por Michel Silva
Em outubro de 2015 foi lançado o filme I Spit on Your Grave: Vengeance is Mine, o terceiro da franquia conhecida no Brasil como Doce Vingança. O filme foi uma continuação da primeira parte, lançada em 2010, no qual Jennifer, jovem escritora que havia ido buscar tranquilidade para escrever seu novo livro, é estuprada por cinco homens em uma cidade de interior. Jennifer, apesar de bastante ferida, sobrevive à extrema violência sofrida e se vinga um a um dos estupradores, torturando-os e matando-os.
O terceiro filme ignora a história mostrada no segundo da franquia e sequer faz menção à protagonista da produção lançada em 2013. O segundo filme tinha uma história semelhante à do primeiro, ainda que se passando em um lugar diferente. O filme apresentava outra protagonista, Katie Carter, que também é estuprada e se vinga de seus agressores.
Essa recente franquia se remete a um filme de 1978, que mostrava basicamente o mesmo enredo de estupro e vingança. O filme original teve uma sequência não-oficial, lançada em 1993, com o título Savage Vengeance, em que Camille Keaton retoma o papel de Jennifer. O filme de 1978 teve uma continuação direta, I Spit on Your Grave: Deja Vu, lançada em 2019, também com Camille Keaton, em que familiares dos homens assassinados no filme original perseguem Jennifer e sua filha.
O filme de 2015, que retoma a personagem Jennifer, tinha um ritmo bastante diferente dos dois anteriores, que estavam centrados em sequências com fortes elementos de violência, como a do estupro ou dos assassinatos promovidos pelas protagonistas. No terceiro filme, Jennifer revive constantemente o trauma causado pelas agressões sofridas. São seus fantasmas que guiam a narrativa contada.
O trauma de Jennifer – que assume um novo nome, Ângela – é apresentado de forma bastante detalhada, quase didática. Em primeiro lugar, é mostrada uma completa aversão de Jennifer em relação à aproximação de outras pessoas, sem conseguir estabelecer laços de amizade com ninguém, tornando-se solitária e triste. Relacionado a isso está sua repulsa a homens, em quem não confia, mesmo quando são pessoas aparentemente confiáveis.
O filme mostra também a forma insegura que Jennifer caminha pelas ruas. Ela parece temer que qualquer homem que se aproxime possa ser alguém que queira assediá-la ou mesmo estuprá-la. O filme mostra alguns exemplos de situações de constrangimento sofridos por mulheres cotidianamente, seja por cantadas ofensivas ou por outras formas de assédio. Se para qualquer mulher essa situação é desagradável e causadora de medos, para Jennifer é motivo para um pânico que a faz se refugiar ainda mais em seus medos. Esse clima vivenciado por Jennifer é resumido por ela quando afirma para sua terapeuta que “lá fora só há predadores e presas”. Jennifer parece se sentir uma presa em um mundo em que predadores andam impunes coagindo as mulheres.
Jennifer encontra no grupo de apoio a vítimas de violência sexual um espaço onde consegue se sentir menos desconfortável ou talvez menos sozinha. No grupo Jennifer começa uma amizade com Marla. Sua possível amiga possui fantasmas que se parecem muito com aqueles que Jennifer enfrenta.
Marla expressa uma grande raiva em relação à sociedade, mas parece estar mais interessada em verbalizá-la do que fazer algo concreto. O roteiro aproveita algumas de suas falas para apresentar um conjunto de críticas bastante contundentes à sociedade e sua omissão em relação à violência sexual. Marla, entre outras coisas, afirma que “os policiais não vão te ajudar. Ninguém vai te ajudar. Você tem que fazer por si mesma”. Em outro momento Marla critica a situação de “mulheres intimidadas que temem também confrontar o homem abusivo”, presas a “monstros que as torturam ano após ano” no interior da “instituição do casamento”, onde “são escravas de pedófilos e espancadores”.
Em meio a essas reflexões, é inserido o conflito central do filme, ou seja, a tomada de contato de Jennifer com o sofrimento de outras vítimas de estupro. O que possivelmente mais marca Jennifer são os relatos de impunidade, em especial dois que acabam por impactar no desencadeamento da narrativa do filme. Em um deles, a adolescente Cassie narra a violência perpetrada por seu padrasto e a omissão da mãe. Cassie participa das reuniões do grupo escondida de sua mãe, que, nas palavras de Marla, preferia que a filha se envolvesse com drogas do que expusesse os segredos da família. Outro drama, igualmente marcante, é o de Oscar Kosca, cuja filha foi estuprada. O estuprador acabou sendo inocentado por um detalhe “técnico”. O trauma da vítima a levou a cometer suicídio.
Esses dois dramas acabam por conduzir os passos seguintes de Jennifer e Marla. Estas, em um primeiro momento, resolvem apenas dar um susto em Ron, padrasto de Cassie, o que por algum tempo surte efeito. Na cena em que se mostra o ataque a Ron, Marla acaba se descontrolando e quase mata o padrasto de Cassie, sendo impedida por Jennifer. Neste momento fica evidente a relação de cada uma das duas com o passado de agressões, afinal até então Marla havia se limitado a expressar sua raiva em palavras, enquanto anos antes Jennifer havia encontrado sua própria forma de fazer justiça com as próprias mãos. Marla se descontrola frente à demonstração de poder que possui contra Ron, enquanto Jennifer parece conseguir de alguma forma controlar sua raiva. Esse poderia significar um novo momento em sua vida, superando o trauma do passado.
Contudo, a tentativa de Jennifer de mudar os rumos de sua vida termina quando Marla é assassinada pelo ex-namorado. Esse é o elemento que desencadeia novamente o desejo de vingança vivido por Jennifer anos antes. Nesse ponto há uma cena bastante ilustrativa da falta de expectativa das vítimas em relação à ação da sociedade para punir os estupradores, quando Kosca afirma que “as vítimas não importam” para os investigadores, que “só querem documentar coisas” e “ter certeza de que tudo está certo”.
Essas desconfianças em relação à polícia parecem se confirmar quando o ex-namorado de Marla é solto, alegando-se falta de provas. Jennifer não busca inicialmente a vingança. Ela procura o detetive McDylan, que investigava o caso, que fala para Jennifer: “Há um sistema estabelecido. E na maioria das vezes funciona”. Jennifer responde: “Para quem? Não para as vítimas”.
O assassinato impune de Marla desperte em Jennifer a mesma raiva do passado. Em busca de vingança, Jennifer procura o namorado de Marla para matá-lo. O assassinato acaba sendo uma das cenas mais fortes do filme, afinal é mostrado o pênis sendo cortado e Jennifer com a boca ensanguentada.
Jennifer é apontada como uma das suspeitas do crime, e novamente tem uma conversa com o detive McDylan. Jennifer afirma, referindo-se ao ex-namorado de Marla: “Ele foi assassinado. Minha amiga também. Não há justiça para ela. Por que deve haver com ele?” E afirma que a polícia “está mais interessada em pegar o assassino dele do que punir o dela”.
Nesse meio tempo, a situação de Cassie volta a ficar ruim e, sabendo disso, Jennifer novamente age. Para chamar a atenção de Ron, veste-se de colegial, fazendo com que ele a acompanhe a um galpão abandonado. Essa sequência de tortura e assassinato, em que Jennifer enfia um cano no ânus de Ron, possivelmente é a que mais lembra os filmes anteriores.
Kosca acaba sendo apontado como suspeito desse assassinato, afinal ele havia dito na frente do grupo sobre Ron que “alguém deveria machucá-lo”. Jennifer, se sentindo culpada pela injusta acusação, busca então se vingar de Watson, o estuprador da filha de Kosca. Mas, desta vez, sua investida acaba dando errado e quase é estuprada por Watson, que é morto pela polícia. Na delegacia, Jennifer acaba sabendo que estava sendo investigada e, inclusive, que a polícia havia feito a conexão dos assassinatos atuais com os assassinatos cometidos por ela anos antes.
Essa é uma passagem importante, afinal comprova o que ela havia dito, ou seja, que havia um maior interesse da polícia em descobrir a identidade do justiceiro misterioso que cometia os assassinatos do que em provar a culpa dos estupradores, o que leve Jennifer a dizer para McDylan: “Vocês não são melhores que os estupradores”.
Fazendo essa opção de priorizar a perseguição ao justiceiro misterioso, a polícia não precisaria entrar na intimidade de uma família onde uma menor de idade era estuprada pelo padrasto ou procurar evidências físicas do estupro em mulheres já mortas. Nesse momento, Jennifer ainda afirma: “seu eu soubesse o quão incompetente era a polícia, teria passado minha vida com medo e assustada”.
Passada a sequência na delegacia, há um sério problema no roteiro, na medida em que as cenas seguintes parecem desconexas com o restante do filme, mostrando um quase súbito surto de violência de Jennifer. Ela tenta matar um colega de trabalho que, apesar de ter demonstrado certo interesse nela, nunca a havia assediado ou feito qualquer ameaça.
Depois disso, Jennifer caminha pelas ruas com um vestido bastante curto e provocante, se exibindo intencionalmente, em busca de uma presa para matar. Quando finalmente esbarra num rapaz do bairro, que a assediava desde o começo do filme, diz: “É assim que funciona? Tenho que me cobrir com um cobertor para evitar ser estuprada?” Desta vez Jennifer acaba sendo pega em flagrante por McDylan e passa os anos seguintes presa, continuando a terapia e tentando controlar sua raiva.
Essa preocupação com a subjetividade de Jennifer, problematizando seus traumas e medos, se mostra bastante diferente daquilo que se viu em todos os filmes, oficiais ou não, que o precederam na franquia. Em primeiro lugar, neste terceiro filme não há uma longa e detalhada sequência mostrando o estupro, como ocorreu nos anteriores. Por outro lado, há menos violência, mortes e sangue, ainda que algumas cenas possam provocar algum mal-estar no espectador. Parte considerável das cenas de violência ocorre na mente de Jennifer, quando imagina como poderia matar as pessoas que a assediavam ou com as quais se irrita.
No filme, mostra-se Jennifer tentando se realocar na sociedade e superar seus traumas. Contudo, ao mesmo tempo em que se esforça para isso, percebe que o problema do estupro está longe de ser resolvido, ou melhor, é ampla e geral a convivência da sociedade com a impunidade. O filme demonstra uma grande desconfiança em relação às instituições por conta da impunidade dos estupradores. Com isso, Jennifer precisa escolher entre lutar para que a sociedade mude ou continuar sua vingança contra todos aqueles que agridem e abusam cotidianamente das mulheres.
O filme de 2010 parecia ter muito mais a pretensão de rememorar um clássico do passado, sem necessariamente levantar discussões acerca do problema do assédio a mulheres ou do estupro na sociedade. O novo filme, por outro lado, parece querer refletir sobre o estupro como problema instalado e generalizado na sociedade.
O final do filme é ambíguo no que se refere à indicação de um caminho. Embora seja claro em não descartar a possibilidade da vingança, parece ponderar que talvez haja outros caminhos. Denunciando o problema e mostrando saídas possíveis, ainda que ponderando sobre a omissão da sociedade, o filme se coloca como uma importante reflexão sobre os caminhos possíveis na superação da violência contra mulheres.