Em geral, o modismo, a popularidade, o pseudo reconhecimento, tudo aquilo que, por um ou outro motivo, cai de repente nas graças da mídia e passa a ser super valorizado, não é exatamente o que se pode considerar saudável. Existe sempre o oportunismo funcionando por trás das engrenagens que movem tais interesses, e esse oportunismo, é desnecessário dizer, tem como alvo o dinheiro. Mas às vezes, muito raramente, o principal beneficiado é justamente o público, que, em casos muito específicos, passa a ter acesso a coisas que, de outra forma, que não o modismo, seria praticamente impossível. Estou me referindo ao fato relativamente recente da repentina valorização das obras cinematográficas trash do outrora ignorado e desconhecido diretor e produtor Edward D. Wood Jr., que da noite para o dia se transformou num dos mais queridos joguetes da mídia capitalista americana.
Wood caiu nas graças da popularidade depois que os críticos Harry e Michael Medved o agraciaram com o título (talvez injusto) de pior diretor de todos os tempos, no livro The Golden Turkey Award. Tal fato foi o suficiente para haver uma longa corrida atrás das obras esquecidas do diretor e do direito de lançá-las no mercado. Um oportunismo típico que veio a calhar, pois de outra forma jamais as divertidíssimas e inspiradas obras do diretor teriam sua vez de brilhar com exclusividade nas televisões e cinemas modernos. Até mesmo o Brasil, um país notório por sua mediocridade, abriu espaço para Wood e suas pérolas, com os oportunos lançamentos em vídeo VHS pela Continental de filmes como Bride of the Monster, Plan Nine from Outer Space, Night of the Ghouls e Orgy of Dead, os trash movies mais cultuados do diretor.
Mas nada comparável ao que se fez nos Estados Unidos, que aproveitaram a onda do momento e transformaram as imagens das pitorescas personagens de Wood (Vampira, Lobo, Criswel) em verdadeiras memorabilias ambulantes, agora conhecidas por qualquer um, principalmente nas populares festas de Halloween (a máscara com a robusta e grotesca feição de Lobo, o montanha viva que era interpretado pelo ator sueco Tor Jonhson, se transformou na mais vendida desde então no Halloween).
Esse boom repentino à imagem do diretor ocorreu mais ou menos no início da década de 1980, e em 1994 o badalado Tim Burton deu o toque final lançando o excelente filme Ed Wood, uma cinebiografia bastante fiel e nostálgica, que resgata com um sentimentalismo enxuto a dura rotina de um diretor pé-rapado e sua trupe de amigos pé-rapados numa década ultra capitalista completamente hostil à falta de dinheiro e ao anonimato. Apesar de novo, Johnny Depp (como sempre) deu um show como Ed Wood.
Esse filme, que resgata com uma precisão espantosa as grandes cenas filmadas por Wood em suas diversas pérolas, inegavelmente desperta ainda mais o interesse em se conhecer as obras do diretor, que andarilhou despreocupadamente pela ficção científica, pelo horror e pelo cinema experimental como um fantasma sem rumo preso num castelo cujos habitantes nada temem. Com poucas exceções, suas ideias não iam de encontro a nada; percebe-se que ele não tinha ambições de ser revolucionário, só queria algo que viesse a repercutir favoravelmente, que fosse reconhecido como grandioso. Embora mais tarde viesse a dar os primeiros passos no gênero comercial que viria com toda força nos anos de 1960, o sexplotation, seus filmes iniciais exploravam o clichê habitual da época com pitadas de ingenuidade típica das revistinhas infantis sobre monstros e alienígenas, e eram amparados por orçamentos irrisórios e atores canastrões que o rodeavam simplesmente na esperança de subirem alguns degraus.
De tabela, quem entrou nessa jogada toda foi o lendário Bela Lugosi, ator mor que brilhou nos anos 1930 e 1940 nos filmes de horror da poderosa Universal, mas que caiu na desgraça de ser viciado em drogas (por motivos justificáveis) e chegou aos anos de 1950 abatido, desesperançado e, o que é pior, desempregado. Um ex-bicho papão andando sem rumo pelas ruas da Califórnia. No filme de Tim Burton, vemos Bela Lugosi (majestosamente interpretado pelo veterano Martin Landau, agraciado merecidamente com um Oscar pelo papel) se queixar da modernidade dos anos 50 da seguinte forma:
Eles não querem mais os filmes clássicos de horror. Hoje são só insetos gigantes. Aranhas e gafanhotos gigantes. Quem acredita nestas besteiras? (Os filmes antigos) eram míticos. Tinha poesia neles. E sabe do que mais? As mulheres… elas preferem os monstros tradicionais. O horror puro, que as repele e atrai. Pois no seu inconsciente coletivo elas sentem a agonia do nascimento das crianças. Sangue. O sangue é horror. Acredite no que eu digo: se quer se dar bem com uma jovem, leve-a para ver Drácula.
Se este era de fato o pensamento do mítico ator húngaro não importa, o caso é que é verdadeiro; não havia mais espaço para os velhos monstros, nem mesmo na televisão (nessa mesma época, Vampira, que apresentava em um show de TV os velhos filmes de terror, foi mandada para o olho da rua). E o resultado não podia ser outro: abandono geral ou novas coisas do tipo Abbott & Costello Encontram Frankenstein, ou piores.
Um fato pouco lembrado pelos fãs do horror clássico e que, ofuscado pelo caso trágico de Lugosi, quase sempre é visto com distorção, é que nem só o ator húngaro comeu o pão que o diabo amassou; outros atores que vieram de filmes típicos de horror dos anos de 1930 e 1940, como Boris Karloff, Lon Chaney Jr., Basil Rathbone e John Carradine, também amargaram situações difíceis, com a única diferença que sobreviveram a década de 50, e puderam reestabelecer sua antiga fama nas novas tendências do terror clássico. Lugosi não teve a mesma sorte – morreu em 1956 no lamentável momento em que filmava aquele que viria a ser considerado o pior filme de todos os tempos. E esse epitáfio, naturalmente, perdurou.
E é este ponto que Tim Burton quis ressaltar quando reviu a vida e a obra de Ed Wood e o motivo pelo qual ele sempre admirou Lugosi. É claro que existem críticas ácidas com relação ao caso Wood/Lugosi, que geralmente imputam à Wood uma personalidade oportunista e que tudo que ele fez ou tentou fazer por Lugosi não passou de exploração. Mas isto não procede. Existia uma tentativa mútua de ajuda, que teve a infelicidade de resultar desajeitada; Wood queria reerguer a imagem do outrora imponente ator húngaro, e Lugosi, sem escolha, queria dar essa chance a Wood, e a si mesmo. Tentaram, e se fracassaram ou não, cabe àquele que gosta ou não gosta dos filmes do diretor ou dos filmes B em geral julgar. Mas ele fez sua parte e para o bem ou para o mal, hoje suas produções são cultuadas, admiradas, divulgadas e … copiadas!
Sua imagem é de certa forma vendida como um produto exótico, daqueles a serem vistos com uma distorçãozinha no olhar, uma ironiazinha no sorriso, um pouco à distância, mas creio que ele não tem do que reclamar. Seus filmes eram mesmo ruins, e existiram centenas de outros diretores igualmente desafortunados em suas épocas que hoje se encontram no limbo completo, esquecidos, sem qualquer chance de um dia virem a ser relembrados e lançados no mercado. E se Wood um dia foi oportunista com relação à Lugosi, hoje estão sendo oportunistas com relação a ele. Mas esta é uma analogia demasiada fácil e superficial, e eu sinceramente não acredito nela; não só por levar em consideração o filme de Tim Burton, que, naturalmente, retratou o diretor sob um prisma para lá de favorável, mas sim pelo simples fato de perceber, ao assistir as fitas originais, que, ainda que houvesse intrigas, problemas, penúrias e decepções, eles todos se divertiam para valer a cada filme que faziam.
Nossa obrigação, portanto, é fazer outro tanto!
Filmografia Selecionada
(A lista inclui também o que ele apenas escreveu ou roteirizou)
1948: The Streets of Laredo
1951: The Sun was Setting
1952: The Lawless Rider
1953: Glen or Glenda?
1954: Jailbait
1955: Bride of the Monster
1957: The Final Curtain
1958: The Bride and the Beast
1959: Night of the Ghouls
1959: Plan 9 From Outer Space
1963: SHOTGUN WEDDING
1965: Orgy of the Dead
1969: One Milion AC/DC
1971: Necromania
1972: Class Reunion
1974: Fugitive Girls
1975: 12 Films for the Sex Education Correspondence School
1976: The Beach Bunnies
Nesse meio tempo, Wood escreveu dezenas de romances pornográficos e roteiros de gênero que não foram aproveitados. Em 1978 caiu finalmente vítima de um ataque cardíaco, no mais completo anonimato. Somente depois de quinze anos a brisa começou soprar-lhe favoravelmente. Mas antes tarde do que nunca…