O Felipe é um cara legal! Além disso é multiuso. Além de ser jornalista (por profissão), e articulista/arqueólogo de filmes bizarros aqui do Boca do Inferno, ainda acha nas horas vagas tempo para dirigir filmes! É ele a mente criativa por trás da nova pérola da Necrófilos Produções Artísticas, e ainda nos concedeu uma breve entrevista por e-mail.
Boca do Inferno: O que fez o filme demorar tanto pra ser lançado?
Felipe M.Guerra: Meu amigo, essa história é longa… Canibais & Solidão foi concebido como uma comédia romântica de humor negro que eu pudesse filmar em uns dois ou três meses, enquanto escrevia o roteiro de Entrei em Pânico Parte 2, isso na metade de 2003. Tentei até planejar cenas que envolvessem relativamente poucos personagens ao mesmo tempo, para não ter problemas na hora de reunir os atores. E, por motivos que fogem à minha compreensão, a produção teve uma maré de azar dos diabos, e os três meses se transformaram em três longos e desgraçados anos, durante os quais pensamos inúmeras vezes em desistir. As filmagens começaram em novembro de 2003.
Boca do Inferno: No créditos finais há agradecimentos a atores que fizeram outros personagens e não os fazem mais na versão final. Por que foram substituídos?
Felipe M.Guerra: A estreia estava prevista para o Dia dos Namorados de 2004, mas um dos atores principais, o Marcelo Ferranti – que estava também no elenco de meu filme anterior, Entrei em Pânico…, e ia fazer originalmente o personagem chamado “Marcelo” -, desistiu, por problemas pessoais. E todos nos ferramos, porque faltava filmar apenas uns 20% das cenas e não poderíamos fazer sem ele. A solução foi implorar para que o Fábio Prina – que interpretou o vilão em Entrei em Pânico… – assumisse o papel de Marcelo, mas aí ele veio com suas exigências (entre elas, a de não aparecer somente de calcinha numa cena, como acontecia na primeira versão). Tudo o que foi filmado com o outro ator teve que ser refeito, e algumas pessoas não puderam mais participar das regravações, por um motivo ou outro, e por isso acabaram substituídas. Entre elas, a Kátia Hoffelder Dalcin, que interpretava a irmã do Eliseu na primeira versão, e a Larissa Mazocato, que interpretava uma das gurias que os caras pegam na noite para tentar se dar bem. Também é engraçado o fato de algumas cenas terem sido filmadas em 2003 e o complemento delas este ano, em 2006, e você quase não percebe as mudanças de peso e tamanho do cabelo dos atores!
Boca do Inferno: É verdade que o filme foi lançado no cinema da cidade? Conte um pouco sobre isso e como foi a noite de estreia e se ele faturou alto nas bilheterias?
Felipe M.Guerra: Sim. Como já tinha acontecido com o Entrei em Pânico… no ano de 2001, este ano eu consegui convencer o pessoal do cinema de Carlos Barbosa a exibir meu novo filme, com projeção em data-show. A estreia foi em 24 de junho, um sábado à noite, e a “maldição” da produção mostrou-se forte: eu deixei a renderização do arquivo no computador para a última hora, e o áudio ficou atrasado em relação ao vídeo – mas claro que só percebi isso cinco minutos antes da hora marcada para passar o filme! A sala de cinema estava quase lotada, com mais de 100 pessoas, e não havia tempo hábil para refazer todo o trabalho (a renderização leva horas e horas…). A solução foi dar um discurso de desabafo, cabisbaixo, explicando o problema, e devolvendo o dinheiro para todo mundo – sim, o pessoal teve que ir pra casa sem ver o filme. Depois consegui achar um jeito improvisado de exibi-lo (em 12 pedaços de vídeo separados, executados em sequência num programa tipo Windows Media Player), e finalmente o filme teve sessões, três no total, com um público até razoável, em torno de 300 pessoas. Pode-se dizer que a bilheteria foi boa, mas não pagou o investimento total do filme, que foi de R$ 600,00. Ironicamente, metade da grana do orçamento foi torrada na cena onde acontece uma festa, porque eu tive que fazer a festa mesmo e contratar uma banda, e este cena não dura nem 10 minutos!!!
Boca do Inferno: Minha personagem preferida no filme é a Nona, que é sua avó na vida real. Como foi colocá-la no filme? Aceitou numa boa?
Felipe M.Guerra: Depois que minha avó ficou viúva, começou a buscar atividades diferentes para passar o tempo. Ela canta no coral da cidade, tricota meias para crianças do Hospital do Câncer, tem seu próprio grupo de teatro e, quem diria, quis também envolver-se com cinema. Eu a convidei para aparecer no curta-metragem que fiz com o Luciano Huck, Mistério na Colônia, em agosto de 2003, e a velha ficou faceira, gostou muito da brincadeira. Quando eu expliquei qual era o papel em Canibais & Solidão, ela até ficou meio assim, mas depois aceitou, ainda que com medo de ser expulsa da comissão da Igreja. hehehehe. O mais engraçado é que minha vó precisou fazer a cena duas vezes: na primeira versão, com o outro ator que pulou fora do projeto, e depois na segunda versão, a que foi para o filme. Mas acho que ela se divertiu bastante, e durante os três anos da produção ficava me cobrando o tempo todo: “Acaba logo esse filme que eu vou morrer e não vai ficar pronto!“. Uma figura, essa minha vó… Além dela, meus dois irmãos (Rodrigo e Diego) fazem papéis de destaque no filme, assim como minha tia Giovana do Monte, que interpreta uma das “moças” do Sexo da Pesada.
Boca do Inferno: Um porco foi morto e as cenas foram usadas no filme. Causou algum protesto ou ficou sabendo que alguém ficou enjoado ao ver a cena no filme?
Felipe M.Guerra: Negativo. Eu moro numa cidade de colonização italiana, onde o hábito de matar animais em casa – como porcos e galinhas – ainda é bastante comum, principalmente no interior. É um processo cultural que a industrialização está aos poucos fazendo desaparecer. No caso em questão, fiquei sabendo que a família de um amigo ia matar um porco para fazer salame, e resolvi aproveitar os “efeitos especiais de graça“, até mesmo como uma “homenagem” aos velhos filmes italianos de canibais, onde os produtores matavam animais sem cerimônia. Que eu saiba, ninguém ficou enjoado nem protestou, até porque usei takes bem rápidos para não chocar ninguém. Acho que só o porco não gostou muito, mas pelo menos ele transformou-se em astro de cinema… póstumo!
Boca do Inferno: Quais as dificuldades de se fazer um filme amador no Brasil? Aconteceu algo curioso durante as gravações ou algo que o fez quase desistir de continuar o filme?
Felipe M.Guerra: Quer que eu cite mais dificuldades além destas todas que já citei? hahahaha. O problema principal é a falta de comprometimento de alguns atores, e principalmente o pouco caso que certas pessoas ainda têm por ser uma produção amadora. Não estou generalizando, a maioria leva a coisa a sério mesmo sendo, no fundo, uma grande brincadeira – e uma brincadeira não-renumerada. Mas sempre tem aqueles que torcem o nariz, não querem fazer isso, não querem fazer aquilo, desistem na metade, o que é uma grande irresponsabilidade… E tem também a falta geral de recursos. Os efeitos especiais, por exemplo, são toscos e mal-feitos, mas não de propósito, e sim porque não tínhamos condições melhores para fazê-los. A minha câmera VHS tem uma qualidade de imagem muito ruim, pretendo migrar para a digital, mas aí entramos na velha questão de falta de grana. Praticamente todo o custo de Canibais & Solidão foi bancado por mim e por alguns dos atores. Teve gente acumulando várias funções para que a coisa saísse do chão. E eu quase desisti de tudo num sábado em que fomos almoçar, e o Eliseu e o Goti [Nota: Goti é o apelido do ator Rodrigo M. Guerra], os dois atores principais do filme, se queixavam que a coisa não andava e que estavam desiludidos. Naquele dia eu questionei se não era melhor parar de refilmar tudo e partir para outra. Mas eu gostava tanto do roteiro de Canibais & Solidão que não quis desistir. Então fiz a burrada de dizer, aos quatro ventos, que se conseguisse terminar o filme, caminharia até o Santuário de Nossa Senhora de Caravaggio, a uns 30 quilômetros da minha casa. Eu não sou religioso nem nada do gênero, e fiz a promessa mais para ver se conseguia animar o pessoal. Depois, fui praticamente obrigado a encarar a caminhada, e pra me vingar levei o Goti junto. Não foi fácil! Agora tenho mais cuidado com as coisas que prometo… hehehehe. Filmamos algumas partes do martírio de seis horas de peregrinação a pé, que quero incluir numa futura edição especial em DVD.
Boca do Inferno: Fiquei sabendo que muita gente reclamou que poderia ter mais gore. Diminuir a sanguinolência ocorreu por algum tipo de censura ou desde o começo estava planejado em ser uma comédia de humor negro?
Felipe M.Guerra: Minha primeira ideia era fazer um filme sério sobre canibais, no estilo dos italianos, que seria filmado no meio do mato e com mais cenas de tripas e órgãos arrancados – que seriam filmadas nos matadouros coloniais, obviamente. Eu até escrevi umas linhas de uma história chamada “O Tesouro dos Canibais“, sobre uma expedição que buscava um tesouro na selva e seria atacada por canibais, uma coisa bagaceira meio Jess Franco, meio Perdido no Vale dos Dinossauros. Mas eis que comecei a visualizar meu irmão Goti vestido de canibal e só conseguia me mijar de rir, e não levar a sério como deveria. Assim, fui obrigado a transformar o “filme sério” de canibais numa comédia com toques de canibalismo. Originalmente, o roteiro incluía mais delírios onde o personagem principal se imaginava devorando a Edna, mas estes foram diminuídos primeiro por causa de todos os problemas da produção, depois porque o filme estava ficando muito longo, e finalmente porque eu simplesmente não conseguia fazer efeitos especiais decentes. Duas cenas que foram cogitadas, mas acabaram excluídas até do roteiro, mostravam o Rodrigo comendo um sanduíche e visualizando uma mão decepada, e mais tarde fantasiando que devorava sua pequena tartaruguinha de estimação – uma referência direta à célebre “cena da tartaruga” de Cannibal Holocaust. Mas eu ainda sonho com meu filme sério de canibais à la Jess Franco… hahahahaha
Boca do Inferno: O “Entrei em Pânico…” rendeu matéria na SET, “Fantástico” e no Caldeirão do Huck. Quais são as estratégias de divulgação do Canibais & Solidão?
Felipe M.Guerra: O DVD do filme ficou pronto esta semana, com uma tiragem inicial de 100 unidades. Vou mandar cópias para a SET, para o Luciano Huck e para todo mundo que possa dar uma força. Já distribuí para o pessoal do Boca do Inferno e para alguns blogueiros renomados, como o Marcelo Carrard, do site Mondo Paura [Nota: Que também é articulista aqui do Boca do Inferno]. Diz a lenda que quem não é visto não é lembrado, então o negócio é fazer o máximo de barulho e divulgação. Acredito que o filme tenha bastante potencial, pois é uma coisa mais popular, mais comédia, o que certamente atrairá um público bem maior do que se fosse um filme de terror sério.
Boca do Inferno: Por que o tema “Canibais”?
Felipe M.Guerra: Eu sempre gostei dos filmes italianos sobre canibalismo, e queria fazer uma homenagem a este ciclo cinematográfico sensacionalista e hoje um tanto esquecido. Além do mais, comecei a pensar comigo mesmo que uma “comédia romântica sobre canibalismo” era algo inexistente, então meu filme pelo menos seria original – e nenhuma outra produção na face da Terra utilizou antes o filme Cannibal Holocaust como elemento romântico! hehehehe.
Boca do Inferno: E se o Ruggero Deodato visse o seu filme, o que acha que ele diria?
Felipe M.Guerra: Se Ruggero Deodato visse Canibais & Solidão, acho que primeiro ficaria indignado por eu ter utilizado cenas da sua obra-prima sem autorização; mas depois, provavelmente, daria umas boas risadas. E me convidaria para ser assistente de direção em Cannibal Metropolitana, que ele diz que vai filmar há uns 10 anos mais ou menos. hahahaha.
Boca do Inferno: Dá pra adiantar qual será o novo projeto ou o tema do novo longa da Necrófilos?
Felipe M.Guerra: Se tudo der certo e nada der errado, o próximo projeto será uma homenagem aos western spaghetti. Falta só definir o tom do roteiro (se vai ser sério e exagerado, tipo Kill Bill, ou uma gozação, uma paródia). A história está praticamente definida, e em fevereiro ou março de 2007 começam as filmagens – assim espero… hehehe. A trama envolve um padre que se transforma em pistoleiro quando bandidos cruéis matam toda a sua família. Vai ser um filme repleto de cenas de ação, coisa que eu nunca fiz antes, então será algo completamente diferente das nossas outras produções amadoras. É esperar para ver.
Boca do Inferno: Pra terminar, como foi a repercussão feminina à cena em que você aparece pelado? Hehe
Felipe M.Guerra: Muito boa, por incrível que possa parecer. Sabe que minha cena de nudez parcial foi uma compensação aos três atores principais, Goti, Prina e Eliseu, por todos os micos que eles pagam durante o filme inteiro. Além do mais, eu queria ter a honra de fazer a primeira cena de nudez do cinema amador de Carlos Barbosa. Vocês provavelmente podem imaginar a repercussão de alguém aparecer nu em público numa cidade de 20 mil habitantes, onde todo mundo se conhece… Inclusive no dia da filmagem de tal cena, o pessoal que mora no prédio ao lado da minha casa (o “set”) correu para as janelas e sacadas para ver o que aquele sujeito peladão estava fazendo… Tudo pela arte, pessoal! No meu primeiro filme, Patricia Gennice, de 1998, eu já tinha me vestido de mulher! [Nota: “Patricia Gennice” foi o primeiro longa da Necrófilos. Segundo eles uma versão violenta e hardcore de “Depois de Horas” de Martin Scorcese]
Boca do Inferno: Mande um recado para seus fãs e diga como eles podem encomendar os seus filmes.
Felipe M.Guerra: Não sei se ainda tenho fãs, pois o intervalo entre Entrei em Pânico… (2001) e Canibais & Solidão é de longos cinco anos. Em todo caso, espero que eles curtam mais essa bagaceirada da Necrófilos Produções Artísticas. Apesar do nome pomposo, nossa Necrófilos nada mais é do que uma feliz união de loucos e apaixonados pela arte, que se dedicam a fazer um cinema mais popular e comercial – nada de pretensiosas bobajadas experimentais para meia dúzia de iniciados. Temos orgulho de fazer cinema amador para as massas, num país onde apenas alguns filhinhos-de-papai e publicitários de rabo-de-cavalo conseguem fazer cinema “de verdade” (e sempre são histórias batidas sobre a miséria do Nordeste, sobre a violência nas favelas ou sobre a Ditadura Militar). O novíssimo DVD de Canibais & Solidão, numerado, com trailer e 15 minutos de erros de gravação, pode ser encomendado por R$ 20,00 mais despesas de postagem através do e-mail necrofilosfilmes@hotmail.com.br. Comprem e ajudem a Necrófilos a fazer do seu próximo filme um blockbuster. E depois, se quiserem piratear, emprestar, copiar, jogar no Emule, façam o que quiserem! Finalizando, um grande abraço a todos os apaixonados por cinema espalhados por este Brasil afora! E façam seus próprios filmes!!!!