Dolores Claiborne
Original:Dolores Claiborne Ano:2024•País:EUA Autor:Stephen King•Editora: Suma |
Há milênios os eclipses são um fenômeno envolto em diversos mitos e lendas, sempre associados a acontecimentos importantes – normalmente, fatalidades. Os gregos acreditavam que um eclipse solar acontecia quando os deuses estavam zangados com o rei; os nórdicos acreditavam que, se o lobo Skoll alcançasse o sol, iria engoli-lo e dar inicio ao Ragnarok (destruição do mundo) e, por isso batiam tambores e panelas (sim, isso mesmo) para afugentá-lo. Histórias semelhantes, cada um com sua divindade respectiva, estão presentes nas mitologias egípcia, hindu, chinesa, entre outras. Até hoje, eclipses são vistos para muitos como eventos grandiosos e portadores de mudanças, como se fosse um grande portal energético se abrindo.
Utilizando um pouco do imaginário popular, Stephen King criou uma história onde um eclipse tem um papel crucial, apesar da narrativa não ser exatamente sobre o fenômeno. Publicado anteriormente como Eclipse Total (adaptado para o cinema em 1995 com o mesmo nome), a obra está esgotada no Brasil há décadas e, finalmente, a editora Suma trouxe de volta às prateleiras esse poderoso suspense. Com capa dura, nova tradução de Regiane Winarski e conteúdo extra, Dolores Claiborne é o novo livro que entra para a coleção Biblioteca Stephen King da editora.
O livro, que se passa na pequena ilha Little Tall, começa com um interrogatório, onde a interrogada também é nossa protagonista e narradora: Dolores Claiborne. A mulher está sendo investigada pela morte da rica patroa para a qual trabalhou por décadas, Vera Donovan.
Sem se intimidar nem por um segundo com os policiais ou o interrogatório, Dolores afirma logo de cara que não, não tem nada a ver com a morte de Vera, mas vai contar toda a sua história mesmo assim, e vai ser longa e nada bonita. Foram anos trabalhando para uma pessoa egoísta e insuportável, em uma casa onde mais ninguém conseguia ficar mais do que alguns poucos meses, exceto ela. Dolores sempre esteve lá, desde as visitas ocasionais de Vera à ilha até sua residência permanente, de seus dias xingando todos a seus dias de invalidez sem nem conseguir levantar da cama. Uma funcionária exemplar que ganhou a confiança de alguém considerada uma megera e que não fugiu nem nos piores momentos, não importasse a humilhação. Dolores e Vera se odiavam, mas, no final das contas, também se amavam. Porém, a vida da mulher não se resumia apenas ao trabalho, é claro. Tinha três filhos para criar e um marido que se interessava mais em beber do que em ajudar em algo. Aos poucos, Dolores revela em seu testemunho detalhes assustadores sobre sua vida, seu relacionamento e sua angústia e como, em um dia de eclipse, decidiu que precisava agir o quanto antes para mudar essa realidade antes que fosse tarde demais. Um segredo escondido por trinta anos enfim sairia das sombras e veria a luz do dia.
A narrativa em primeira pessoa é contada de forma direta, ou seja, não há divisão em capítulos. Aqui, Stephen King mostra com maestria seu dom de montar e contar histórias que vão escalando a cada página virada. Dolores é a única e suprema contadora de sua história, então a veremos questionando os policiais, mas nunca as respostas deles, como se nós fôssemos os interrogadores e ela estivesse falando diretamente conosco. O começo assume um tom mais descontraído, com a protagonista alfinetando os policiais, ora xingando, ora lembrando de momentos vergonhosos dos mesmos quando mais jovens, e logo conta sobre como era trabalhar para Vera Donovan. Nas primeiras páginas até então, não há nada que nos tire o fôlego no relato, às vezes com alguns momentos que deixavam claro a solidão da patroa, outros sendo hilários. Conforme a narrativa avança, a história assume tons mais sombrios, especialmente quando Dolores passa a falar de sua vida em casa. Mesmo com todos os pesares, fica claro que ela nunca abaixou a cabeça ou fugiu de conflito, revelando-se uma mulher fortíssima e que faz o que é preciso sem recuar, diferente da passividade que era imposta às mulheres daquela época. Não demora para a descontração dar lugar à tensão, incredulidade e até mesmo raiva. Suas palavras são tão impactantes que os sentimentos da personagem são transmitidos para o leitor.
Tudo acontece ao redor de Dolores, ela é o foco, ela é a pessoa de interesse. Porém, o eclipse é um momento essencial na trama. Assim como nos mitos, a escuridão chega trazendo momentos apavorantes e mudanças e, assim que o fenômeno acaba, as coisas nunca mais serão as mesmas. Para o bem ou para o mal. Sendo assim, o eclipse é o pontinho de fantástico presente tão característico de King, além de pequenos outros elementos escondidos sob formas de visões, alucinações, sonhos e pontos de vista.
Não é nem preciso dizer que a construção da protagonista é magnífica. Dolores despe sua alma ao contar sua história minuciosamente, pontuando todos os seus defeitos sem deixar de lado as qualidades, relatando memórias dolorosas e emocionantes. E que mulher primorosa que ela acaba se mostrando. Forte e resiliente, cujo verbo “desistir” simplesmente não existe em seu vocabulário, que se permite sentir raiva, dor, rancor, amor e compaixão, que sabe o que é certo e errado, que erra e acerta, que é humana. Dolores Claiborne é uma das personagens femininas mais fascinantes e bem trabalhadas de King. Vera também é uma personagem necessária, se revelando muito mais do que uma rica frustrada e egoísta.
O livro aborda questões importantes como violência doméstica e abusos e o sentimento de impotência de quem passa por isso, o quanto isso afeta uma família, a desigualdade gritante de gênero e o quanto a sociedade como um todo fecha os olhos para tal e até mesmo incentiva isso, entre outros assuntos que promovem reflexões. Aqui, mais uma vez, vemos que os humanos poder causar muito mais horror do que qualquer criatura sobrenatural. Apesar de tudo, também é uma história sobre companheirismo, cumplicidade e sacrifícios.
Dolores Claiborne é muito mais do que um eclipse total, é um suspense psicológico que mostra toda a garra de uma mulher que não desiste e se impõe frente às mais variadas adversidades. Ideal para quem prefere uma leitura mais voltada ao suspense do que ao terror e/ou que tem vontade de começar a ler e conhecer Stephen King.
Uma curiosidade: o eclipse retratado neste livro é exatamente o mesmo que ocorre na obra Jogo Perigoso e que acaba, de certo modo, interligando suas personagens, fazendo parte do Kingverso. Não é necessário ler um para entender o outro, mas é sempre interessante ter essa conexão.