![]() A Mulher na Cabine 10
Original:The Woman in Cabin 10
Ano:2025•País:EUA, UK Direção:Simon Stone Roteiro:Simon Stone, Joe Shrapnel, Anna Waterhouse, Emma Frost, Ruth Ware Produção:Ilda Diffley, Debra Hayward Elenco:Keira Knightley, Guy Pearce, David Ajala, Gitte Witt, Art Malik, Gugu Mbatha-Raw, Hannah Waddingham, Kaya Scodelario, David Morrissey, Daniel Ings, Christopher Rygh, Pippa Bennett-Warner, John Macmillan, Paul Kaye, Amanda Collin |
por Renato Droguett
Nos últimos dez, quinze anos, o cinema e o streaming criaram um apetite voraz por thrillers literários que misturam narradoras instáveis, reviravoltas domésticas e claustrofobia social — pense em Garota Exemplar (2014) como ponto de partida do fenômeno que alguns já chamam de “efeito Gone Girl”, seguido por uma leva imediata de títulos na metade da década (onde se destacam A Garota No Trem, 2016) que transformaram o psicológico em produto de massa e redesenharam o que o público espera de um suspense moderno. Houve, de fato, um pulso nítido entre 2014 e 2017 em que editoras e estúdios garimparam best-sellers para adaptação — um movimento que não cessou, apenas se espalhou e se diversificou ao longo da década seguinte, alimentado por tendências como o “domestic suspense” e tramas movidas por tecnologia e ambiguidade moral. E o mercado continua fervendo: além das adaptações recentes que a crítica debate, há ainda na fila projetos de peso — como Verity, de Colleen Hoover, em produção com Anne Hathaway e Dakota Johnson, prova de que a fábrica de thrillers literários segue a todo vapor e que Hollywood não dá sinais de esgotamento desse filão.
Lo Blacklock já é, no papel, um modelo perfeito de narradora tóxica e fascinante: uma jornalista com sono fragmentado, inseguranças, copos a mais e uma visão do mundo que treme sob o vento do mar. Ruth Ware construiu no livro uma claustrofobia quase física — o brilho do convés contrapõe-se ao vazio de quem olha para a água e se pergunta se viu um corpo ou apenas a própria imaginação pregando peças. Essa ambiguidade, esse “será que eu estou vendo ou inventando?”, é o motor do romance e o que mais o legitima como thriller psicológico eficaz: o leitor não apenas acompanha a investigação, participa dela por via da dúvida. Críticas favoráveis ao livro ressaltam justamente essa habilidade de Ware em manejar atmosfera e narrador não confiável, mesmo quando o ritmo vacila em passagens mais introspectivas.
A adaptação da Netflix toma uma decisão clara desde os primeiros minutos: traduzir a ansiedade em imagem e, para tanto, limpa um pouco a sujeira psicológica de Lo. O filme preserva a ideia central — uma jornalista testemunha algo horrível durante um cruzeiro de luxo — mas suaviza (por escolhas de roteiro e direção) as zonas de ambiguidade que, no romance, corroíam a credibilidade da protagonista. Ruth Ware chegou a declarar publicamente que as grandes alterações eram “o caminho certo” para a tela, validando mudanças estruturais necessárias para um formato que exige clareza dramática rápida.
Simon Stone vem da cena teatral — diretor de peças que migrou para o cinema com filmes marcantes como A Filha (2015) e o dramalírico A Escavação (2021) — e traz para A Mulher Na Cabine 10 a mesma obsessão por tensão íntima e encenação contida que marcou sua trajetória. Para o filme, Stone coassina o roteiro com Joe Shrapnel e Anna Waterhouse (com contribuições de Emma Frost na adaptação), uma junção clara entre o olho teatral-cinematográfico do diretor e a economia narrativa da dupla de roteiristas. Não é surpresa, portanto, que a opção estética do longa privilegie mise-en-scène, fotografia e um ritmo que acelera para o clímax — escolhas que podem explicar essa redução da ambiguidade interior da protagonista em favor de maior clareza dramática e impacto visual.
Isso não é um defeito automático: é uma opção estética que rende frutos. No cinema, o arranjo de elementos visuais costuma falar mais alto que a prosa — e o filme sabe fazer desse alto-falante um instrumento de suspense. Filmado em grande parte a bordo do super iate Savannah e em palcos que reproduzem seus interiores, o longa transforma materiais (metal, vidro, água, madeira) em avatares do desconforto: reflexos que mentem, corredores que comprimem, áreas sociais que parecem vitrines de perigo. A fotografia explora contrastes entre luxo e ameaça com precisão cirúrgica, e a montagem usa o silêncio e o som ambiente como instrumentos de tensão. É visualmente sensorial — você sente o vento, o frio, o metal — e isso faz com que muitos momentos de sugestão do livro se tornem momentos de impacto imediato na tela.
A aposta em clareza narrativa rende outro ganho: o clímax. O que a muitos leitores do livro soou como um final “à la Hollywood” — aceleração crescente, exposição em movimento, soluções que exigem certa licença dramática — no filme funciona como espetáculo e catarse. A câmera e a montagem legitimam o inverossímil; o choque vira experiência coletiva. Mudanças explícitas na trama (algumas figuras têm passado reescrito, motivações alteradas e desfechos mais visíveis) convertem a suspeita em confronto, o que, visualmente, dá certo: há tempero e molho cinematográfico suficientes para que o final exploda e satisfaça. Em outras palavras: o que me incomodou quando cheguei à leitura do final do livro, aqui vira mérito formal — a narrativa abraça o crescendo, e a tela o valida.
Mas há preço a pagar. Ao domesticar a incerteza íntima de Lo, o filme perde camadas de perturbação interna que fariam a experiência ser, não apenas um bom thriller, mas um estudo mais corrosivo de incredulidade e violência simbólica. Essa escolha de amenizar a profundidade psicológica da protagonista remete a discussões sobre adaptações que preferem a clareza a custo da interioridade — um exemplo útil de comparação é a adaptação de Jogo Perigoso (2017), de Stephen King, por Mike Flanagan: lá, Flanagan encontrou meios visuais e sonoros para preservar e até extrapolar o núcleo traumático da protagonista, mantendo a guerra psicológica interna sem diluir sua potência quando transportada para a tela. Em A Mulher Na Cabine 10, o caminho tomado foi outro — perfeitamente defendível — mas é legítimo sentir falta de um pouco mais daquela sujeira psíquica que rangia no romance original.
Tecnicamente, o filme é bem servido: direção segura, elenco que segura as pontas (Keira Knightley entrega uma Lo firme o suficiente para que o público acredite nela sem precisar da ambiguidade do livro), fotografia e produção de som que transformam o luxo em algo nauseante quando necessário. Há momentos de previsibilidade nas reviravoltas e alguns atalhos expositivos que a montagem tenta cobrir com um corte bem colocado — nem sempre com sucesso — mas, no geral, a direção de arte e a fotografia justificam o esforço da adaptação porque a experiência sensorial compensa a perda de certas camadas internas. Aqui, há uma mescla de eficiência narrativa com belo acabamento estético.
Para quem leu o livro, a degustação do filme será ambivalente — haverá prazer em ver imagens que potencializam o que antes só se imaginava, e também uma pontada de saudade de um romance que fazia da dúvida a sua força motriz. Se, como leitor, seu incômodo com Ware era justamente o “crescendo hollywoodiano” do final, o filme provavelmente vai te dar razão e consolo: ali, o exagero vira virtude porque a tela sabe fazê-lo explodir. Se, ao contrário, você valoriza o desconforto psicológico em estado bruto, é compreensível lamentar a limpeza de certas arestas. No meu caso, reconheço o acerto adaptativo: o filme funciona muito bem como produto cinematográfico e, em vários sentidos, supera o material de origem naquilo que pretende ser — um thriller de crise e catarse filmável. É afiado, elegante, muitas vezes incômodo de forma correta, com pequenas concessões que só leitores puristas vão realmente lamentar.