Retrato de um Assassino (1986)

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Retrato de um Assassino (1986)

Retrato de um Assassino
Original:Henry: Portrait of a Serial Killer
Ano:1986•País:EUA
Direção:John McNaughton
Roteiro:Richard Fire, John McNaughton
Produção:Lisa Dedmond, Steven A. Jones, John McNaughton
Elenco:Michael Rooker, Tracy Arnold, Tom Towles, Mary Demas, Anne Bartoletti, Elizabeth Kaden, Ted Kaden, Denise Sullivan, Anita Ores, Kurt Naebig, Peter Van Wagner, Lisa Temple

A glorificação e banalização da violência no cinema vem de longa data, porém foi nos anos 80 que atingiu seu ápice através de filmes como Rambo II, Braddock e os inúmeros slashers do cinema de horror. Pegar uma metralhadora e assassinar centenas de inimigos seria uma forma de entretenimento válida e indefesa, não deixando qualquer sentimento de culpa no espectador quando uma granada explode no campo de batalha em catarse desmembrando figurantes ou quando o facão de um assassino mascarado é enfiado nas entranhas de um gordinho chato ou de um casal promíscuo.

Até que alguém resolveu refletir sobre como a violência também pode ser cruel, suja, feia e difícil de assistir. Acima de todas as convenções do gênero, este é o ponto inicial de um dos maiores clássicos do cinema oitentista, Retrato de um Assassino (Henry: Portrait of a Serial Killer, 1986), trabalho de estreia em longas do diretor John McNaughton, que conquistou crítica e público ao adaptar livremente a história de um dos mais conhecidos serial killers do nosso tempo.

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Mas primeiro vamos voltar um pouco no tempo. Em 1984 John McNaughton, que era um entregador de equipamento de vídeo, foi contratado por seus patrões na empresa onde trabalhava, a Maljack Productions, para criar um documentário sobre gangsteres em Chicago na década de 30. Este documentário em si seria muito barato de se produzir já que em quase sua totalidade usava filmes de domínio público. Trabalhando com este material, ele criou o filme Dealers in Death, que foi um sucesso moderado e gerou algum lucro para a empresa.

Animados com o resultado, os produtores Malik B. Ali e Waleed B. Ali tinham interesse em um segundo documentário, desta vez enfocando o cenário da luta livre profissional nos anos 50 em Chicago, numa época bem antes da popularização da WWE e da profissionalização da profissão. Porém quando o acordo de compra das filmagens antigas de um colecionador melou (diz-se que ele dobrou o preço combinado com os produtores em cima da hora), Waleed cancelou o projeto, e, para não prejudicar McNaughton, ofereceu-lhe um orçamento de 100 mil dólares e completa liberdade para que ele criasse um filme de terror.

Sem experiência e com pouca ideia de como começar, mas ciente de que, com este dinheiro não daria para fazer qualquer produção sobre alienígenas ou monstros que pudesse ser considerado pelo público, o diretor foi chamado por um amigo colecionador de diversas obras obscuras em VHS que o mostrou uma fita com um trecho de 20 minutos do programa investigativo americano, 20/20, que contava a história de Henry Lee Lucas, assassino confesso de mais de 600 pessoas, embora seja confirmado que tenha cometido muito menos que isto (mais detalhes no final do texto).

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Impressionado com o material, McNaughton aproveitou a entrada no barco de Richard Fire (contratado pelo produtor Steven A. Jones) e ambos escreveram o roteiro inspirados em como escrever algo impactante, diferente do que o mainstream tinha a oferecer na época, e que ao mesmo tempo pudesse ser financiado com o chorado orçamento disponível.

A busca pelo elenco que se sucedeu aproveitou dos contatos que os responsáveis tinham com pequenos grupos de teatro alternativo onde chegaram até o Organic Theatre Company e tiraram os atores Tom Towles e Tracy Arnold para dois dos papéis principais. Para o papel título, um amigo em comum chamou o então desconhecido Michael Rooker para as audições. Incorporado no personagem, o diretor ficou abismado pela fisionomia de Rooker mesmo sem ele ter dito uma única palavra: “Ele havia acabado de chegar com as roupas de trabalho e quando ele entrou pela porta pensei: ‘Deus, que ele saiba atuar, porque a fisionomia é perfeita para o papel’“.

Evidentemente que as expectativas foram atendidas, Rooker foi contratado e após 28 dias de incessantes filmagens em outubro de 1985 na fria Chicago, o filme foi concluído, todavia a história ainda estava longe de terminar…

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Retrato de um Assassino abre com uma montagem de Henry (Rooker, que se tornou astro em The Walking Dead) vagando pelas ruas de Chicago e suas vítimas femininas em vários estágios da morte, mas ao invés de mostrar assassinatos brutais, o diretor mostra apenas seus corpos já sem vida enquanto a trilha sonora assombrada tenta nos remeter ao que aconteceu momentos antes, inclusive com a visão impressionante de uma mulher parcialmente desnuda com uma garrafa enfiada na boca.

O assassino que também trabalha como exterminador de insetos – e assim tem acesso a várias residências sem questionamento – mora com Otis (Towles), ex-colega de prisão de Henry, agora em liberdade condicional e que ainda mantém atividades criminosas. Contudo, o equilíbrio do relacionamento entre os dois é quebrado pela chegada da irmã mais nova de Otis à Chicago, Becky (Tracy Arnold).

Becky é uma bela garota que está interessada em trabalhar na cidade e juntar algum dinheiro. Ela julga que terá mais oportunidades em Chicago do que onde vivia e para isto deixou para trás a mãe e a filha e foi morar com Otis e Henry. Conforme a tensão sexual aumenta no pequeno apartamento, Henry conta a Becky que foi preso no passado por matar a própria mãe, depois de ser obrigado por ela a vê-la fazendo sexo com outros homens, no que Becky também revela que foi abusada repetidas vezes pelo próprio pai quando era apenas uma criança.

Henry cria afinidade com Becky e, paralelamente, também com Otis: ele descobre que o parceiro também tem um desejo por sangue e uma nova atroz parceria é formada enquanto afundamos cada vez mais na natureza dos hábitos de Henry. Sem controle e sem medo de qualquer castigo, Henry e Otis demonstram serem donos de um caráter cada vez mais cruel até Becky entrar na equação. A pergunta a se fazer é: os instintos assassinos que comandam Henry podem ser desligados pelo amor a garota?

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A primeira coisa que chama a atenção, antes das mortes e sangue, é o tom depressivo dos personagens que já indica que nada deve terminar bem no final, especialmente na cinzenta e apática Chicago retratada. Não há maniqueísmo nos personagens: Henry é um assassino confesso, impulsivo e sem remorso, ainda que siga um código moral bem definido; Becky sabe do perigo que corre, sabe do passado e do presente de Henry, mas mesmo assim o segue até o fim, e para Otis nada é sagrado pois enxerga os outros apenas como um pedaço de carne, gado a ser abatido por pura diversão.

O desenvolvimento das diferentes características de personalidade de Otis e Henry é estabelecido na primeira interação em cena (um mero café da manhã com Becky) e daí para frente é tão bem aprofundado que se torna mais que um retrato como o título sugere e passa a ser um verdadeiro estudo da mente de um serial killer que só encontra paralelo com Driller Killer de Abel Ferrara. Tudo apoiado num elenco espetacular que consegue superar as limitações de orçamento e entregar papéis dignos interpretados com muita franqueza, e os diálogos – que, aliás, são pontuadas de um sarcasmo afiado que beira a tolice e chega a causar irônicos risos algumas vezes – fluem com grande naturalidade.

A este tom se soma a violência: a princípio não vemos os atos sendo mostrados, porém vão aumentando em intensidade para algo tão impactante que passamos a ser mais que espectadores, mas verdadeiras testemunhas, atingindo o ápice justamente quando o diretor procura questionar a violência como forma de entretenimento… Este climax acontece quando Otis e Henry decidem fazer um snuff para seu próprio lazer. Para fugir de potenciais spoilers, pule o próximo parágrafo.

Certamente o espectador que apenas ouviu falar sobre o filme tem em mente a cena onde Henry e Otis vão a um contrabandista obeso comprar um novo aparelho de televisão. O cara aporrinha tanto os dois – evidentemente sem saber do perigo que corre – que acaba sendo apunhalado com um ferro de solda e tendo uma TV socada na cabeça. A cena é construída de forma a ser propositadamente caricata, um típico retrato dos slashers oitentistas. Cerca de 20 minutos depois, em um exercício de metalinguagem, vemos uma família ser brutalizada por Otis enquanto Henry faz a filmagem com uma câmera VHS, quando a chocante filmagem termina e a câmera afasta, estamos praticamente sentados no sofá com os assassinos assistindo a cena. Otis inclusive quer ver tudo novamente em câmera lenta. O diretor nos mostra a contradição deliberadamente como se perguntasse: isto é entretenimento?

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Se há um defeito é o tempo… Retrato de um Assassino envelheceu bastante, claro que não a ponto de perder sua relevância e seus pontos de reflexão, porém o suficiente para diminuir o impacto de algumas cenas pois, mesmo com seus 83 minutos, (o primeiro corte tinha mais de duas horas de projeção) ainda fica a impressão de que tem algumas coisas sobrando, contudo nada que desmereça o trabalho do diretor.

De fato, à sua época, diversos espectadores reclamaram diretamente a Richard Fire e John McNaughton sobre a ausência de uma força da lei, de não haver um “herói” ou sequer uma conclusão positiva e definitiva. A estes ambos responderam simplesmente que este era exatamente o objetivo, o que trouxe diversos problemas para que o filme saísse da obscuridade.

Após ser lançado pela primeira vez no festival internacional de cinema de Chicago em 24 de setembro de 1986 e circular em alguns festivais com críticas extremamente positivas, houve uma tentativa de lançamento comercial, o que envolvia submeter o filme a avaliação da MPAA – organização responsável pela classificação etária nos Estados Unidos. Acontece que ao contrário de alguns filmes onde o problema com o órgão estava em cenas específicas (que poderiam ser atenuadas ou cortadas da versão do cinema) os avaliadores condenaram a “falta de tom moral” da produção, o que significava que não havia qualquer combinação de cortes para que o filme recebesse a classificação R (menores de 17 anos somente acompanhados pelos pais) ficando com a classificação X (proibido para menores de 17 anos).

Como a classificação X ficou associada a indústria pornográfica e a distribuidora não queria sacrificar-se comercialmente, o filme finalmente foi lançado somente em janeiro de 1990 quando a MPAA criou uma classificação específica para filmes proibidos para menores não pornográficos, denominada NC-17, sem qualquer corte da versão do diretor, rendendo 600 mil dólares em bilheteria total, um valor pequeno, porém bem acima do orçamento total.

No Reino Unido a história foi mais complexa: a distribuidora precisou remover 62 segundos para ser lançado nos cinemas em 1991, porém no lançamento em vídeo em 1992 a BBFC (órgão censor da Inglaterra) exigiu outros diversos cortes, totalizando 113 segundos. Somente em 2003 a BBFC aprovou o lançamento sem cortes para o lançamento em DVD pela Optimum Releasing.

No Brasil, terra da copa das copas, o filme só está disponível em um VHS sem cortes pela finada Look Vídeo, relativamente fácil de encontrar nos sebos (só não acredite no encarte feio que diz que a duração é 90 minutos). Ao colecionador de preciosidades a pedida então é comprar o DVD duplo ou ainda o Blu-ray lançado pela Darksky nos Estados Unidos, que além de ter o filme sem cortes possui uma vasta quantidade de material extra.

De qualquer forma e em qualquer mídia o leitor que chegou até aqui a recomendação é certa e você, gostando ou não, de como John McNaughton nos faz passar pelos tormentos de Henry e pela angústia de suas vítimas, não ficará indiferente.

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Gabriel Paixão

Colaborador e fã de bagaceiras de gosto duvidoso. Um Floydiano de carteirinha que tem em casa estantes repletas de vinis riscados e VHS's embolorados. Co-autor do livro Medo de Palhaço, produz as Horreviews e Fevericídios no Canal do Inferno!

7 thoughts on “Retrato de um Assassino (1986)

  • 03/07/2019 em 17:44
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    Vi no sbt em 96 sem cortes e achei ótimo.

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  • 20/12/2015 em 04:23
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    Ótima crítica! Texto muito bem escrito e com muita informação. Somente um adendo: não é Henry quem fala a Becky sobre o assassinato de sua mãe e sim o seu irmão Otis (somente depois que é focado este assunto, com Henry se abrindo e entrando em contradição quanto a forma em que sua mãe foi morta).

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  • 01/09/2014 em 10:19
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    como faço pra ver esse filme RETRATO DE UM ASSASSINO ja procurei mais não encontro

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  • 17/06/2014 em 09:19
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    procurando pra ver imediatamente.

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  • 16/06/2014 em 10:31
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    Realmente um ótimo filme. A cena em que a família é morta pelos protagonista sempre me incomodou bastante pelo seu realismo.

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  • 15/06/2014 em 15:42
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    Com certeza é merecido ter 5 caveiras , esse filme é muito bom , altamente recomendável . Apesar de não mostrar a brutalidade de todas as mortes sendo executadas , mais é mostrado o resultado nos corpos de suas vítimas que foram espancadas , estupradas , torturadas e cortadas até a morte sem piedade por Henry , vendo isso você pode imaginar a crueldade com que eram feitos os crimes , mais vale destacar a morte do contrabandista obeso e o filme snuff feito pelos 2 sádicos , o filme é bem violento até tendo problemas com sua classificação. ” Henry : Portrait of a serial killer ” com certeza faz parte da minha coleção !

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