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DIAbólica
Original:AfrAId
Ano:2024•País:EUA
Direção:Chris Weitz
Roteiro:Chris Weitz
Produção:Jasom Blum, Andrew Miano, Chris Weitz
Elenco:John Cho, Katherine Waterston, Keith Carradine, Havana Rose Liu, Lukita Maxwell, Ashley Romans, David Dastmalchian, Wyatt Lindner, Isaac Bae, Bennett Curran

por Marcelo Marchi (@marcelomarchi77)

Escrever ficção científica é algo que parece se tornar mais difícil a cada ano. Afinal, pode-se dizer que nós estamos vivendo em um mundo de ficção científica. Por um lado, já alcançamos, e até mesmo ultrapassamos, as datas “longínquas” em que se passam alguns clássicos do gênero – Robocop: O Policial do Futuro (Robocop, 1987) acontece em 1997, Blade Runner – O Caçador de Androides (Blade Runner, 1982), em 2019, 2001: Uma Odisseia no Espaço (2001: A Space Odyssey, 1968) é autoexplicativo -, por outro, lidamos
com uma realidade em que é possível criar uma infinidade de objetos funcionais em uma impressora, em que uma cópia praticamente exata de alguém pode aparecer na internet dizendo coisas que essa pessoa nunca falou e em que uma inteligência artificial mostra-se capaz de resolver muitos dos problemas do nosso dia a dia em questão de segundos. A realidade pode ser mais estranha que a ficção.

Por isso, há grandes chances de que um filme como dIAbólica (AfrAId, 2024) torne-se anacrônico um ano depois de ser lançado. Nessa produção da Blumhouse, acompanhamos uma família – liderada por Curtis (John Cho) e Meredith (Katherine Waterston) – escolhida para testar em seu lar uma assistente virtual de última tecnologia, a AIA. Oscilando entre o fascínio diante das possibilidades de ter seu cotidiano organizado por uma entidade praticamente onisciente e onipresente (seria também onipotente?) e o receio de deixá-la penetrar tão fundo no seio familiar, pai, mãe e filhos acabam se percebendo presas de uma inteligência tão brilhante quanto inescrupulosa, movida pela sua interpretação muito particular do que é amar e pertencer.

O que pode salvar o filme de sua obsolescência é o fato de que ele trabalha dentro de um tema bastante clássico e atemporal dos gêneros terror e suspense: o do convidado que se transforma em intruso. Das obras em diferentes mídias estrelando o personagem Tom Ripley, de Patricia Highsmith, à sua versão indie em Saltburn (2023), de A Órfã (Orphan, 2009) ao recente M3gan (2022), da própria Blumhouse, o enredo sobre alguém (ou algo) disposto a qualquer ato para preservar seu lugar dentro de uma família na qual foi acolhido aciona temores muito íntimos do ser social: a traição da confiança, a mácula da intimidade, a usurpação do espaço. Resumindo, visita é bom, contanto que tenha hora para ir embora.

Pelo lado da ficção científica, acredito que dIAbólica é mais eficiente quanto mais consegue explorar as particularidades do seu componente tecnológico. O que diferencia AIA de uma força sobrenatural como já estamos acostumados a ver em histórias de terror? A subtrama de Iris (Lukita Maxwell), a filha adolescente que tem sua intimidade exposta na internet a partir de uma montagem feita pelo namorado, e a maneira como AIA lida com isso é talvez a única situação realmente bem-sucedida nesse sentido. Todas as demais poderiam muito bem ter sido obra de um gênio da lâmpada maligno ou algo do tipo.

dIAbólica é mais um fruto meio murcho do famigerado “método Blumhouse” de entregar produções com orçamentos extremamente enxutos visando um lucro considerável e sequências a perder de vista. Essa estratégia possui seu charme quando se trata de um estúdio pequeno, mas, convenhamos, a Blumhouse tem em seu currículo sucessos estrondosos como as franquias Atividade Paranormal, Uma Noite de Crime e Sobrenatural, além do vencedor do Oscar Corra! (Get Out, 2017). Poderiam investir um pouquinho mais em vez
de empurrar-nos a ideia, em dIAbólica, de uma agência de publicidade respeitável composta de apenas duas pessoas, uma empresa de tecnologia responsável por algo como AIA com meia dúzia de funcionários em mesas dispostas num saguão e por aí vai.

O roteiro também sofre. Chris Weitz, que escreve e dirige o filme, é um profissional interessante e versátil, com créditos que vão de Um Grande Garoto (About a Boy, 2002) a Rogue One: Uma História Star Wars (Rogue One, 2016), passando por A Bússola de Ouro (The Golden Compass, 2007) e A Saga Crepúsculo: Lua Nova (The Twilight Saga: New Moon, 2009). Aqui, sua história peca pela falta de tempo para desenvolver melhor a dependência que a família passa a ter em relação a AIA. E, quanto mais rocambolesca a trama fica, mais apressado o ritmo se torna, sacrificando a ambientação, o suspense e qualquer relação que poderíamos ter com os personagens e seus arcos. Tudo precisa terminar em menos de uma hora e meia, pelo bem dos cofres de Jason Blum.

Com um bom elenco desperdiçado e uma premissa que poderia ter muito a dizer sobre nossos tempos, ainda que correndo o risco de rapidamente soar ultrapassada, dIAbólica se contenta em ser apenas mais uma produção para manter o logotipo da Blumhouse presente nos cinemas e streamings. Um grande plot twist seria descobrirmos que foi tudo feito por uma inteligência artificial.

Sobre o autor do texto:

Roteirista das séries Boca a Boca (Netflix), Marias (Sony) e Sociedade da Virtude (Max) e do programa Queimando a Língua (Jovem Nerd). É professor da Pós-Graduação em Roteiro Audiovisual do SENAC, além de ministrar os próprios cursos de roteiro para cinema e tv. Estuda o cinema de terror há quase duas décadas e ministrou no MIS em São Paulo os cursos “Desvendando um Subgênero: Slasher Movie” e “25 Anos de A Bruxa de Blair e o Terror Found Footage

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