O Lago dos Zumbis
Original:Le lac des morts vivants
Ano:1981•País:França, Espanha Direção:Jean Rollin Roteiro:Julián Esteban, Jesús Franco Produção:Marius Lesoeur, Daniel White Elenco:Howard Vernon, Pierre-Marie Escourrou, Anouchka, Antonio Mayans, Nadine Pascal, Youri Radionow, Bertrand Altmann, Gilda Arancio, Marcia SharifYvonne Dany |
Pensar no cinema como uma arte é a forma mais comum de nos referirmos a ele. Não à toa é considerado a sétima delas. Porém, outro aspecto que não deve ser negligenciado é pensar também como uma indústria, e como em toda indústria aplicam-se conceitos clássicos do capitalismo e de mercado, como oferta e procura, concorrência, custo vs. qualidade, lucratividade etc. Ainda sobre este viés, podemos fazer a mesma analogia aos produtos que saem desta esteira: para cada artefato feito artesanalmente, com esmero, cuidado e primando pela durabilidade, existem dúzias de cópias baratas produzidas em uma linha de produção sem um pingo de excelência.
Se no comércio de manufatura este tipo de porcaria para ganhar dinheiro com o mínimo esforço tem o objetivo de enganar ou de se fazer de enganado, no cinema não é muito diferente. E na minha peculiar época favorita, final dos anos 60 até o meio dos anos 90, esta indústria estava em ebulição e, de uma forma ou de outra, qualquer país que tinha alguma fagulha de mercado tentava abocanhar uma fatia com todas as armas que tinham disponíveis: do Brasil e suas pornochanchadas e a boca do lixo até o cinema do underground extremo japonês. E em uma das maiores mecas, a única com potencial de competir com o exploitation dos Estados Unidos estava do outro lado no Atlântico.
E quem ousar (e perder tempo) ao catalogar a história do exploitation europeu – consequentemente do cinema bagaceiro em geral – vai bater de frente com a Eurociné, um prolífico estúdio francês de sua época que detém alguns dos grandes “clássicos” da tosqueira do velho continente, tais como White Cannibal Queen, Manhunter – O Sequestro, Maniac Killer e outras produções repletas de sacanagem gratuita feitas às pressas para competir com o aquecido mercado italiano, sua grande rival na exportação de tranqueiras impressas em celuloide.
Porém de todo seu catálogo, há um filme em especial dos arquivos da Eurociné que não é apenas uma obra prima da falta de recursos e da exposição barata, mas um exercício de resistência, da absoluta falta de lógica e do entretenimento de gosto duvidoso. Este filme é Le Lac des Morts Vivants – ou Zombie Lake, como é mais conhecido -, lançado em 1981.
Curioso que quando se assiste pela primeira vez sem saber nada sobre esta produção franco-espanhola, ela passa a nítida impressão de que é mais um filme do prolífico diretor Jess Franco, um nome que para iniciados não precisa de maiores introduções, dado o nível apressado de fuleiragem apresentada. Todavia, quando se cava um pouco mais, você sabe que alguma coisa está errada desde o princípio quando descobre que Franco realmente estava envolvido com a produção, no papel de roteirista – obviamente escondido atrás de um nome falso e dividindo o posto com Julián Esteban (roteirista do já mencionado Manhunter – O Sequestro).
A estranheza já é posta de cara quando a lenda reza que Franco se recusou a dirigir Zombie Lake por causa do baixo orçamento… Um absurdo tamanho que para efeitos comparativos seria dizer o mesmo que Arnold Schwarzenegger deixou um set de filmagem porque precisava pegar em armas de fogo…
Só que reza a lenda que Franco se recusou a dirigir por causa do baixo orçamento… Agora vejam só o tamanho deste absurdo para quem não pegou a ideia: seria o mesmo que dizer que Quentin Tarantino largou mão de um filme por ter muitas referências, ou que Linnea Quigley não quis estrelar uma película por conter muita nudez gratuita.
Mas enfim, nos tempos dourados onde não havia internet e guias de cinema, desde o lançamento muita especulação circulava entre os círculos de quem tinha tempo demais para pensar neste tipo de coisa sobre quem estaria por trás do pseudônimo “J.A. Laser” utilizado pelo diretor (ou diretores) do filme. Quanto ao óbvio crédito ao próprio Franco, disseram que poderia ser tanto Marius quanto Daniel Lesoeur – o time de produtores pai-filho que trabalharam em inúmeras obras da Eurociné. Algum tempo depois o próprio Daniel esclareceu dizendo que Zombie Lake foi capitaneado em conjunto pelo espanhol Julian de Laserna, em seu único crédito na indústria cinematográfica, com o popular diretor de vampiras lésbicas Jean Rollin, outro que dispensa apresentações. Dessa história outra coisa que não dá pra entender direito é por que Rollin assina com o nome falso na direção e nos créditos de elenco está com seu nome verdadeiro (ele faz uma ponta como investigador de polícia no filme). Penso que talvez o diretor não quisesse ser abordado na rua com perguntas do tipo: “Ei! Não foi você que dirigiu aquele filme ridículo de Zumbis Nazistas?”
Coincidência ou não – provavelmente não – Jess Franco dirigiria outro filme com zumbis nazistas tão tosco quanto este num intervalo minúsculo de tempo – talvez até simultaneamente – em mais uma porqueira da Eurociné, o famigerado Oasis of the Zombies. Porém em comparação, “Lake” é levemente mais profissional e tem um charme todo especial, além de uma quantidade de nudez feminina compatível com as demais produções da Eurociné e dos filmes de Jean Rollin. É nítido que o roteiro de Franco – ainda mais que em “Oasis“… – não se preocupou nada com alguns conceitos básicos de espaço-tempo que veremos agora na dissecação do que podemos chamar de roteiro.
Na abertura avistamos uma garota anônima chegando ao famigerado lago com uma musiqueta de pornô softcore ao fundo que vai nos acompanhar por boa parte do tempo. Neste cenário, ela tira toda a roupa – e contemplamos a primeira cena de nu frontal com apenas um minuto de projeção – deitando num toco de madeira para tomar sol.
Em seguida, a moça vai tomar banho no lago, mas antes ela derruba ao solo uma placa horrivelmente desenhada a mão indicando que nadar no local é perigoso, como se o fato de existir aquela placa impedisse a mulher de mergulhar pelada (!). E sem medo de pegar uma micose ou encontrar um animal peçonhento qualquer, ela entra destemida e despudorada no sujo e abandonado lago. É quando algo curioso acontece: se por fora a água parece esverdeada, nojenta e repleta de material orgânico decomposto, nas tomadas por dentro ela é límpida como se fosse uma piscina… Opa, espere um pouco, esse “lago” tem paredes embaixo! É uma piscina!!!! Há que se pensar se a dupla Laserna/Rollin supunham enganar alguém.
Aparece o primeiro zumbi nazista, que, depois um bom tempo a espreitando, emerge e afoga sua vítima após alguma luta. Agora uma pausa: a primeira característica marcante dele (e dos demais que vão surgir) é a cara pintada de verde; é interessante notar que alguns deles nem possuem marcas de decomposição e sempre parecem limpos com os uniformes impecáveis – e mais asseados inclusive que a maioria dos personagens principais.
O sumiço da garota sem nome vira comentário na pequena cidade francesa onde a história se desenvolve, o que para efeitos desta obra de orçamento minúsculo não passa de uma conversa na taberna local, e os moradores decidem que se ela não voltar no dia seguinte, vão procurar o prefeito (Howard Vernon, figurinha carimbada nos filmes de Jess Franco) para tomar providências. Como Franco não teve a decência de dar um nome ao prefeito, para os efeitos do artigo, vou chamá-lo de Pierre.
Pierre ordena uma busca, porém são encontradas apenas as roupas que ela deixou para trás. Convencidos de que ela se afogou (ninguém pensou em procurar DENTRO do bendito lago), param de procurar. É quando aquele primeiro zumbi sai do lago para espalhar medo e terror aos habitantes da cidade.
Nunca fica claro o motivo de seu ressurgimento, de apenas aparecerem depois tanto tempo após o fim da guerra, já que dá a impressão que grande parte dos moradores usa o lago com frequência para banhar-se ou lavar roupa, debaixo de sua ponte com água corrente, como faz a próxima vítima… Espera aí, eu acabei de dizer ponte sobre um lago com água corrente?! Seus olhos não estão te enganando caro leitor, isso existe, e só deve fazer sentido nos sonhos desvairados da equipe por trás das câmeras.
Eis que o nazi-zumbi, teletransportado para o centro da cidade, aborda a mulher lavadeira mordendo violentamente seu pescoço. Sem dinheiro para produzir uma maquiagem com aquele efeito de retirar nacos após cada mordida, como os italianos caracterizavam tão bem, a solução encontrada pela equipe de efeitos foi fazer o zumbi “babar” sangue falso no cangote da moça, produzindo uma passagem tão constrangedora quanto genuinamente repulsiva.
O monstro desaparece, e o corpo da vítima é encontrada pelo pai, que, sabe-se lá por qual motivo, carrega a moça pelas ruas sem dignidade alguma e deixa o cadáver em frente da casa do prefeito, numa procissão, para quem quiser ver. A expressão de nulidade que o ator faz pela morte da filha – até parece que quem morreu foi o papagaio da família – é tão ridícula que causa risos, aumentado pelo fato que ele só tem uma fala nesta cena, um “Yeah, I know” sem nenhuma emoção.
Sem polícia na cidade para investigar o caso, a primeira que chega é uma jornalista de um grande jornal de Paris chamada Katya (Marcia Sharif), a fim de fazer uma matéria sobre o tal “lago dos fantasmas” como é conhecido na cidade, embora eles também o chamem de “lago dos mortos” ou “dos amaldiçoados“. Ela faz um contato com o fiel escudeiro de Pierre, Chanac (Youri Radionow), que a leva até a casa do prefeito – um castelinho perto do lago – para que ele conte mais sobre a lenda que cerca o local e começa o inevitável flashback.
Em meio a uma recriação da Segunda Guerra Mundial porcamente encenada com apenas uma camionete, algumas explosões e efeitos sonoros, chega à cidade um pelotão de nazistas dizimado por um avião invisível. Uma jovem loira (Nadine Pascal, de Sadomania, de Jess Franco, não confundir com Sadomanie, de Jean Rollin) é salva de uma bomba por um dos soldados de Hitler (interpretado por Pierre-Marie Escourrou), sofre um corte na testa e desmaia. A moça fica grata pelo salvamento e se apaixona perdidamente pelo oficial, entregando-se ao amor proibido dentro de um palheiro – que deve ter pinicado um bocado – próximo das “águas correntes“(Há!) do lago e ela lhe dá um amuleto como prova que ficará esperando pela eternidade.
Ainda em tempos de guerra, algum tempo depois o nazista descobre que sua paixão teve um fruto, uma menina chamada Helena, mas para sua infelicidade, sua amada falece pouco tempo após o parto. Como se não bastasse, o pelotão vai fazer uma varredura no meio do mato e quando os oficiais param para descansar são emboscados pela resistencia formada pelos habitantes da cidade, ajudados pelo futuro prefeito Pierre. Sem tempo para enterrar os soldados, eles decidem jogar os corpos no lago e o resto você já sabe, ou não sabe, pois o roteiro fala pouco e não explica nada.
Voltando ao presente, somos apresentados à garota Helena crescida (Anouchka, filha de Daniel Lesoeur na vida real), com sua aparência de ter tenra infância complexada pela ausência da mãe e do pai. Aí você faz a matemática: se Helena nasceu em meio a Segunda Guerra, ou a história deveria se passar na segunda metade dos anos 50 – teoria que não é comprovada, por causa das modernas vestimentas e dos veículos que aparecem – ou Helena tem na verdade mais de 30 anos com carinha de 11, ou ninguém deu duas patavinas para o casting nepotista e temos mais um tremendo furo de roteiro! Faça sua escolha.
Então a horda completa de zumbis finalmente sai do lago e o prefeito FINALMENTE pede ajuda à força policial – parece que na cidade é mais fácil apenas fazer justiça com as próprias mãos – representado por um incrédulo delegado que manda os investigadores Stiltz (o próprio diretor Rollin) e Morane (Antonio Mayans, recorrente da Eurociné, com mais de 150 créditos como ator) para procurar saber o que está acontecendo.
Neste ínterim, o zumbi do soldado apaixonado reconhece a casa da falecida amante e entra na residência onde se encontra Helena. E não é que através do colar da mãe, Helena descobre que aquele homem pintado de verde é seu pai? E não é que o soldado-zumbi não apenas tem consciência disso quanto sai passeando de mãos dadas com a filha? É ou não é pra cair na gargalhada?
Intimidados pelos céticos policiais até o momento em que a cidade é invadida pelos invencíveis zumbis, o prefeito não tem alternativa senão criar outra força de resistência para impedir os mortos-vivos chupadores de sangue, mesmo que para isso Helena tenha que abrir mão do retorno de seu pai.
Pois é, não há perdão, o filme é ruim de ponta a ponta, o conceito é mal trabalhado, as situações são pífias e o reencontro de “pai zumbi e filha” é involuntariamente cômico pela suas próprias origens, além de metade dos personagens não possuírem nome. Afora isto, o que sobra do roteiro é um amontoado de erros de continuidade e de coerência que só fazem a experiência ser mais estranha.
No exemplo mais notório, um time de basquete feminino vai com uma perua até o lago para se divertir e nadar (peladas, claro). Nove garotas saem da van, na tomada seguinte duas entram no lago e cinco jogam vôlei da beirada, que depois também tiram a roupa e entram naquela pocilga nojenta (ou seja, já sumiram duas), e quando os zumbis aparecem, quatro são atacadas e apenas uma que está de fora foge (total final, cinco).
As próprias características dos zumbis nos fazem ponderar sobre o que Franco estava pensando para escrever com tanta preguiça, até mesmo para os padrões rasteiros da Eurociné. No começo eles mordem as pessoas como os bons e velhos conhecidos do gênero, porém quando resolvem tomar a cidade, alguns saem no sopapo contra os habitantes, um deles em fúria chega até a revirar a mobília da taberna da cidade, derrubando cadeiras e mesas como se estivesse imitando o Hulk da série com o Lou Ferrigno. E o que dizer da forma com que Helena atrai os morto-vivos para a armadilha do prefeito e a “cena da briga de faca entre dois mortos-vivos“? É ver pra crer.
O elenco é péssimo, com muitas figuras não aproveitadas, e o ator mais conhecido, Howard Vernon, não faz mais do que um trabalho burocrático pelo dinheiro que, ‘francamente‘ (se me permite o trocadilho) deveria ser uma mixaria, todavia nada tão ruim como os figurantes. Sempre que pode Rollin dá uma panorâmica nos moradores da cidade e toda vez que o faz é pra cair na risada, uns gesticulam sem sentido e todos ficam apenas olhando direto para a câmera apáticos ante a situação. Todos “ajudados” pela horrível dublagem em inglês que lembra muito aqueles filmes de kung-fu mequetrefes onde a voz está fora de sincronia e os dubladores soltam risadas quando os personagens estão fazendo cara séria. Convém dizer que Zombie Lake foi propositadamente rodado sem captação de áudio local, artifício usado frequentemente na época para cortar custos.
Em outros pontos a culpa é agravada pelo minúsculo orçamento. A maquiagem quase é nula e isso fica nítido quando os zumbis são recebidos com uma saraivada de tiros pelos habitantes e nem um buraquinho sequer é feito em suas vestimentas – para não dizer que nenhum deles cogita acertar um tiro na cabeça dos mortos-vivos, provavelmente por não haver dinheiro disponível para realizar o efeito especial. A pobreza também realça o pequeno número de zumbis, pois apesar de os mocinhos parecerem cercados por todos os lados, nunca aparecem em cena mais do que um punhadinho de antagonistas ao mesmo tempo (sete, para ser mais preciso).
A trilha sonora por sua vez é muito instável. Ela oscila entre a trilha pornô mencionada na abertura, a música incidental feita em dois acordes num piano eletrônico, o tema da “reunião de família” e a música alegre quando o time de basquete está partindo para a natação. Como é de praxe da Eurociné, boa parte da trilha foi reaproveitada de outros filmes anteriores do estúdio.
Ainda assim, no meio deste lago que parece um pântano, descontando a falta de dinheiro e o roteiro mambembe, a dupla franco-espanhola da direção consegue alguns pontos positivos com um bom trabalho de câmera, algumas sequências bem filmadas na parte do flashback e no climax brusco, mas algum refinamento na técnica. Nada, contudo, que livre a produção de ser estigmatizado como um trash de primeira e um guilty pleasure para ser odiado por quem tem uma fagulha de senso crítico.
Muita mulher pelada fecha o pacote, mas prevendo problemas com a censura no mercado internacional, a Eurociné foi esperta e rodou cenas alternativas, mais ‘family friendly‘, por assim dizer, com toda a nudez feminina no decorrer do filme eliminada. Nestes enxertos, a garota da abertura e o time de basquete adentram o lago vestidas e são passagens disponíveis como extras nos DVD e Blu-ray lançados nos Estados Unidos, mas ausentes da edição nacional distribuida pela Vinny Filmes com o selo ‘Clássicos do Terror‘(Oi?).
Trocando em miúdos, O Lago dos Zumbis é mais do que um mero filme tosco, é um jogo dos sete erros que dura 83 minutos com um roteiro virtualmente incompreensível, que não tem terror algum, mas contém um grande potencial de risos e alguma, mas bem pouca, qualidade técnica. Uma produção que não foi feita para ser compreendida, mas tão somente apreciada por aqueles poucos malucos que, tal como o que vos escreve, admiram o bom exploitation ruim da Eurociné.