado, porém necessário, Como Nascem os Fantasmas é uma obra forte que arrebata o leitor sem dó, sem suavidade. Cheio de questões morais e familiares, críticas sociais e espiritualidade e um horror brutal, é uma leitura que merece atenção. Mas fique atento: uma vez que os fantasmas são invocados, não há como reverter as consequências.

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