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Cherry: Inocência Perdida
Original:Cherry
Ano:2021•País:EUA
Autor:Nico Walker •Editora: DarkSide Books

 

Cereja é o símbolo da juventude, pureza e inocência. Quando uma cereja é arrancada, dizem que simboliza a perda da inocência. Levando esse simbolismo para a realidade do exército, significa alguém que ainda não viu sua primeira morte em campo, que acha que será um herói condecorado, salvará muitas vidas e todos os amigos que fizer lá sairão ilesos. Pobre soldado inocente.

Em Cherry, acompanhamos a vida e decadência de um jovem. Narrado em primeira pessoa, ele nos conta sobre sua adolescência, com pais que sempre lhe deram o necessário, vida escolar mediana e vida social aparentemente normal. Ao invés de ir para a faculdade, decide que vai se alistar no Exército para servir como médico, movido por um desejo de querer ajudar as pessoas, e isso acontece bem quando começa a sair com Emily, a garota mais incrível que já conheceu, que será tanto seu porto seguro quanto sua ruína.

No exército, descobre que todo aquele glamour de servir ao seu país não existe. Mortes sem fundamento, ordens rígidas para manter as aparências, meses servindo no Iraque e vendo seus amigos perecerem tanto de jeitos horríveis como de jeitos bobos, como passar em uma mina terrestre ativa que ninguém mais lembrava que existia, esposas traindo seus maridos que estavam em missão, e ninguém ligando para isso. Até que ele mesmo parou de ligar para isso. O único jeito de aguentar era se drogando do jeito que pudesse.

Quando volta aos Estados Unidos, não consegue se manter bem o suficiente sem alguma droga, até que a heroína virou sua melhor amiga inseparável. Graças a ela ficava motivado, pronto para enfrentar um novo dia, com vontade de ganhar dinheiro…. apenas para poder comprar e injetar mais heroína, e cada vez mais, a cada hora do dia. Ele e Emily sustentavam o vício um do outro, e as coisas foram ficando cada vez mais perigosas e fora de controle.

Walker usa uma linguagem crua e direta, sem floreios e sem romantizar veteranos de guerra, desmistificando a ideia que muitas pessoas têm sobre como é servir no exército. Metade do livro é sobre o narrador no Iraque, e em alguns capítulos podemos até mesmo pensar “mas nossa, não acontece nada de emocionante”, e é exatamente esse o ponto do autor. Não terão batalhas gloriosas, heróis bonzinhos vencendo as forças do mal ou momentos épicos, a realidade é bem diferente. O que temos são jovens se ferrando constantemente de todas as formas possíveis, sem um objetivo certo, vendo e vivendo horrores evitáveis em nome de uma nação que quer ser vista como soberana, não existem bandidos e mocinhos. São vigílias constantes, mortes de inocentes assustados sem propósito, até que chega um momento que o cérebro desliga, e nada mais importa. Para manter a sanidade em um cenário desses, é necessário morrer um pouco (ou muito) por dentro, e ninguém vai voltar se sentindo um herói imbatível, muito pelo contrário. Mais de 80% dos veteranos de guerra cometem suicídio ou não sabem mais como lidar com o mundo real, e isso é mostrado perfeitamente em Cherry. A inocência de um garoto ao se alistar e a falta de esperança e apatia quando volta são perceptíveis. Quando algo se quebra dentro dele e tudo para de fazer sentido, é necessário encontrar algo para conseguir sobreviver.

Não só o exército é descrito de modo realista, mas também o modo como vive um viciado e o quão séria é a crise de opioides nos Estados Unidos. A urgência, os ataques de raiva, o desespero por conseguir qualquer grama que seja sem que as consequências importem, tudo está ali de modo explícito. A cada página virada a dependência fica maior, a cada linha os riscos corridos se tornam mais imprudentes, e não importa se for preso, tudo que importa é que tenha heroína suficiente para injetar e sobreviver a mais um dia. Não temos momentos amenos, não temos esperança de que as coisas vão melhorar, temos apenas a impiedosa realidade de alguém que não consegue lidar com isso, tendo seu problema ignorado não só por ele mesmo, como também pelas pessoas mais próximas e pela sociedade. Ninguém liga, e o protagonista fala sobre isso durante toda sua narrativa.

Apesar do nome do protagonista e narrador não ser citado em momento algum, a obra é uma semi-autobiografia do autor, sendo contada pelo próprio. Nico Walker serviu no exército, foi viciado em analgésicos e outras drogas e preso por roubar dez bancos. Em 2013 uma matéria sobre seu perfil foi publicada no Buzzfeed, e chamou a atenção de um editor, que imediatamente entrou em contato com Walker. O veterano não quis escrever uma simples autobiografia, e sim uma história que se assemelhasse a sua, portanto, não dá para dizer quais pontos são inventados e quais realmente aconteceram. O fato é que não só ele conta partes de sua experiência de vida, como também expõe um sério problema do país ao escrever um romance sobre opioides.

Seu livro foi recentemente adaptado para o filme Cherry, que estreou dia 12 de março e já está disponível no serviço de streaming Apple TV+, contando com Tom Holland no papel principal.

Em 2019 Nico Walker foi solto em liberdade condicional, e Cherry: Inocência Perdida é seu primeiro livro.

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