Brody: Você vai precisar de um barco maior.
“Pode dar um bom filme.“, foi com essa mensagem adicional, escrita no final da descrição da obra de Peter Benchley pela editora, que motivou os produtores da Universal Pictures, Richard D. Zanuck e David Brown, a dar o primeiro passo para a criação de um dos maiores clássicos do cinema fantástico de todos os tempos. Compraram os direitos do livro em 73 e foram convencidos a apostar no jovem diretor Steven Spielberg, que tinha acabado de comandar o longa A Louca Escapada (The Sugarland Express, 1974) pelo estúdio. Apesar da fascinação pela obra literária, Spielberg temia se tornar um diretor conhecido por dirigir filmes de caminhões e tubarões, mas abraçou a proposta pela fala de Brown: “Depois [de Tubarão], você pode fazer todos os filmes que quiser“. Com um orçamento estimado em US$3.5 milhões de dólares, Tubarão foi filmado em 55 dias em 1974, com algumas mudanças em relação à obra original.
Mesmo com o grande valor investido, Spielberg pretendia “esconder” o assassino dos mares o máximo que fosse possível pensando em instigar a curiosidade do espectador e aumentar o suspense ao mesmo tempo que poderia conter os gastos – diferente do autor que, depois de um vasto estudo dos tubarões, resolveu descrevê-lo nas primeiras páginas não como mais um da espécie, mas o pior de todos, uma criatura voraz e aterrorizante. Essa diferença entre a publicação e sua adaptação torna ambos os materiais de extrema importância para uma compreensão absoluta e para permitir dois pontos de vista sobre a mesma ameaça.
Outra mudança de Spielberg aconteceu no desenvolvimento das personagens. O cineasta achava todos do livro extremamente desagradáveis e queria, inclusive, retirar um caso adúltero evidenciando nas páginas. Para tais mudanças, Spielberg contratou o humorista e escritor Carl Gottlieb para não somente tornar os diálogos mais ácidos como também para atuar no filme. Ainda que exista toda uma produção grandiosa por trás de Tubarão, muitas cenas foram improvisadas de um dia para o outro, com o elenco e roteiristas jantando com o Spielberg para sugerir mudanças e acréscimos – algo que em qualquer produção poderia evidenciar um problema de roteiro, mas não quando se tem uma visão talentosa do que pode ou não ser filmado. Assim, ao final do processo de filmagem, o roteiro acabou por incluir 27 cenas que não estavam presentes no livro.
Quem leu a obra de Benchley, lançada pela Darkside Books em 2015, e conhece os bastidores da publicação deve se lembrar que a inspiração surgiu de um caso ocorrido em 1964, com Frank Mundus, e toda as ações de captura de um tubarão assassino. Mundus foi uma das fontes de concepção de Quint (Robert Shaw), descrito na obra como um experiente e arrogante caçador, também mercenário e convencido. Ele se manteve como nas páginas, embora seu passado como sobrevivente do desastre do USS Indianapolis na Segunda Guerra Mundial tenha sido planejado em um dos jantares do improviso. Outra das inspiração para a criação de Quint veio do Capitão Ahab, personagem obcecado de Moby Dick, de Herman Melville. Spielberg havia inclusive sugerido uma cena em que Quint estaria incomodando pessoas em um cinema enquanto assistia a uma versão cinematográfica da obra.
Com tantas boas ideias “para um filme de tubarão“, não é estranho entender o grande sucesso da obra. Em todos os seus lançamentos e relançamentos, Tubarão conquistou mais de US$ 2 bilhões de bilheteria em todo o mundo. Só no Brasil, foram vendidos mais de 13 milhões de ingressos de cinema, sendo considerado o sexto filme mais assistido do país. E nem é preciso dizer que a recepção crítica foi quase absolutamente favorável em todas as estreias. É claro que entre boas avaliações existem aqueles que apontam erroneamente o longa como “preguiçoso” e que foi “salvo pela direção hábil de Spielberg“, que impediu de torná-lo risível – opiniões que podem ser ignoradas por quem aprecia um cinema de fotografia impecável (Bill Butler), sequências de tensão de arregalar os olhos, trilha sonora (John Williams) extremamente eficiente, na composição de uma identidade visual até então única no cinema fantástico.
Ambientado na sonolenta cidade litorânea de Amity, o filme começa como muitos que copiariam no gênero: a morte de uma jovem na praia, sendo puxada para baixo, permitindo que seus restos mortais sejam encontrados na manhã seguinte para espanto do chefe de polícia Martin Brody (Roy Scheider), que, ao saber que se trata do ataque de um tubarão, decide fechar as praias. A decisão vai contra as intenções do prefeito Larry Vaughn (Murray Hamilton), preocupado com o turismo local nessa época do ano. O próprio legista (Robert Nevin) é influenciado a mudar seu depoimento alegando que a garota provavelmente foi vítima de um acidente com o motor de um barco.
Não demora para que aconteça uma outra morte, tendo como vítima outro jovem, Alex Kintner (Jeffrey Voorhees), na testemunha de uma praia lotada. Não tendo como não acusar a ação de um tubarão, a polícia oferece um valor de US$ 3.000 mil dólares pela captura do animal, no momento clássico em que surge Quint, arranhando a lousa com as unhas, e pede US$10 mil pela captura. Chega também à cidade a terceira ponta do triângulo de caça ao tubarão, o oceanógrafo rico, Matt Hooper (Richard Dreyfuss), que já contraria a opinião do legista sobre a primeira vítima.
Prefeito Vaughn: Martin, é tudo psicológico. Você grita barracuda, todo mundo diz: “Hã? O quê?” Você grita tubarão, temos pânico em nossas mãos no Quatro de Julho.
Quando um tubarão-tigre é capturado por pescadores, o prefeito resolve reabrir as praias, mesmo com Hooper dizendo que não há restos humanos no estômago do animal morto, sendo que o tubarão costuma ter uma digestão lenta. Um outro corpo é encontrado, desta vez do pescador Ben Gardner (Craig Kingsbury), deixando vestígios de sua cabeça flutuante e um dente de tubarão. No feriado de 4 de Julho, com a praia lotada, acontece a sequência famosa de aparição da criatura, causando pânico e quase matando o filho de Brody, Michael (Chris Rebello), o que leva o chefe de polícia a exigir a contratação de Quint.
A partir de então, tem início a caça ao tubarão assassino, com os três, Brody, Quint e Hooper descobrindo já na primeira tentativa o tamanho da ameaça e a necessidade de um barco maior. A aventura nos mares, com um Brody temente à ameaça e à água, coloca o espectador como um quarto pescador na busca pelo monstro de Amity. Com cenas de tensão e ousadia, expondo os personagens em situações arriscadas principalmente quando o barco começa a afundar, Spielberg por fim exibe seu animatrônico bastante convincente numa apresentação gigantesca e assustadora.
Brody: Não faz sentido quando você paga um cara para assistir tubarões.
Hooper: Bem, uh, não faz muito sentido para um cara que odeia a água viver em uma ilha também.
Brody: É apenas uma ilha se você olhar para ela da água.
Hooper: Isso faz muito sentido.
Tudo funciona muito bem em Tubarão, desde a escolha do elenco, ambientação e a profundidade dos personagens. Até mesmo Quint, depois humanizado em sua narrativa, passa a ser um elemento importante nesse thriller aquático bem realizado. Mesmo a mudança na forma como o tubarão morre flui bem na adaptação, necessitando de sorte e heroísmo. E há diálogos muito bem expostos e excelentes atuações, destacando o olhar ferino de Richard Dreyfuss para Quint, e a cena de close up de Roy Scheider na praia, antes de proferir a quote clássica: “Saiam da água.”
Obra-prima da Sétima Arte, não canso de rever Tubarão. Já vi em VHS, nas exibições na TV, nos relançamentos nos cinemas, em formato 4K… e cada vez me impressiono mais, descubro detalhes e fico ainda mais apaixonado por esse trabalho de excelência de Steven Spielberg. Com todos os recursos digitais de hoje em dia, o cineasta fez uma obra atemporal, o melhor tratamento dado ao rei dos mares e que serviria de inspiração para continuações, longas picaretas e cópias mal feitas, incluindo outros animais como jacarés e cobras. Tubarão dialoga com Os Pássaros, de Hitchcock, como dois trabalhos do subgênero eco-horror que serviram para construir a História do Cinema de entretenimento e orgulhar quem é cinéfilo ou aprecia produções de absoluta qualidade.