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por Marcelo Marchi (@marcelomarchi77)

Nove anos depois de recriar para os tempos modernos o mito dos zumbis com A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968), em 1976 o diretor e roteirista George A. Romero deu ao mundo sua versão muito particular de outro pesadelo da humanidade: o vampiro. Em Martin, somos apresentados ao personagem-título, um jovem (ao menos é o que aparenta) que chega a uma nova cidade para morar com Tata Cuda, seu irascível primo idoso, e Christina, a neta dele. Mas logo de início descobrimos que Martin possui a nefasta necessidade de alimentar-se de sangue humano, que o rapaz extrai de belas mulheres após colocá-las para dormir usando uma seringa com sedativo e fazer sexo com elas. Mesmo sabendo da condição de Martin, Cuda é obrigado a dividir a casa com ele devido a uma estranha tradição familiar. Porém, enquanto o velho acredita piamente que o primo é um vampiro de verdade, Martin se considera vítima de uma doença, como outros de sua família. Apesar disso, ele afirma ter 84 anos de idade e é constantemente assombrado pelo que parecem ser memórias de tempos muito antigos, como se ele fosse mesmo um vampiro mais próximo do característico.

Martin afirma o tempo todo que “não existe magia”. Afinal, ele não é capaz de transformar-se em morcego ou de hipnotizar pessoas. Não teme crucifixos, alho ou a luz do sol. Para concretizar seus ataques, precisa valer-se dos mesmos recursos que um agressor comum. Mesmo nas ocasiões em que se declara vampiro, como nas participações via telefone em um programa de rádio, faz questão de desmistificar toda a mitologia acerca dos sugadores de sangue sobrenaturais.

Para retratar a condição de seu protagonista, Romero filma a história da maneira mais crua possível, dentro do estilo que já o havia consagrado. Não há maneirismos, afetações ou, exceto pelos flashbacks em preto e branco, o apelo gótico ou barroco dos filmes clássicos de vampiros. A trilha sonora é estranha e minimalista. A pequena cidade de Braddock, na Pensilvânia, exala decadência e desolação. As ruas são sujas e meio desertas, pois o desemprego expulsou muita gente dali. Jovens negros se juntam na saída do supermercado oferecendo-se para carregar as compras dos clientes, atraindo a intervenção da polícia e explicitando uma tensão latente pronta para explodir. Mesmo a vida noturna em Pittsburgh, com seus clubes de strip-tease e lojas de artigos pornográficos, mostra-se soturna e deprimente.

Lançado em meio ao caos econômico provocado, em parte, pelas crises do petróleo que assolavam a década de 1970, o filme captura um mundo realmente muito distante de qualquer magia possível. O misticismo hippie dos anos 1960 havia se tornado pó de fada carregado pelo vento e seus adeptos já não conseguiam mais tirar os pés do chão e voar. O LSD, combustível desse sonho dourado, perdia lugar para a heroína, e é bastante simbólico que Martin ameace suas vítimas usando uma seringa. Nem mesmo a religião consegue oferecer aos seus fiéis qualquer resquício de magia, uma vez que o prédio da igreja local pegou fogo e a missa está sendo conduzida em um tipo de sótão. Apenas Cuda ainda acredita na magia, ele, uma espécie curiosa de Van Helsing, ao mesmo tempo algoz e guardião do vampiro Martin. É justamente devido à sua crença no que não pode ser explicado que ele hostiliza o desamparado primo, e é também por causa dela que o acolhe.

Martin (1976)
Vampirismo à la Romero!

Nesse cenário, os personagens buscam desesperada e erraticamente o carinho. Martin não se sente à vontade para fazer sexo com alguém que esteja acordado, mas fantasia com essa possibilidade. Christina espera na varanda, em vão, a visita do namorado (interpretado pelo mestre Tom Savini, responsável também pelos efeitos especiais e pela maquiagem do filme). A dona de casa Abby, que inicia um relacionamento extraconjugal com Martin, parece tão triste e vazia quanto ele. Em suma, o filme de Romero nos apresenta uma realidade melancólica, suja, seca, onde o afeto algumas vezes até ensaia se consumar, sem jamais realmente conseguir. Um retrato de época precioso, e assustadoramente atemporal.

Sobre o autor do texto:

Roteirista das séries Boca a Boca (Netflix), Marias (Sony) e Sociedade da Virtude (Max) e do programa Queimando a Língua (Jovem Nerd). É professor da Pós-Graduação em Roteiro Audiovisual do SENAC, além de ministrar os próprios cursos de roteiro para cinema e tv. Estuda o cinema de terror há quase duas décadas e ministrou no MIS em São Paulo os cursos “Desvendando um Subgênero: Slasher Movie” e “25 Anos de A Bruxa de Blair e o Terror Found Footage

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