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O Concorrente
Original:The Running Man
Ano:2025 / 1982•País:EUA
Autor:Richard Bachman, Stephen King•Editora: Suma

Em 1949 George Orwell apresentou ao mundo 1984, uma obra que se passa em um mundo distópico, onde tudo é controlado e vigiado pelo governo e pelo “Grande Irmão”. Acontecimentos históricos são reescritos, pessoas sofrem lavagem cerebral e são obrigadas a se conformarem com o atual regime, câmeras estão por toda parte vigiando cada passo, incluindo nas teletelas obrigatórias dentro de cada residência, e até mesmo os pensamentos são monitorados. Com claras referências a esse clássico atemporal de Orwell, Stephen King publicou em 1982 O Concorrente, sob o pseudônimo de Richard Bachman (já comentado anteriormente na resenha de A Longa Marcha) e, como faz parte da coleção Os Livros de Bachman publicada pela editora Suma aqui no Brasil, tem um tom mais pessimista e brutal do que os demais trabalhos de King da época.

Em 2025, a humanidade chegou a níveis ainda mais exacerbados de desigualdade social. Condições insalubres de trabalho, pobreza, sistema de saúde decadente e inacessível e desespero são recorrentes entre a população. Livros foram destruídos, o acesso à informação é controlado, e para entreter e controlar a população, a GratuiTV– um grande e poderoso conglomerado televisivo – produz e transmite diversos reality shows. Neles, a parcela mais necessitada da sociedade tem a chance de participar e ganhar dinheiro ao se submeterem aos mais diversos absurdos que ferem um bom número de direitos humanos. Nem é preciso dizer que a participação é, normalmente, mortal.

O reality mais popular entre os telespectadores é O Foragido, que consiste nos concorrentes fugindo de tudo e todos, pois estão sendo caçados em tempo real. O objetivo é não ser pego durante 30 dias para ser considerado vencedor absoluto, entretanto, a população participa ativamente do jogo, fazendo denúncias sobre o paradeiro do concorrente em troca de dinheiro. Ninguém nunca venceu – ou sobreviveu – este jogo. Mas Ben Richards está disposto a tentar. Com uma bebê doente em casa e desempregado, ele já não tem mais nada a perder. E definitivamente não vai deixar o sistema pegá-lo tão facilmente sem retrucar à altura. Um homem verdadeiramente desesperado é a arma mais perigosa que existe.

Percebe-se a influência de Orwell não apenas por ambas as obras falarem sobre um sistema totalitário, onde o acesso à informação é controlado, mas também o fato da televisão ser um ponto-chave importante. Em 1984, a teletela vigia tudo, enquanto em O Concorrente as pessoas que não desgrudam os olhos da tela, porém, assistindo a tudo que acontece com outras pessoas, o sofrimento de outros. O conceito de tudo estar sendo filmado, vigiado, o tempo todo, e assistido, é fundamentalmente Orwelliano, a exemplo do reality show Big Brother, que não tem esse nome à toa.

Apesar das claras alusões, também há diferenças que fazem a obra de King se destacar, e não apenas ser um reciclado de ideias outrora utilizadas. Como citado, ambas as obras falam de um sistema totalitário, mas aqui, estamos falando especificamente da mídia, do controle de massas a partir do entretenimento – tal qual ocorre, em certo grau, em A Longa Marcha – e não do controle do Estado. Na questão da vigilância, enquanto em 1984 ela é obrigatória, em O Concorrente ela é incentivada a partir de tentadoras recompensas, fazendo a audiência de cúmplice. Para uma sociedade que passa necessidade extrema, será mesmo que fazer uma denúncia em troca de dinheiro é algo apenas opcional? Há diferenças e similaridades nesse ponto.

O autor expõe o circo midiático, que molda a opinião das pessoas sobre os mais diversos temas. Ben Richards é pintado como um grande vilão pelo apresentador, sendo que na verdade ele é apenas alguém lutando pela sobrevivência. A manipulação da mídia é, e sempre foi, algo muito perigoso desde os tempos mais antigos. Na era vitoriana pessoas foram sentenciadas à forca, mesmo com falta de provas, por influência da mídia; nos anos 90, O.J. Simpson foi considerado inocente e grande parte disso foi pela cobertura tendenciosa feita pela imprensa. Atualmente, as fake news seguem fortíssimas mesmo sem embasamento científico algum. A manipulação é tanta que confunde o senso crítico das pessoas. E é exatamente isso que é mostrado em O Concorrente. A exploração da violência e desespero em nome do lucro cega as pessoas. Ali, vendo o sofrimento de outros na tela, faz com que elas esqueçam da própria realidade miserável.

É claro que os peões que servem como peças desse jogo sangrento são os mais pobres, e também são os que mais consomem tais programas. As pessoas de classe social mais elevada estão tranquilas em suas casas, sem saber que a qualidade do ar está cada dia pior – afinal, podem bancar filtros respiratórios modernos sem questionar o motivo de sua utilidade -, que há mais pessoas morrendo do que vivendo. Para essas pessoas, a vida segue sem grandes percalços. E, para além disso, eles podem lucrar com a vida dos pobres enquanto se divertem.

A atmosfera do livro é opressora, com o protagonista sem saber em quem confiar, dando o seu máximo para que sua filha possa sobreviver com o dinheiro que ele ganhar. Cada esquina há uma sentença de morte, e ele precisa ser mais inteligente do que seus captores. Com capítulos curtos e diretos, King consegue criar uma narrativa dinâmica, sem momentos que aliviem a tensão. Por isso que foi escrito sob seu pseudônimo mais “sombrio”.

Sabendo como é a dinâmica das histórias assinadas como Richard Bachman, esqueça esperança e finais felizes. O desfecho é mais voltado para um lado pessimista e amargo, que causa um misto de sensações. Os capítulos finais são um tanto caóticos, como se não soubesse exatamente para onde ir. Não compromete a mensagem passada e nem a qualidade de leitura como um todo, mas também perde um pouco da intensidade apresentada ao longo de toda a história.

Stephen King nos entrega uma obra brutalmente verdadeira em O Concorrente, que se torna ainda mais sufocante quando refletimos o quanto é algo real e atual, especialmente pelo livro se passar justamente no ano de 2025. Programas que extrapolam os limites do corpo humano e de sobrevivência são populares, casas são monitoradas 24 horas por dia em nome do entretenimento das massas e, quanto maior o caos que lá acontece, maior a repercussão e a audiência. Os reality shows atuais podem não ser letais no sentido literal da palavra, mas o custo é alto para os participantes. Quanto tempo mais até a morte também virar um entretenimento banalizado?

O Concorrente ganhou uma adaptação em 1987 chamada de O Sobrevivente, com Arnold Schwarzenegger no papel principal. Em novembro de 2025 o livro ganha nova adaptação pela Paramount, estrelada por Glen Powell e dirigida por Edgar Wright, com o mesmo nome do filme de 1987, e promete ser mais fiel à obra original.

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