5
(1)

por L.F. Lunardello

Considero ELES VIVEM – Contos de ficção científica, lançado recentemente pela Diário Macabro, como um feito triplo:

  • a editora conseguiu trazer para terras tupiniquins a voz de um escritor de ficção científica potente, transgressor e que destoa quase que por completo da ficção sci-fi hard e – por vezes – repetitiva, que publica o que Ray Nelson chamara de “mesmos enredos protagonizados por um engenheiro branco e padrão (ele chama de W.A.S.P.) desde H.G. Wells”;
  • junto do texto de Nelson vem um verdadeiro resgate histórico contundido pelos tradutores (L.F. Lunardello – eu – & Nathalia Sorgon Scotuzzi). Afinal, há pedaços espalhados por aí do quebra-cabeças que era Ray Nelson. Uma apresentação num livro lendário editado por Harlan Ellison, pequenos parágrafos em revistas de ficção científica, materiais de pouquíssima informação publicados pelo filho dele e até posts praticamente perdidos de ex-alunas do autor. No entanto,um dos deleites desta edição é um prefácio completíssimo, apresentando pela primeira vez NO PLANETA uma quantidade expressiva de informação sobre o autor, todas com as devidas fontes, em um mesmo lugar. O que é, também, inevitável comprovação do respeito que a Diário Macabro tem por seus autores e obras
  • Finalmente, a publicação completa e, ao meu ver, eleva o nível da coleção John Carpenter (Eles Vivem se juntou a O Enigma do Outro Mundo e A Cidade dos Amaldiçoados, obras que inspiraram o diretor). Na edição que discutimos aqui – além da tradução levada a sério, o que é um padrão da editora – temos um passeio histórico pelas revistas de ficção científica onde os contos saíram originalmente, com galeria de capas e textos complementares sobre cada uma dessas publicações e capas, textos de apresentação para cada um dos contos com informações essenciais e o já tradicional ensaio do especialista Carlos Primati, nos dando um panorama sempre completíssimo sobre a encarnação cinematográfica do texto.

O resto é chover no molhado: diagramação impecável. Projeto gráfico perfeito. Artes espetaculares.

Abaixo, uma breve opinião sobre os contos.

Oito horas das manhã

A gênese de tudo. Com um conto que – ao mesmo tempo – inspira John Carpenter anos depois quando transformado em quadrinho pelo próprio Ray Nelson e que é constantemente referenciado pelo grande filósofo Slavoj Zizek como a “última pérola de esquerda de Hollywood”, Nelson mantém o senso de urgência no talo, nos jogando na nova e sinistríssima jornada de George Nada em um mundo tomado por fascinadores – seres que nos controlam hipnoticamente e evitam uma rebelião humana nos dando os “confortos” do capitalismo. Temos aqui uma narrativa curta e cativante, repleta de reviravoltas e de final arrebatador. Recomendo muito consumir as três encarnações da obra: o conto, o quadrinho e o filme (Eles Vivem, de 1988, com Rowdy Piper e Keith David).

Viagem no tempo para pessoas ordinárias

Imagine que existe um grande autor – transgressor e anti-sistema – que está revolucionando um gênero literário. Daí você escreve um texto que impressiona até mesmo esse autor e ele o coloca em sua coletânea lendária? Foi o que aconteceu com VIAGEM, de Ray Nelson, publicada pela primeira vez em 1972 em Again, Dangerous Visions, organizado por Harlan Ellison. O conto é uma viagem lisérgica criado para mastigar tabus e cuspir verdades, brincando com todos os tipos de preconceitos possíveis de um leitor convservador. Nosso ‘herói’ usa drogas, se masturba, muda de gênero e questiona o cristianismo – tudo envelopado por uma narrativa deliciosamente construída. Esse conto representa uma frase também do Ray Nelson que eu amo: “o único pecado inaceitável que a literatura pode cometer é o de ser tediosa”.

Quem é a Rainha Vermelha?

Pouca gente sabe que a palavra HISTERIA  vem do grego HYSTERA, que significa ÚTERO. Isso inevitavelmente nos mostra como uma sociedade patriarcal pensa aspectos relacionados à saúde mental feminina e seu papel em argumentos e debates. Tudo isso se torna o pano de fundo de um conto ácido, cínico e crítico sobre o nosso papel perante o feminino – principalmente o monstruoso feminino – e as tentativas de controle e domesticação do masculino. Não se engane. Essas camadas não tornam a escrita em momento algum panfletária. Estamos falando de um autor inteligentíssimo, não o seu rebelde sem causa aleatório de escritos gratuitos. Tudo aqui tem camadas, ritmo, subversão e sacadas geniais. Ah, e sci-fi.

Desligue o Céu?

Vamos voltar para o cenário imaginativo novamente? Dessa vez você quer submeter um conto, talvez o seu primeiro conto escrito, para uma revista editada pelo grande nome do gênero que você mais gosta. DESLIGUE foi justamente isso – publicado por um “novato” (Ray Nelson) numa revista editada por Isaac Asimov. O conto, mais longo e brilhante, brinca com todos os espectros políticos possíveis tecendo uma narrativa quase que 100% baseada em diálogos e que não tem dó, em momento algum, do leitor. Somos invadidos por opiniões políticas radicais – da direita e da esquerda – e tudo é colocado sob uma estética distópica e perturbadora, daquelas que o sci-fi consegue conjurar bem até demais.

Comida

O conto curto de 1965 fecha o volume de maneira brilhante. Ray Nelson incorpora parcialmente Clark Ashton Smith e nos mergulha num mundo abominável onde nosso protagonista – um astronauta humano – terá que lidar com seres e paisagens inconcebíveis para nossa limitada concepção da biologia e da ciência como um todo. Repleto de body-horror, desespero e inefabilidade, COMIDA nos mostra uma faceta ainda desconhecida de Nelson: a habilidade de descrever cenários totalmente distinto do comum terreno e do sci-fi futurista, das megalópoles de Blade Runner. Assim como o personagem, caímos também, sem esperança de resgate, num mundo novo e aterrador, com uma das melhores aberturas de história que já vi.

Sobre o autor:

L.F. Lunardello é nordestino, pai, professor, tradutor, autor e revisor. Atuou em centenas de traduções científicas internacionais pela @nerdenglish e faz crítica de literatura, cinema e HQs no @baiaodacaveira. Sua ficção envolve sertões e horrores, às vezes misturando os dois. Já foi publicado pelas editoras Tábula e Diário Macabro, além de diversas publicações independentes na Amazon.

Serviço:
ELES VIVEM – Contos de ficção científica – Editora Diário Macabro, 2024.
Autor | Ray Nelson
Organizado por | Nathalia Sorgon Scotuzzi
Tradução | L.F. Lunardello & Nathalia Sorgon Scotuzzi
Preparação: L.F. Lunardello & Mikka Capella
Revisão | Ricardo Marques
Prefácio | L.F. Lunardello & Nathalia Sorgon Scotuzzi
Posfácio | Carlos Primati
Ilustração da capa | Wildner Lima
Ilustrações internas | Rodrigo Tannus
Projeto gráfico & diagramação | Pedro H. S. Andrade

Link para compra: https://diariomacabro.com.br/produto/elesvivem/

O que você achou disso?

Clique nas estrelas

Média da classificação 5 / 5. Número de votos: 1

Nenhum voto até agora! Seja o primeiro a avaliar este post.

Deixe um comentário

O seu endereço de e-mail não será publicado. Campos obrigatórios são marcados com *