A Nuvem (2021)

3.7
(7)

A Nuvem
Original:La Nuée
Ano:2021•País:França
Direção:Just Philippot
Roteiro:Jérôme Genevray, Franck Victor
Produção:Thierry Lounas
Elenco:Suliane Brahim, Sofian Khammes, Marie Narbonne, Raphaël Romand

(o texto abaixo contém alguns SPOILERS)

Virginie perdeu o marido há pouco tempo e precisa com urgência superar suas dificuldades financeiras. Só assim poderá salvar sua pequena fazenda da falência e garantir o sustento do seu casal de filhos, a adolescente Laura e o pequeno Gaston. Para ela, a única alternativa é continuar investindo em sua criação de gafanhotos para alimentação animal ou humana. Segundo Virginie, a quantidade de proteína presente nos insetos é maior que a da carne bovina e no futuro poderia substituir por completo alguns alimentos. Contudo, ela começa a se preocupar, pois os bichinhos não estão comendo ração o suficiente e nem querem saber de se reproduzir, inviabilizando o comércio em uma escala maior e mais lucrativa. E para agravar mais a situação, seu relacionamento com os filhos – que sofrem bullying por causa do ganha-pão incomum da mãe – anda complicado e está à beira de um colapso. Mas como dizem por aí, o mundo dá voltas e tudo muda quando Virginie descobre sem querer que um certo líquido vermelho é o suplemento nutricional perfeito para os gafanhotos. Bem alimentados, além de crescerem mais do que o esperado, eles começam a se multiplicar muito rapidamente – o que é ótimo para os negócios. Entretanto, apesar dos bons lucros, a relação obsessiva de Virginie com os insetos também se intensifica, transformando-se em um grande e real perigo para si própria e para os filhos.

Produção francesa quase independente, La Nuée (título original) é o primeiro longa-metragem do desconhecido Just Philippot, que até então tinha dirigido apenas alguns curtas pouco ou nada conhecidos do público em geral. Comparado inicialmente ao clássico de Alfred Hitchcock, Os Pássaros (1963), o longa teve o seu grand debut em outubro de 2020 no reconhecido festival dedicado ao gênero fantástico, Sitges (realizado na Catalunha, Espanha, em tempos de não-pandemia). Além da indicação a melhor filme (cujo vencedor foi Possessor, de Brandon Cronenberg), ele abocanhou os prêmios Especial do Juri e de melhor atriz para Suliane Brahim. Onze meses depois, a Netflix disponibilizou com exclusividade A Nuvem em seu catálogo. Porém, ao contrário do festival catalão, a audiência da plataforma ficou dividida no que diz respeito ao filme. Sem dúvida, parte da má-recepção deve-se as expectativas equivocadas: o roteiro, assinado pela dupla Jérôme Genevray e Franck Victor, desenvolve uma trama intimista e melancólica, cujo horror é apenas uma camada que reforça o estranhamento causado pelo comportamento bizarro e descontrolado da protagonista, interpretada pela convincente Suliane Brahim (da série Labirinto Verde, de 2017). A atriz dá vida a obstinada mãe-recém-viúva de dois filhos que ultrapassa muitos limites para assegurar o bem-estar da família. Uma performance notável, em que alterna certa apatia (proposital) nos momentos de quase desesperança com alguma euforia quando surge uma circunstância mais favorável. O elenco ainda conta com Sofian Khammes, Raphaël Romand, Victor Bonnel e Vincent Deniard.

Em resumo, um ponto significativo a considerar é que A Nuvem, no mínimo, não é um horror no sentido convencional. É quase compulsório aceitarmos que o desenvolvimento e a transformação da protagonista (em conjunto com suas relações sociais e familiares) é muito mais importante do que o enxame dos gafanhotos em si. Este entendimento com certeza melhora a experiência do espectador em relação ao filme.

A famigerada nuvem do título (que quase não aparece) pode ser interpretada como uma grande metáfora representando os excessos e o desequilíbrio da protagonista. Outra análise curiosa seria uma espécie de materialização da expressão “dar o sangue”, no sentido em que a mãe chega ao extremo de literalmente alimentar com seu próprio sangue os insetos e assim amparar o bem-estar dos filhos. Sem exagerar nos spoilers, podemos chegar a uma conclusão óbvia e até mesmo clichê de que o ser humano, seja por bons ou maus motivos, sempre é o vilão quando comparado a natureza.

Referente à estética e a dinâmica do longa, predomina uma atmosfera anticlimática e depressiva potencializada pelo ritmo cadenciado e pela fotografia que investe em tons mais frios e acinzentados. É possível notar também uma intenção clara em construir uma obra com teor mais crítico (o que é alcançado com considerável sucesso) e que de quebra cause algum efeito desagradável ao espectador. Mas falta empenho para que a produção possa ser considerada realmente desagradável ou incômoda. Os realizadores pecam onde o gênero horror poderia fortalecer ainda mais os conflitos dramáticos. Há pouquíssimo suspense e ainda que ocorram situações mais cruéis (como a morte não de um, mas de dois animais de estimação), tudo acontece em off screen, o que limita muito o impacto psicológico e visual das cenas em questão. Vale lembrar que boa parte da audiência esperava apreciar os gafanhotos devorarem as vísceras de algum humano qualquer – até porque A Nuvem foi vendido pelo trailer e pela Netflix como um legítimo filme de terror. No entanto, cabe aqui uma ressalva positiva: as primeiras cenas em que a personagem permite que os insetos se alimentem de seu sangue, deixando que eles mordam e perfurem sua pele, são perturbadoras e criam uma boa expectativa pelo “por vir” dos atos seguintes. As tomadas são detalhadas e os insetos são reais e focalizados em altíssima definição. Os efeitos digitais são utilizados somente em ocasiões posteriores, quando o enxame entra em ação. Apesar das limitações orçamentárias e de tecnologia, o resultado é razoável e não compromete o realismo predominante do restante do filme.

Conforme esperado, os efeitos sonoros têm uma função muito relevante no filme. Com a progressão da trama e a evolução dos personagens, a quantidade de gafanhotos também cresce, assim como o ruído irritante feito pelos insetos – favorecendo a atmosfera de loucura do ato final.

Uma informação adicional: o uso de insetos como alimento por seres humanos, chamado entomofagia, está muito em pauta entre os cientistas, que corroboram o discurso de Virginie em seus estudos: os gafanhotos e outros artrópodes (larvas e escorpiões, por exemplo) são uma fonte sustentável de proteína e será uma forma de alimentar as gerações futuras. Segundo eles, esta opção deve ser considerada com seriedade, visto que hoje já encontramos obstáculos em prover comida de qualidade para todas as 7 bilhões de pessoas que vivem no planeta. Este tipo de cultura já existe no Brasil e em diversos países, como Israel, onde o chamado concentrado proteico de origem animal já é produzido em grande escala. Em contrapartida, mesmo que se alimente apenas de componentes vegetais e não seja vetor de nenhum tipo de doença, o gafanhoto em geral é visto como um vilão – má-fama que provavelmente vem desde as famosas pragas bíblicas. Em 2020, mesmo ano do lançamento de A Nuvem nos cinemas europeus, notícias sobre um enxame real com milhões de gafanhotos que estariam destruindo plantações na Argentina e no Paraguai e poderia chegar por aqui estiveram presentes nos principais noticiários tupiniquins.

Retornando para A Nuvem, o desfecho decepcionante é outra deficiência do longa – talvez a principal. Nota-se o propósito de contrapor a dinâmica lenta e compassada dos atos anteriores a um desenlace mais ágil e frenético (com o enxame se libertando e perseguindo justamente quem a protagonista desejava mais cuidar, a sua filha). Contudo, a suposta qualidade inicial é abandonada neste momento e a sequência de acontecimentos parece apressada, artificial e principalmente carente de emoção.

Enfim: independentemente da proposta intrigante, do bom desempenho do elenco e da camada dramática bem desenvolvida, faltou à produção francesa A Nuvem um pouco de personalidade e ousadia, em especial nos momentos em que o foco é o horror. O desfecho, que poderia surpreender e restaurar os pontos mais positivos da produção, é insuficiente e enfadonho.

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João Pires Neto

João Pires Neto é apaixonado por livros, filmes e música, formado em Letras, especialista em Literatura pela PUC-SP, colaborador do site Boca do Inferno desde 2005, possui diversos contos e artigos publicados em livros e revistas especializadas no gênero fantástico. Dedica seu pouco tempo livre para continuar os estudos na área de literatura, artes e filosofia

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