por Luiz Saulo Adami
“De O Monstro da Lagoa Negra à adaptação fiel de Cocteau, a fábula A Bela e a Fera gerou incontáveis variações cinematográficas. Certamente uma das mais curiosas, King Kong usou o mito para simbolizar o conflito entre a natureza primitiva do ser humano – representada pelo instinto, força e paixão do gorila – e seu lado civilizado – na imagem da mocinha graciosa e do poderio técnico dos homens que combatem a fera.“. A análise é do crítico Sylvio Gonçalves, publicada na revista Cinemin (Editora Ebal, Rio de Janeiro/RJ). No entender de Gonçalves, esta mensagem ‘simples e universal‘ transformou este personagem (e este filme) em uma das mais famosas obras cinematográficas de todos os tempos.
A narrativa de Edgar Wallace, romanceada posteriormente com as colaborações de Merian C. Cooper e Delos W. Lovelace, transporta o leitor de um pequeno universo, mágico por excelência, para um mundo místico, que envolve ficção científica, horror e algumas incursões pelo mundo dos animais pré-históricos.
A história começa com a busca empregada por um diretor e produtor de cinema, Denham, para encontrar a protagonista ideal para seu próximo filme. Em New York, ele conhece Ann Darrow. Diante da aceitação da garota, ele e toda a tripulação do velho barco Wanderer se preparam para partir. Destino: Oceano Índico, uma pequena e misteriosa ilha, habitat natural de uma gigantesca criatura conhecida apenas por Kong. Para os nativos, Kong é um rei, uma divindade que sobreviveu à passagem dos anos.
Na viagem, Ann Darrow apaixona-se por Jack Driscoll, o imediato da expedição. Ao chegarem na ilha, encontram uma imensa muralha, aparentemente intransponível. Penetrando no refúgio de Kong, a tripulação do Wanderer encontra um ritual de sacrifício humano – uma garota sendo oferecida, viva, a um gorila. Os selvagens se dão conta da presença dos exploradores, e ficam atordoados diante da beleza de Ann. Eles querem comprar a atriz para oferecerem a Kong. A equipe de filmagens não demora muito para optar pela fuga. Mas Kong aparece. O pânico toma conta de todos, e ao mesmo tempo aquele animal pode ser transformado em um sucesso tão grande quanto ou muito maior do que o filme que pretendem realizar.
Kong carrega Ann para um refúgio, e pelo caminho enfrenta uma série de animais pré-históricos. Kong começa a destruir os membros da tripulação. Driscoll e Denham precisam de reforços, e ao mesmo tempo querem tirar Ann das garras da fera. Enquanto Kong luta contra um pterodáctilo, e o vence, Ann e Driscoll se reencontram. Fogem pela água, enquanto outros membros da tripulação tentam trancar o grande portão, lutando contra os nativos e buscando isolar Kong. A fera arrebenta o portão, os nativos fogem. Ann é usada como isca, e Kong cai depois de ser atingido por quatro bombas de gás. A fera está imobilizada.
Levado para o teatro da Broadway, Kong é transformado em uma atração, apresentado como a oitava maravilha do mundo. O gorila se liberta da jaula que o prende, enquanto Ann e Jack dão início a uma nova fuga. A polícia está atrás de Kong, que está se colocando entre os edifícios. Ele consegue apanhar Ann e segue com ela para o topo de um edifício. Uma oportunidade para o comissário de polícia comentar: “Então foi para isso que eles fizeram o Empire State com mais de trezentos metros de altura…“.
Surgem aviões. Kong derruba um deles. Os outros se aproximam e disparam suas metralhadoras contra o gorila. Recuam. É noite, a noite do adeus de Kong. E sua luta é narrada desta forma, no desfecho do romance de Wallace, Cooper e Lovelace:
“King Kong lutou até o fim. Com as suas derradeiras forças, pulou na direção do último avião, no momento em que este começava a afastar-se. Errou o bote, mas o impulso levou-o além dos diversos recuos de arranha-céu, até a altura da rua, lá embaixo. Por um instante, muito acima da civilização que o destruíra, King Kong voltou a desfrutar da mesma solidão que tivera na Ilha da Montanha do Crânio. Depois, mergulhou velozmente, estatelando-se na rua lá embaixo, o corpo disforme e ensanguentado aos pés de seus vencedores.
Driscoll correu para a plataforma e ergue Ann nos braços.
– Ann! Ann! Está tudo acabado!
Ann estava encolhida, aninhada nos braços dele, chorando baixinho, de gratidão. Denham e o sargento inclinaram-se sobre a platibanda.
– Foi um espetáculo impressionante! – comentou o policial. – Nunca pensei que os aviadores fossem conseguir liquidá-lo.
– Não foram os aviadores que o liquidaram – disse Denham, lentamente.
– Como?
– Foi a Bela. Como sempre, a Bela acabou matando a Fera.
O sargento franziu o rosto, perplexo. Não estava entendendo mais nada.”
Se o bom e velho Kong enfrenta problemas com os personagens desta história, e ao final da fita se espatifa no chão duro de New York, não foi missão das mais fáceis para os produtores levar o gorila para as telas. King Kong (King Kong, 1933), dirigido por Ernest B. Schoedsack e Merian C. Cooper, foi produzido por eles e por David O. Selznick, para a distribuição da RKO Radio. Sylvio Gonçalves atribui a criação do filme, “principalmente” a três pessoas: Cooper, Schoedsack e Willis O’Brien. Os dois primeiros, que produziram e dirigiram o filme, “não eram cineastas hollywoodianos convencionais, mas fizeram nome com uma série de filmes de aventuras rodados em locações exóticas. O’Brien, um dos precursores da técnica de stop motion, que consiste em animar modelos quadro a quadro, foi o responsável pelas notáveis sequências de efeitos especiais. O realismo dos efeitos, enfatizado pela música do mestre Max Steiner, foi o grande responsável pela credibilidade imposta pelo filme. A destacar, a impressionante sequência do combate entre King Kong e o dinossauro, e a cena final, na qual Kong é alvejado pelos aviões“.
Os efeitos de O’Brien, na sua avaliação, são tão realistas e brutais “que ativaram a máquina censora americana. Várias tomadas do gorila mastigando e pisando nos nativos foram cortadas; para apagar os detalhes de sangue e carne dilacerada dos dinossauros, não apenas essas cenas, mas o filme inteiro foi escurecido – um crime que prejudica a precisão de detalhes de vários efeitos, como as pessoas que fogem apavoradas das janelas da maquete do Empire State“. Reconhece que o filme sofre “de uma direção pesada” mas que “não envelheceu“, transmitindo ainda hoje uma “sensação de maior que a vida jamais igualdada por suas continuações e refilmagens“.
O roteiro foi escrito por James Creelman e Ruth Rose, inspirado em uma ideia original de Cooper e Edgar Wallace, que morreu em 1932, um ano antes da estreia do filme. A revista Cinemin publicou uma tabela curiosa, em que apareciam as medidas oficiais de King Kong: altura: 15,24 m; face: 2,15 m; boca: 1,8 m, quando aberta num sorriso; dentes caninos: 10 no alto, 7 embaixo; molare: 14, aproximadamente; peito: 18 m, quando em repouso; pernas: 4,5 m; braços: 7 m. O’Brien montou uma miniatura do gorila, com armação articulada de metal, e cobriu seu corpo com pele de coelho, para oferecer maior realismo. Foi construído um braço gigante, para utilização naquelas cenas em que Fay Wray, a heroína assustada, era segurada pelo gorila.
Além de Fay Wray, King Kong trazia no elenco Robert Armstrong, Bruce Cabot, Frank Reicher, Sam Hardy, Noble Johnson e James Flavin. As imagens foram captadas pelos diretores de fotografia Edward Linden, Verne Walker e J. O. Taylor. Atualmente, nos Estados Unidos, está disponível em vídeo, com cópias colorizadas por computador e também originalmente em preto e branco. A fórmula deu tão certo, que motivou uma continuação imediata, ainda em 1933, O Filho de King Kong/ Filho de Kong (The Son of Kong), também dirigido por Schoedsack e estrelado por Robert Armstrong repetindo o papel de Denham. No elenco, Helen Mack, Victor Wong, John Marston, Frank Reicher e Lee Kohlmar. Com um orçamento sensivelmente reduzido, em comparação com o primeiro, e apostando mais na comédia do que propriamente na força do tema e no sofrimento do personagem central, este King Kong desapontou a crítica e o próprio público.
Sua história tem início com o retorno de Denham à ilha em que encontrou King Kong. Lá, ele se vê frente a frente com o filhote albino do gorila. A produção merece atenções especiais, novamente, pelos resultados obtidos pelos efeitos especiais criados por Willis O’Brien. Os ingleses decidiram apostar na mesma fórmula, e lançaram Konga (1961), dirigido por John Lemont, com Michael Gough, Margo Johns, Jess Conrad e Claire Gordon às voltas com um macaco enorme que aterroriza a população de Londres. Ainda na década de 60, foi a vez dos japoneses investirem neste filão, colocando em cena King Kong e o temido Godzilla, de 90 metros de altura, inspirado naquele tiranossauro rex que luta contra o gorila criado por Cooper e Wallace, na década de 30. King Kong vs Godzilla/King Kong Vs Godzilla (1963), uma produção que reuniu japoneses e norte-americanos, foi dirigida por Thomas Montgomery e Inoshiro Honda, e trouxe as interpretações de Michael Keith, James Yagi, Tadao Takashima e Mie Hama, considerado um filme de boa qualidade pela crítica.
Inoshiro Honda sentiu que poderia ganhar mais prestígio e dinheiro ainda, e brigou para dirigir King Kong Escapes (1967), produzido no Japão. O elenco contava novamente com Mie Hama, e trazia novos como Rhodes Reason, Linda Miller e Akira Takarada. Em seu Movie and Video Guide 1992, Leonard Maltin qualifica este filme como “bomba“. Apenas cerca de nove anos mais tarde, é que os produtores de Holywood voltariam a analisar a possibilidade de trazer King Kong de volta ao cinema.