por Michel Goulart da Silva
Para a maior parte das culturas que incorporaram ao seu imaginário a figura de Lúcifer – mesmo com outros nomes, como Satã ou Diabo – esse personagem é a personificação do Mal.
Embora apareça em narrativas religiosas anteriores, é na Idade Média que sua figura ganha maior destaque. Nos séculos seguintes, essa representação ganhou outras formas, abrindo espaço para construções culturais negativas do Diabo. Da parte da Igreja, observa-se ações no sentido de criar a imagem de um inimigo imaginário que deve ser combatido.
Embora chegando à Modernidade cheio de representações negativas, Lúcifer começa a ganhar aos poucos intepretações alternativas. O texto mais conhecido desse processo talvez seja o poema épico Paraíso Perdido (1667), de John Milton. Essa obra clássica enfatiza a faceta rebelde de Lúcifer, em seu embate com Deus. Embora não chegue a fazer uma apologia da rebelião contra a opressão, Milton parece ter certa simpatia pelas várias possíveis facetas da figura de Lúcifer.
Goethe, no final do século XVIII, apresenta uma representação ainda mais complexa da figura do Diabo. Em Fausto, sua obra mais conhecida, Goethe escreve sobre o processo de modernização em curso na época, no qual Mefistófeles, o diabo, em certa medida representa uma figura que apoia Fausto em seu desejo de desenvolvimento. Fausto deseja vivenciar toda sorte de experiências, alegrias e desgraça, assimilando-as ao seu crescimento.
Apesar dessas mudanças nas representações difundidas, a figura de Lúcifer ganhou uma virada mais profunda somente no século XX. Com a sistematização do ideário satanista, por Anton LaVey, com sua Bíblia Satânica (1969), a figura de Lúcifer assumiu outra representação: a do livre arbítrio. Numa filosofia, que se coloca abertamente como anticristã, Satã é a metáfora para uma perspectiva crítica que pretende superar as amarras criadas pelas religiões.
O efeito mais significativo dessa inserção de novas facetas de Lúcifer possivelmente ocorre na música, por meio de um estilo criado no final dos anos 1960. O heavy metal nasceu como uma representação de rebeldia, bastante associado a uma juventude operária sem perspectivas diante da Guerra do Vietnã.
Essa combinação entre satanismo e heavy metal teve um de seus principais momentos em obras da banda dinamarquesa. O álbum Melissa (1983) faz menções à filosofia satanista, colocando em cena não apenas Lúcifer, mas também as figuras que os seguem, como as bruxas. Essa ligação com o satanismo se manifestou também na carreira solo do líder da banda, o músico conhecido como King Diamond.
O auge da virada nas representações sobre Lúcifer se deu com chegada das novas possíveis interpretações de sua figura na cultura de massas. Certamente ainda são realizadas obras em que Lúcifer é a encarnação do Mal, como no caso do filme Coração Satânico (1987), que prioriza a faceta do Lúcifer mestre da mentira. Contudo, há obras com interpretações alternativas que vem ganhando o grande público.
Essa chegada de Lúcifer à cultura de massas ganhou outro importante momento na obra de Neil Gaiman. Inserido no universo Sandman, o mais famoso do escritor, Lúcifer mostra-se com uma faceta complexa e bastante diferenciada da dualidade oriunda do pensamento cristão.
Essa figura criada por Gaiman se tornou ainda mais complexa com a estreia da série de televisão, que trouxe um personagem que é capaz de se humanizar com a convivência na Terra. Na série observa-se uma evidente mensagem de que Lúcifer não é o criador do Mal, que foi uma figura injustiçada ao longo de milênios e que somente assumiu o posto de torturar pecadores por imposição de seu pai, ou seja, de Deus.
As diferentes figurações de Lúcifer têm relação com as contradições e lutas simbólicas de cada época. Essas representações expressam tensões sociais, políticas e culturais, que mostram os embates de cada época e como são construídas as ideias sobre o Bem e o Mal.