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por André Luís L. Ribeiro

Era um dia atípico para Edgar, de 16 anos, em setembro, pois ele não costumava dormir depois do almoço. No entanto, naquela quarta-feira, apesar de no máximo dez minutos de sono pesado, ele dormiu. Ele havia chegado do colégio por volta de uma da tarde e almoçara sozinho, já que os pais estavam trabalhando e não tinham tempo hábil para estarem em casa naquele horário. Eles comiam na rua mesmo, e naquele dia todos os horários estavam desencontrados, inclusive o de seu irmão mais novo, Carlos, que havia feito provas e chegara mais cedo em casa. Pelas louças deixadas, Edgar viu que Carlos já tinha almoçado e estava fechado no próprio quarto, jogando.

Edgar sentia-se estranho, quase sem identidade, por causa da formatura do Ensino Médio que se aproximava e da incerteza sobre qual fase da vida estava ou como se definiria então. No colégio onde estudava, quase todos jogavam um jogo da vida interessante, tão interessante quanto muitas vezes falso – cada qual buscava meios de estudar para conseguir ingressar numa universidade. Era medonho não ter feito isso durante o ano, pavoroso não ter escolhido o que fazer da vida, e amedrontador não ter um papel para desempenhar após a formatura. A questão é que, como isso não era avaliado de modo concreto, e como não havia muita ajuda por parte de ninguém (nem da família, nem do colégio, nem dos professores), muitos deles apenas fingiam que faziam isso e se dedicavam horas a uma meta que eles não sabiam qual era, porque nunca pensaram nela. Apenas atuavam, postavam cadernos, rotinas, tudo tão vazio quanto as redes onde compartilhavam isso. Outros nunca se preocuparam em fingir, apenas não queriam nada. Ou porque nada fazia sentido, ou porque não foram estimulados, ou porque foram negligenciados, ou porque já estavam naquele processo de “brain rot” de que muito se fala.

Edgar não era melhor que nenhum deles e não tinha poderes especiais. No entanto, nessa idade todos pensamos ser mais espertos ou inteligentes que os outros, porque assim fomos convencidos. Ele estudava metodicamente e não se via fazendo outra coisa na vida a não ser a faculdade de Medicina. Sua família “vivia bem”, na classificação de renda constituíam uma “família rica”, mas não o suficiente para que ele pudesse fazer uma faculdade particular sem grandes apertos. Por isso, ele estudava, e cada vez que ouvia uma de suas professoras dizer que era “praticamente uma loteria passar em uma universidade pública de Medicina, que era difícil, que seriam necessários anos e anos de dedicação e estudo”, ele sentia uma pontada de angústia no peito. Ele tentava esquecer, mas eram nuvens cinzentas que se acumulavam sobre ele a cada vez que tentava abstrair essas palavras, como se fosse possível apagá-las como se apaga uma mensagem após o arrependimento de enviá-la. A diferença é que quem enviou apaga, e quem recebe fica com o status de “mensagem apagada” funcionando também como nuvem cinzenta.

Depois de ir ao banheiro, ao passar pelo quarto do irmão, de porta fechada, Edgar ouviu algo vago: “não mano, não por aí, vem do outro lado“. Ele imaginou o headset e o computador como extensões de Carlos. Dirigiu-se à sala, celular na mão, conferiu alguns grupos e abriu algumas redes.

Passando stories, entre uma e outra propaganda de modelos prontos de redações, professores “magos que adivinhavam todas as questões que caíam nos vestibulares“, e “cursos milagrosos que faziam você chegar ao seu objetivo”, um story chamou mais a atenção. A tela era toda escura, e o nome dele aparecia centralizado, em letras pequenas e todas minúsculas: “edgar“. A inscrição abaixo era em vermelho vivo: “APENAS CLIQUE“.

Era um link. Ele clicou. Na tela, surgiu uma página de perfil chamada “Destino Pessoal“. Não havia fotos; na bio estava escrito apenas “a sua verdade está aqui”.

Ele rolou a página e havia apenas uma postagem, um reel. Ele clicou. A tela era toda preta. Ao fundo, aos poucos, uma silhueta começou a se formar, em um fade muito lento e gradativo. Antes que a imagem se formasse, ele ouviu: “Edgar, meu caro, como vai?“. A voz era reconhecível, parecia muito com uma voz que ecoava do colégio. Ela não falava como influencer, não era aquela modulação exagerada no início, “como se a pessoa tivesse tomado vários expressos e falasse com uma excitação que chegava a ser nervosa“. Longe disso, era uma voz suave e natural. “Eu preciso te explicar uma coisa“.

Agora, a imagem apareceu toda na tela. Era uma mulher madura, de seus 40 anos, vestida de jeans azul-escuro, um tênis branco e uma blusa preta toda fechada. Percebia-se o filtro do aplicativo, não que ele pensasse já tê-la visto, mas é que qualquer filtro é facilmente perceptível. Parecia querer esconder a idade e gerar uma imagem de si que a idealizasse de alguma forma. Ela continuou:

Você sabe quantos pontos deverá fazer se quiser passar na prova daquela faculdade que mencionou, e isso só na primeira fase?” Agora, ela sorria, com uma das mãos cruzadas no colo e a outra erguida, com o dedo no ar. O sorriso se abriu, o batom repentinamente tomou conta de todo o contorno, extrapolando os lábios em um efeito de Coringa, mas os dentes agora eram maiores, e havia sangue entre eles. O olhar ficou diferente, e então Edgar percebeu que era todo preto, que os olhos estavam pretos. Ela se aproximou da câmera, de modo que este rosto ficou centralizado, enorme, na tela do celular, e disse “Venha” (o coração de Edgar acelerou) “agora” (Edgar se comprimiu no sofá, tentando afastar-se; o terror era absoluto, ele queria gritar, a voz não saía, seus olhos estavam cheios de lágrimas) “para a escola”.

Edgar acordou. Havia adormecido no sofá, o celular estava caído ao lado, com a tela apagada. Ao tocá-lo, viu que faltavam vinte minutos para as duas da tarde, horário em que deveria, de fato, ir à escola para o reforço de Matemática. Ergueu-se, achou estranho ter dormido tão pouco, e foi ruminando seu sonho que ele pegou seus materiais, lavou o rosto, escovou os dentes, passou desodorante e pegou seu caminho. Chegou faltando cinco minutos, o caminho era relativamente curto. Era um dia quente, e setembro costuma deixar suas marcas. Ainda pouca umidade no ar, uma sensação de deserto. A claridade contrastava com a lembrança do sonho, e Edgar apenas pensava que precisava dormir um pouco mais e alimentar-se melhor. Queria falar com a mãe, mas não adiantaria enviar nenhuma mensagem, ela não teria tempo de responder com calma. O pai mandaria apenas um emoji.

Ao entrar na escola, viu o movimento de sempre na recepção, menor do que de manhã, visto que somente a turma dele tinha essa aula nas tardes de quarta. Ao entrar, o rapaz o cumprimentou e disse que estariam no auditório, porque a aula de matemática tinha sido substituída por uma palestra de treinamento para os vestibulares que viriam pela frente, e que ele ia gostar muito. Ele ficou um pouco decepcionado por perder conteúdos nos quais tinha dificuldades, mas vislumbrou a possibilidade de espairecer um pouco, de usar aquele momento como uma ferramenta para relaxar, para ver menos “monstros nas provas que viriam”.

O pátio era grande, e no meio dele havia as escadarias que levavam ao piso superior, onde estava o auditório. De onde estava, podia vê-lo, viu suas portas abertas, a luz acesa, só achou estranho não ouvir nada, já que não estava atrasado e, no fim, o que se marcava para as duas começava duas e vinte, e os alunos ficavam pelas escadarias. Não havia ninguém pelas escadarias. Ele avançou, subiu os últimos degraus, estava chegando às portas abertas do auditório. Ao aproximar-se, viu que as luzes baixaram repentinamente. Estava diante da entrada, que ficava bem de frente para o palco. Embaixo dele, estava aquela professora que havia aparecido no seu celular. Ela estava olhando de frente para o público no auditório, de modo que ficava a poucos metros dele, de lado. A entrada ficava na lateral esquerda do prédio. Seu coração queria saltar pela boca, a respiração era sôfrega. Olhou para os colegas, era difícil ver, mas aos poucos pôde delinear os rostos, e percebeu que estavam todos eretos em seus lugares, não pareciam respirar, e estavam com os olhos vermelhos, dos quais escorriam lágrimas ainda, como num choro profundo que não quer sair. Não havia soluços, mas as lágrimas estavam lá.

A professora virou apenas o pescoço para Edgar. Abriu o sorriso, era o mesmo. O batom estava todo rebocado pela boca, e a gengiva parecia sangrar muito, e ele já não sabia de onde vinha o sangue. Ela estendeu os braços em direção a ele, que correu pelas escadarias em absoluto desespero. Tentou pegar o celular no bolso, viu chamadas perdidas. Ele havia acabado de entrar no colégio, mas ele estava todo escuro agora, e não havia ninguém na recepção. Era noite, e a mulher atrás dele corria e gritava freneticamente, gritos agudos e rasgados que não cessavam, ecoando pela quadra e pelos espaços vazios do prédio enorme.

Os gritos ficaram mais distantes, e só então Edgar percebeu que estava em uma das salas de aula que ficaram destrancadas, entre carteiras amontoadas, no chão, abaixado. Estava no corredor do pátio superior, onde havia a maior parte das salas. Não pôde ver em que sala entrou, mas percebeu que fechara a porta atrás de si com cuidado, e agora era apenas o silêncio. Esperou alguns minutos para mexer no celular, assustou-se com a luminosidade e diminuiu sofregamente o brilho da tela. Conferiu, estava no modo silencioso. Viu chamadas perdidas do pai, da mãe e do irmão, e notificações de infinitas mensagens, mas não pôde fazer nada, porque não as podia ler, deixara o brilho no mínimo possível. De repente, ouviu passos lentos e uma respiração que se misturava a um grunhido feminino, e esses sons ecoavam, pois não havia nada no colégio. Só então se deu conta de olhar para o relógio do celular novamente, visto que na pressa tinha estranhado algo que não voltou a conferir. Devagar, com as mãos tapando a tela, viu que eram três e quinze da manhã.

A mulher passou por todas as salas, conferindo em cada um dos vidros se veria sinais de alguém, sem abrir as portas. Sua respiração parecia muito mais um farejar, pelo som que fazia. Edgar imaginava estar em uma das últimas salas, pois percebia pelo ritmo dos passos que ela seguia e parava, seguia e parava, como verificando todas. Mas ele não ouvia as portas se abrindo. Enfim, ela chegou à porta da sala onde estava Edgar. As unhas passavam pela madeira da porta, os grunhidos se misturavam ao farejar. Ele chegou a ver os tênis pela fresta debaixo. Viu a maçaneta se movendo, a porta se abriu. Viu que ela desceu e tocou o chão com as pontas dos dedos das duas mãos, ergueu a cintura, entrando como um animal. Os olhos pretos estavam lá, o pescoço se movia rapidamente. Andava como animal entre as carteiras; Edgar, atrás de um monte delas, quis chorar. Quis defender-se, não sabia como, não tinha coragem por não reconhecer a força daquele ser. Era sangue escorrendo da boca, com certeza.

Após percorrer um bom pedaço da sala sem vê-lo, ela saiu, e a porta ficou aberta. Aos poucos, Edgar não ouviu mais nada, o silêncio pareceu imperar. Deve ter passado pelo menos uns quarenta minutos. Edgar sentiu seus olhos pesarem.

Acordou na sala, com barulho de sinal e de alunos falando alto. O celular, ao lado, marcava cinco para as sete da manhã. Nas mensagens, a mãe perguntava por que ele havia saído de casa de madrugada, e desesperada pedia notícias, queria saber onde ele estava.

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