4.7
(28)

A Longa Marcha - Caminhe ou Morra
Original:The Long Walk
Ano:2025•País:EUA
Direção:Francis Lawrence
Roteiro:JT Mollner, Stephen King
Produção:Francis Lawrence, Roy Lee, Cameron MacConomy, Steven Schneider
Elenco:Cooper Hoffman, David Jonssonm Garrett Wareing, Tut Nyuot, Charlie Plummer, Ben Wang, Jordan Gonzalez, Joshua Odjick, Mark Hamill, Roman Griffin Davis, Judy Greer, Josh Hamilton, Noah de Mel, Daymon Wrightly

Embora não tenha sido o primeiro livro de Stephen King publicado, esse ficou a cargo de Carrie (1974), A Longa Marcha foi, de fato, sua primeira obra escrita, entre 1966 e 1967, ainda na faculdade. A obra só seria lançada, anos mais tarde, em 1979, quando King decidiu publicá-lo sob o pseudônimo Richard Bachman. Bachman surgiu para que King pudesse lançar mais de um título por ano sem enfrentar a resistência do mercado editorial e, ao mesmo tempo, também testar se o seu sucesso se devia ao seu nome e à fama que já havia alcançado ou à qualidade da sua escrita.

Sob seu pseudônimo, King mergulhava em histórias mais violentas e incômodas, a exemplo de Fúria, livro que foi retirado de circulação por decisão do próprio autor após ser associado a crimes reais. A Longa Marcha se destaca como uma carta de ódio à Guerra do Vietnã e, especialmente, ao recrutamento compulsório de jovens, um retrato da realidade política e social da época em que foi escrito.

Com roteiro de JT Mollner (Desconhecidos, 2023) e direção de Francis Lawrence, conhecido pela franquia Jogos Vorazes, a adaptação cinematográfica de A Longa Marcha chega com alterações pontuais em relação ao livro que não comprometem e, em alguns casos, até enriquecem a essência da obra. No longa, os participantes não são mais crianças, ainda que jovens, estão em uma faixa etária mais alta, o que torna a violência um pouco mais palatável para o público. Para tornar a narrativa mais crível, a velocidade da caminhada também foi reduzida. E ao contrário do livro, em que a multidão acompanha cada passo dos competidores de forma quase onipresente, o longa escolhe exibir essa presença apenas em momentos específicos, reforçando a crítica à espetacularização da morte como evento nacional.

A direção de Lawrence é imersiva e retira o espectador do papel de testemunha, tornando-o quase um dos competidores. Desde os minutos iniciais, quando os rapazes trocam olhares de desconfiança e tentam criar vínculos frágeis, até os instantes em que a morte se torna inevitável, somos arrastados para dentro da marcha. O diretor não suaviza: quer que vejamos de perto a degradação física e psicológica dos personagens ao longo da caminhada. Para isso, cenas grotescas são exibidas sem pudor, em consonância com uma exigência de Stephen King para a adaptação: a brutalidade do material original deveria ser mantida, garantindo que a crítica central não fosse diluída.

Apesar da brutalidade ser um elemento constante, um dos pontos fortes da obra, e que é preservado pelo roteiro de JT Mollner, é o elo de amizade criado entre os competidores. A relação desenvolvida pelo grupo que se autodenomina “três mosqueteiros”, que na verdade são quatro personagens, carrega a mesma dinâmica que funcionou tão bem em outras histórias de King, como It, Conta Comigo e O Apanhador de Sonhos. Essa camaradagem se torna o único refúgio e conforto entre os jovens e, embora suavize o peso da marcha, ressalta a crueldade de vê-los obrigados a criar laços apenas para perdê-los em seguida.

O filme atualiza e mantém viva a metáfora da guerra, seja pelo fato de os personagens se chamarem pelo sobrenome, seja pela presença constante do Major, que ecoa a linguagem militar transformando indivíduos em peças de um mesmo tabuleiro. À medida que o filme avança, não apenas os personagens, mas também a audiência passam a experimentar a apatia diante das mortes, refletindo o quanto a violência se banaliza. O arrependimento dos jovens por estarem na competição se transforma em um lamento desesperado coletivo, um retrato cruel de uma geração sacrificada por uma engrenagem que não lhes oferece nenhuma saída.

O longa conta com atuações competentes e entre os veteranos, Judy Greer consegue imprimir a angústia necessária como a mãe de Ray. Já Mark Hamill, com uma atuação propositalmente caricata, incorpora o Major como uma figura que representa uma alegoria ao militarismo. Apesar do pouco tempo de tela, sua presença reverbera e dá consistência à crítica que a narrativa propõe.

No elenco jovem, o filme reúne rostos promissores e alguns já conhecidos, que entregam atuações convincentes mesmo diante da limitação de desenvolvimento dos personagens. O roteiro não se aprofunda tanto nos backgrounds, que surgem de forma extremamente apressada e até mesmo previsível, o que acaba tirando parte da força dramática e maior conexão por parte do espectador. Ainda assim, Cooper Hoffman sustenta bem o protagonista Ray, equilibrando fragilidade e resistência. Mas quem realmente rouba a cena é David Johnson, que se destaca desde Alien: Romulus. Sua interpretação potencializa a relação entre Ray e Pete e sustenta alguns dos momentos mais emocionantes do longa.

É curioso notar que o personagem de Johnson, que inicialmente parece ser estruturado a partir do tropo do “negro mágico”, expressão cunhada por Spike Lee para criticar personagens negros reduzidos a guias e ao desenvolvimento de protagonistas brancos, vistos com recorrência na indústria cinematográfica, acaba ganhando outra camada. O roteiro consegue subverter essa armadilha, e a dinâmica entre Ray e Pete se apoia em uma troca mútua, em que cada um transforma o olhar do outro sobre o mundo e sobre a própria jornada.

Apesar da falta de desenvolvimento dos personagens e de escolhas narrativas que acabam enfraquecendo a trama, A Longa Marcha ganha potência na direção de Francis Lawrence, que preserva a crítica de King. Além disso, a amizade entre os competidores dá alma ao filme e, mesmo optando por trazer um final diferente do presente na obra original, o longa não perde seu impacto, reafirmando a mensagem de fraternidade: um por todos e todos por um, até o último passo.

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Média da classificação 4.7 / 5. Número de votos: 28

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4 Comentários

  1. Ainda não assisti o filme, mas ler esta crítica que traz uma perspectiva clara e profunda, além de despertar ainda mais a vontade de assistir ao filme, nos faz refletir em como as obras podem, e devem, manter a historia viva, para que nunca esqueçamos e para que não se repita.

  2. Estava com altas expectativas sobre esse filme, mas acho que por isso mesmo acabei me decepcionando.
    Mais um drama maquiado de suspense

  3. Achei essa crítica brilhante. A análise é profunda, bem articulada e vai muito além de uma resenha superficial. É perceptível o cuidado em contextualizar o filme tanto dentro de sua proposta narrativa quanto no cenário sócio‐político que ele parece tocar. A forma como você ressalta os elementos visuais, o ritmo da trama e as escolhas de direção demonstra não só uma observação técnica afiada, mas também sensibilidade estética.

  4. Sempre cirúrgicas as análises da Gabi!
    Um filme com muitas camadas e, quando colocadas em perspectiva assim, fica ainda melhor!

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