Em meio à Guerra do Paraguai, três soldados brasileiros desertores buscam refúgio em uma casa isolada no sul do Brasil. Habitada apenas por um velho fazendeiro e uma garota, a casa esconde segredos que podem ser mais ameaçadores do que a própria realidade de guerra da qual os soldados estão tentando fugir.
Dirigido e co-roteirizado por Ian SBF, um dos criadores do Porta dos Fundos e da série de animação Sociedade da Virtude, A Própria Carne é o primeiro longa-metragem produzido pelo Jovem Nerd, um verdadeiro polvo midiático com tantos tentáculos quanto Cthulhu. Com mais de 2,5 milhões de inscritos em seu canal de You Tube e incursões pelos RPGs, videogames, jogos de tabuleiro, livros e áudio séries, a empresa – encabeçada por Alexandre Ottoni (o Jovem Nerd em pessoa) e Deive Pazos (o Azaghal) – decidiu investir em mais uma área do entretenimento e prepara para 2025 o lançamento de um filme de terror ambientado durante um dos períodos mais sangrentos da história brasileira. A fim de adiantar para os nossos infernautas um pouco do que vem por aí, batemos um papo com SBF, Ottoni e Pazos, que nos revelaram detalhes preciosos da produção.
Segundo o trio, que já se conhece há muito tempo, a gênese de A Própria Carne foi o desejo do Jovem Nerd em começar a realizar obras mais mainstream (a primeira produção nesse sentido foi a áudio série França e o Labirinto (2023), protagonizada por Selton Mello). Após conversarem com várias pessoas da indústria para tentar descobrir que caminho seguiriam, Ottoni e Pazos procuraram SBF.
O diretor já possuía um roteiro possível de ser realizado de maneira independente e relativamente barata, o que lhes possibilitaria ter total controle da produção. Embora todo o conceito já existisse naquela versão, Ottoni e Pazos acabaram atuando como co-roteiristas ao injetarem na história elementos mais alinhados com o universo do público do Jovem Nerd, no caso, o horror cósmico lovecraftiano. Segundo Pazos, o roteiro de SBF tinha menos sobrenatural e ele e Ottoni trouxeram mais mitologia, mais pano de fundo para os mistérios da casa.
A partir disso, tudo foi acontecendo muito rápido: enquanto ainda trabalhavam no roteiro já estavam levantando locações, elenco e demais aspectos da produção. Como não buscaram as leis de incentivo, o filme foi todo financiado pelos caixas das produtoras Nonsense Creations e Neebla, de propriedade, respectivamente, do Jovem Nerd e de SBF. “Estamos criando um esquema de negócios que a gente espera que dê certo e que aconteça outras vezes”, afirma Pazos.
O fato de ser um filme de época demandou um profundo trabalho de pesquisa, para o qual contaram com a consultoria do historiador Icles Rodrigues, do podcast História FM. O figurino, por exemplo, foi confeccionado exclusivamente com tipos de tecido utilizados na época retratada no filme, sendo a costura toda feita à mão, uma vez que ainda não existiam máquinas para isso. Já o armamento do século XIX foi emprestado à produção por um colecionador.
Quanto à maneira de falar dos personagens, SBF, Ottoni e Pazos seguiram por um caminho ligeiramente diferente ao optar por um português mais próximo do contemporâneo, pois tinham receio de que um estilo de linguagem antigo e estranho aos ouvidos do público acabasse por desviar a atenção da história. Eles acreditam que chegaram a um bom meio-termo com as atualizações. “Mas claro que não vai ter um personagem falando ‘porra, bróder!’”, tranquiliza SBF. Por falar em gírias e palavrões, houve um momento curioso em que ficaram na dúvida se a palavra “foder” fazia parte do vocabulário da época, mas Rodrigues esclareceu o inusitado assunto. “Sim, as pessoas já ‘fodiam’ em 1870”, brinca Pazos.
Os atores também foram fundamentais em trazer verdade para os diálogos. Um dos nomes mais conhecidos do elenco é Luiz Carlos Persy, célebre por sua longa carreira como dublador de personagens como Gandalf (trilogia O Hobbit (2012-2014)) e Voldemort (saga Harry Potter (2001-2011)). Ainda que desde o início tenham pensado nele para interpretar o fazendeiro, a performance do veterano ator surpreendeu tanto SBF quanto o próprio Persy. Ao ver pela primeira vez uma de suas cenas, Persy mal conseguia acreditar que era ele mesmo ali, de tão incorporado no personagem.
As filmagens aconteceram em Farroupilha, no Rio Grande do Sul, que ainda estava se recuperando das enchentes que assolaram o estado em 2024, e a maior parte da equipe envolvida na produção é local. Originária de 1888, a casa onde se passa grande parte da trama foi outro grande achado. De acordo com SBF, ela parecia ter sido construída especialmente para o filme, pois contava com todos os espaços descritos no roteiro.
Ottoni explica que, diferentemente de filmes como O Senhor dos Anéis (2001-2003), de grandes cenários, no terror a câmera costuma estar muito mais próxima dos personagens. Nesse sentido, A Própria Carne se insere na longa tradição das histórias de terror em ambientes domésticos, algo que facilita a produção, uma vez que se torna possível filmar em poucos e já existentes cenários. Como comenta SBF, o medo de encontrar uma casa desconhecida no meio do nada remete a algo tão antigo quanto o conto de João e Maria.
Embora os efeitos práticos constituam cerca de 70% dos efeitos especiais do filme, a pós-produção contou com o envolvimento de vários profissionais brasileiros que trabalham em Hollywood e também de muitas pessoas que se dispuseram a ajudar sem uma contrapartida financeira, simplesmente por acreditarem no projeto.
Depois disso, vem uma das etapas mais importantes e complexas, a distribuição. Para fazer com que o filme chegue ao máximo de salas de cinema possível foi fechada uma parceria com a rede Cinemark e planejada uma turnê de exibição pelo Brasil. Ainda assim, como explica Pazos, “sem leis de incentivo, se colocar custo de produção X salas de cinema, a conta não fecha”. A fim de tentar equilibrar essa equação eles apostam na produtibilidade da obra por meio de vários produtos derivados (que ainda não podem revelar). A ideia é fazer algo transmedia e expandir o universo e a história do filme.
Apesar da tarefa hercúlea que é produzir um longa-metragem, especialmente de maneira independente, Pazos conclui, satisfeito, que “é divertido fazer terror”. E SBF completa: “o terror bom é o terror independente”. Afinal, “o que vai levar a pessoa ao cinema pra ver um filme de terror é a história, não é a cara da Julia Roberts ou do George Clooney”.