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A carne humana estava sendo muito bem servida pela cozinha italiana em ambientes de mata intensa, quando George A. Romero achou que era o momento de trazer novamente os mortos à vida. Precisava de um novo sucesso, uma vez que a “noite” tinha se mostrado promissora, mas não lucrativa, e tanto Exército do Extermínio (1973) quanto Martin (1976) apenas lhe direcionaram os holofotes, com boas críticas e baixo retorno financeiro. Voltar ao tema parecia o melhor caminho, e a proposta se fortaleceu depois que o cineasta fez uma visita ao Shopping Monroeville a pedido do amigo Mark Mason, em 1974, e constatou o quanto as pessoas são dominadas pelo consumismo, já imaginando lugares onde sobreviventes poderiam buscar abrigo durante uma emergência.

Assim que concluiu o roteiro, Romero se uniu ao produtor Richard P. Rubinstein para conseguir investidores interessados no projeto. Somente despertou o interesse de Dario Argento, que era um fã incondicional de A Noite dos Mortos-Vivos (Night of the Living Dead, 1968) e aceitou a parceria desde que pudesse trabalhar no lançamento do filme no mercado europeu. O cineasta viajou para Roma, fez alguns contatos importantes, alterações no roteiro com influência italiana e arrecadou os valores mínimos necessários para dar luz verde à volta dos mortos de uma maneira bastante ambiciosa, dispondo de um vasto elenco de figurantes e a autorização para filmar no shopping visitado e em um aeroporto em Monroeville.

Rodado em dois meses, entre novembro e fevereiro de 1978, Dawn of the Living Dead, como inicialmente foi denominado, precisou de filmagens na madrugada e adaptação dos ambientes na retirada das decorações de Natal das lojas, além de helicóptero e muitos baldes de sangue barato, desenvolvido pela intensidade de sua coloração e espessura que lembrava um giz vermelho derretido.

Depois de um longo período de edição e trabalho com trilha incidental e músicas do De Wolfe Music Library e Pretty Things – para a versão de Argento, a banda de rock progressivo Goblin, bastante ouvida no cinema de horror italiano, foi a principal escolha -, Zombi chegou finalmente à Itália em setembro de 1978 com um corte de 119 minutos. Atravessaria continentes e línguas, com esta versão e a de Romero, com 126 minutos, para os falantes de língua inglesa. Chegou ao Brasil em 16 de setembro de 1980, com o título Zombie – Despertar dos Mortos e uma sinopse que parece ter sido feita para um filme exibido na “Sessão da Tarde”, da Rede Globo, para disputar atenção com Mad Max e O Império Contra-Ataca, em cartaz na época:

“Calamidade começa a causar pânico e confusão a partir do momento em que cadáveres começavam a ressuscitar atacando as populações.”

Com três cortes – você pode notar as diferenças, assistir a ágil de Dario Argento e a completa de Romero na Versão Definitiva da Versátil, com Blu-Ray e DVD -, o filme fez o sucesso que diretor almejava, combinando críticas positivas, ótimas reflexões que vão além da evidente referência ao consumismo e uma boa arrecadação nas bilheterias.

“Não, eles não são canibais. O canibalismo no verdadeiro sentido da palavra implica uma atividade intraespécies. Essas criaturas não podem ser consideradas humanas. Eles atacam humanos. Eles não atacam uns aos outros – essa é a diferença. Eles atacam e se alimentam apenas de carne humana quente.” (Dr. Millard Rausch)

Com o excesso de contingente e o Inferno precisando expulsar seus hóspedes, Despertar dos Mortos começa mostrando um mundo devastado pelo retorno dos mortos, com analistas em debate na WGON TV, na Filadélfia, sobre a ética no confronto com os inimigos com ações instintivas. Com a tensão das discussões, os gritos nos bastidores pela fala controversa do cientista Dr. Millard Rausch (Richard France) na sugestão de que os zumbis deveriam ser alimentados, a iminência de uma lei marcial e a dificuldade de encontrar um lugar seguro, o repórter de trânsito Stephen Andrews (David Emge) e sua namorada grávida, a produtora Fran Parker (Gaylen Ross), planejam fugir da cidade no helicóptero da estação, incluindo posteriormente dois policiais de elite, Roger (Scott H. Reiniger) e Peter (Ken Foree), que combatiam uma legião de cadáveres ambulantes em um conjunto habitacional de baixa renda, habitado por latinos e afro-americanos – Romero mais uma vez criticando uma sociedade consumida pela discriminação racial com a inclusão da intolerância religiosa.

Na necessidade de abastecer a aeronave, eles pousam em um posto de combustíveis para somente enfrentarem alguns mortos errantes, incluindo duas crianças (Mike e Donna Savini, sobrinhos do especialista em efeitos de maquiagem Tom Savini, que também tem um papel importante no filme), uma ação extremamente ousada para a época, e usarem as hélices do helicóptero para degolar um zumbi, em um bom efeito e que deve ter servido de inspiração para uma sequência vista em Demons – Filhos das Trevas (Dèmoni, 1985), de Lamberto Bava, com roteiro de Dario Argento, e posteriormente em Extermínio 2 (28 Weeks Later, 2007).

Conscientes de que o combustível não permitirá uma viagem duradoura, enquanto observam um vale tomado por mortos-vivos em uma visão realmente aterradora, eles optam por aterrissar no alto do Shopping Monroeville em busca de abrigo, medicamentos e conforto durante um tempo. As lojas e espaços no interior do estabelecimento estão repletos de zumbis, e logo eles se veem “limpando os corredores” e bloqueando as entradas com caminhões. Enquanto Peter e Roger fazem uso de suas habilidades táticas para confrontar os mortos vorazes, o péssimo atirador Stephen provoca situações que apenas complicam a própria sobrevivência e até mesmo de sua namorada, deixando-a sozinha para quase ser devorada por um Hare Krishna zumbi. “Você deveria ver todas as coisas boas que temos. Este lugar é perfeito.”, ele diz enquanto a moça já planeja meios de alcançar sua independência no local, com aulas de pilotagem de helicóptero e manuseio de armas de fogo, sem perspectivas para seu futuro filho que irá nascer em um mundo tomado pelo caos.

Romero desenvolve um interessante contraponto à cena inicial, envolta em tumulto, descontrole e desorientação, quando, na segunda metade, os sobreviventes se mostram satisfeitos pelos acessos a um universo de produtos e materiais de consumo, zombando da estupidez dos mortos. O espaço comercial assume o protagonismo com a exposição de eletrodomésticos, itens supérfluos como maquiagem, roupas dos mais variados estilos cobrindo manequins, além de alimentação e armas, um cenário diferente daquele mundo do começo, com apartamentos pequenos para muitos ocupantes, com cadáveres acumulados em um porão, alimentando de entranhas e restos dos moradores.

O estado de felicidade do grupo, diante dos acessos e posses, é momentâneo devido à imprudência de Roger, já envolto por uma insanidade notável, e à chegada de uma gangue de motoqueiros, sob a liderança de Blades (Savini, que também atuou no anterior Martin), com a finalidade de “compartilhar” os produtos e do ambiente. Logo o Shopping é palco de uma batalha entre os invasores e sobreviventes, com perseguições e confrontos, com os mortos-vivos como coadjuvantes de uma guerra prevista pelo Sacerdote no começo do filme: “Quando os mortos caminharem, senhores, devemos parar a matança… ou perderemos a guerra.

Revisitando a temática do homem como verdadeira ameaça, tomado de impulsos primitivos em um resgate ao Harry Cooper (Karl Hardman) de A Noite dos Mortos-Vivos, além do declínio de uma sociedade descontrolada na luta desigual pela sobrevivência, George A. Romero deixa evidente mais uma vez que suas narrativas permitem reflexões e debates e que ele se sente à vontade ao lidar com mortos-vivos não como monstros que querem dominar o mundo e, sim, espelhos de uma difícil convivência moldada pelo egoísmo e interesses.

E qual seria o zeitgeist da sociedade no final da década de 70 nos Estados Unidos, se não uma sensação de que seria preciso abraçar com mais intensidade o consumismo para fazer a máquina financeira funcionar? Na própria visão do personagem de Ken Foree, o shopping center é um lugar onde as pessoas se sentem bem, faz parte da sua “terapia de varejo”, mesmo que seja apenas para apreciar as vitrines. Como já visto em experimentos sociais e na própria observação das chamadas “Black Fridays”, as pessoas se amontoam em frente aos mercados e lojas diversas, brigando por espaço no desejo de qualquer produto, como os zumbis “estúpidos” de Despertar dos Mortos.

As criaturas azuladas e/ou acinzentadas de Romero souberam passar o recado. Mas foram além ao participarem de um espetáculo gráfico de violência física, com exposição de órgãos, desmembramentos, mutilação e altas doses de sangue vertendo pelas frágeis carcaças de suas vítimas. O cineasta proporcionou uma obra de horror, dando total liberdade para Tom Savini usar sua experiência como fotógrafo da Guerra do Vietnã para explorar com criatividade a destruição de corpos, não faltando sequências de marretadas, tiros na cabeça e nacos de carne sendo arrancados na consumação da dor e do desespero.

Superior em muitos aspectos ao primeiro filme de zumbis comedores de carne humana, Despertar dos Mortos foi bem aceito pela crítica e hoje figura em muitas listas das melhores produções da Sétima Arte, sem especificar gênero ou subgênero. A revista Empire, por exemplo, em 2008 listou o longa como um dos 500 Maiores Filmes de Todos os Tempos. Se delimitar para filmes com mortos-vivos, numa avaliação atual, a obra se estabelece facilmente entre as cinco mais pela relevância e ousadia.

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1 comentário

  1. De pensar que durante anos eu não pude alugar esse filme porque a capa brasileira era de um cara com um facão enfiado na cabeça. Quando ia na locadora com meus pais, no auge dos meus 10 anos, só de pegar a fita eu já tinha que guardar de volta…kkkkkkkkkkkk não tinha nem discussão.

    Só fui assistir de verdade quando tava no colegial e achei o DVD na falecida 2001 Vídeo. Hoje guardo com todo cuidado.

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