
por Michel Goulart da Silva
Foi ao ar, no dia 25 de outubro de 2015, o último episódio da série Lost Girl (também conhecida no Brasil como “A Rainha das Sombras”). A série está centrada na história de Bo Dennis, que, como destaca-se desde o começo do episódio piloto, é uma figura sobrenatural conhecida como súcubos. Mantida incógnita durante toda a sua vida, Bo acaba esbarrando em um mundo de figuras sobrenaturais, conhecidas como Fae. Esse contato faz com que pela primeira vez na vida entenda um pouco de sua natureza sobrenatural, iniciando a partir disso a busca por suas origens. Uma das primeiras questões a serem respondidas passa pela identidade de sua mão biológica e qual foi o motivo de ter abandonado Bo ainda bebê. Embora equilibre um tom entre o policial e o sobrenatural, contando a história de forma leve e até mesmo bem-humorada, a série problematiza importantes questões filosóficas e políticas.
Um tema fundamental da série passa justamente pela expressão mais evidente da própria constituição fisiológica da protagonista, ou seja, um ser sobrenatural que se alimenta da energia vital de seres humanos ou de outros Fae, obtida por meio do toque de mão, do beijo ou da relação sexual. No início da série, o espectador é apresentado a uma Bo, que, desconhecendo sua própria natureza, é incapaz de controlar seus poderes e acaba, em suas próprias palavras, deixando uma pilha de amantes mortos. Em função disso, viveu sua vida fugindo, evitando matar pessoas ou mesmo colocar em risco amigos e familiares. Essa vida solitária muda ao conhecer Kenzi, que se torna sua leal e melhor amiga. Kenzi, que garante alguns dos melhores momentos de humor da série, não rejeita o mundo sobrenatural em que se vê enredada e apoia a amiga em momentos bastante perigosos pelos quais passa Bo.

Bo vive na tensão entre escolher entre os dois clãs dos Fae, os da Luz e os dos Trevas. Embora usem essa denominação, algo que fica evidente de imediato é que não se trata de uma divisão entre Bem e Mal, afinal nos dois lados tanto há seres bondosos querendo apenas viver suas vidas seguras, como, também, seres corruptos e de caráter duvidoso. Essas duas facções são dirigidas por seres que possuem títulos específicos, o Ash na Luz e a Morrigan nas Trevas, que, dentro dos interesses políticos e econômicos de cada um dos grupos, tenta equilibrar as tensões existentes. Bo, em meio a isso, se alia a um grupo ou outro a cada situação específica, sem escolher um lado e ajudando a mostrar tanto as qualidades dos Fae com quem interage, independente do clã, como a corrupção reinante nas instituições estruturadas.
Um fantasma que percorre toda a história é justamente uma guerra, acontecida séculos antes, e que colocou ambos os clãs em uma sangrenta batalha, e que parece ser um iminente fato a ocorrer novamente a qualquer momento. Em meio a isso, Bo, depois de ter sido testada e conseguir sobreviver às provas a que foi obrigada a enfrentar, não escolhe qualquer um dos lados e afirma que “escolhe os humanos”. Os desdobramentos da série vão mostrar um caminho particular de Bo, inclusive as pressões que sofre em relação a uma eventual escolha de lado. Contudo, o que Bo, a cada passo, vai sempre demonstrando é o fato de que nesse embate secular não existe lado bom e ruim por natureza, mas que cada um daqueles seres deve fazer suas escolhas. Luz e Trevas formam, ambas, estruturas corruptas comandadas por camarilhas que estão centradas em manter seu próprio poder.

Esse embate fica evidente no final da primeira temporada, quando é revelada a identidade da mãe de Bo, seu papel na história dos Fae e sua disposição de destruir todas as estruturas instituídas, propondo uma aliança à filha. Bo, a rebelde que não havia escolhido um lado, afirma concordar com a necessidade de destruir aquelas estruturas, mas que isso não seria feito por meios terroristas ou de intimidação, como propõe sua mãe. Em certa medida, fica ainda mais delineado o programa político de Lost Girl, que passa pela necessidade da ganhar politicamente os Fae para uma perspectiva de transformação, superando as velhas estruturas e construindo uma nova sociedade.
Parte disso passa pela representação das figuras femininas. O destaque passa pela forte e destemida Bo, tentando viver sua liberdade em diferentes âmbitos – pessoal, política, sexual. Passa também por sua fiel amiga, Kenzi, que tenta se encontrar seu lugar como humana nesse mundo de figuras sobrenaturais, construindo relações de admiração e respeitos mútuos com os personagens. Outra humana inserida nesse mundo sobrenatural é Lauren, inicialmente uma médica que trabalha para um dos lados, mas que, além de se tornar interesse amoroso de Bo, ganha seu próprio papel nos embates travados. Outras figuras de destaque são Evony, a Morrigan, líder dos Fae das Trevas, que precisa construir sua própria trajetória em um mundo conservador dominado por homens, e Tamsin, uma valquíria, com uma trajetória que oscila entre escolhas duvidosas e a aliança com Bo e seu grupo.
O tema da sexualidade perpassa toda a série, não se resumindo às cenas de sexo em diversos episódios. Na série mostra uma grande diversidade de orientações sexuais, a começar pela protagonista, que, por conta da natureza de sua obtenção de energia, precisa buscar sua satisfação de diversas formas. Embora durante boa parte da série tenha um relacionamento com Dyson, um lobisomem, seus sentimentos parecem ter estado em Lauren, o que coloca um grande dilema para ambas, afinal trata-se de uma humana que poderia ser facilmente drenada pela necessidade de alimentação de Bo. Evony e Tamsin também oscilam em suas sexualidades, assim como personagens masculinos, como é o caso de Vex. No universo mostrado na série essas são questões naturais e encaradas de forma madura e sincera.

Esse é o espírito que vai guiar a série ao longo de suas cinco temporadas, com Bo cada vez mais pressionada pelas dificuldades surgidas e, inclusive, pelo crescente perigo das criaturas contra as quais luta. O auge disso é o embate com o pai, uma das criaturas mais poderosas que poderia enfrentar. Essa disputa, no final da temporada exibido há dez anos, foi justamente o ponto alto das tensões que poderiam levar à transformação daquelas estruturas, que vem a ser um divisor de águas na história dos Fae. Bo não apenas consegue derrotar um de seus adversários mais poderosos, como consegue levar a transformações, ainda que lentas e graduais, naquela sociedade.
Embora pouco badalada em sua época de exibição, a série mostra um conjunto de importantes reflexões filosóficas e políticas. Por outro lado, como se espera de um programa de televisão, a série distrai e diverte e permite ao espectador pensar que a vida está cheia de encruzilhadas e que as escolhas que fazemos não são naturalmente boas ou ruins, mas expressão das necessidades que enfrentamos a cada momento. Os percalços enfrentados por Bo no mundo Fae não são outra coisa que não a metáfora dos medos e dificuldades que vivenciamos em nosso embate cotidiano por um mundo melhor.




















