Butcher Boy - Infância Sangrenta
Original:Butcher Boy Ano:2021•País:UK Autor:Patrick McCabe •Editora: DarkSide Books |
Por muitos séculos a Irlanda esteve sob domínio inglês, considerada por eles uma grande fazenda, e não um país com pessoas que literalmente morriam de fome e exportavam seus cultivos em troca de esmola. O império britânico até mesmo chamava-os de porcos, associando a imagem dos irlandeses à pobreza, sujeira, falta de modos e selvageria, indignos de serem tratados como iguais. Após sua violenta independência, em 1922, o país ficou na miséria por diversos anos a fio, fazendo com que as pessoas migrassem em busca de melhores condições de vida. Quando, enfim, conseguiram se estabelecer economicamente, a influência inglesa estava fortíssima: na língua, na cultura, nos modos. A infância das crianças após esse período conturbado era mais tranquila, porém, com pais frequentemente assombrados pelos horrores do passado, não poderiam viver na inocência que mereciam. Abusos infantis de todos os tipos eram comuns, transtornos psicológicos causados por décadas de violência e repressão também, de modo que a Irlanda chegou a ser considerada o país com maior índice de transtornos mentais da Europa em meados do século XX, justamente o período que se passa Butcher Boy, de Patrick McCabe.
Francis Brady é um menino simples, filho de um casal típico irlandês. Ia à escola, brincava com seu melhor amigo Joe, nada fora do normal para uma criança, até que um aluno novo chega à cidade. Curioso, Francie vai cumprimentar o novato, chamado Philip Nugent. Aparentava ser elegante e educado, diferente de todos os outros, ostentando uma rara coleção de gibis que logo mostrou aos seus novos amigos. Os garotos decidem pregar uma peça em Philip, roubando suas preciosas revistas, e isso faz com que a senhora Nugent vá imediatamente tirar satisfações com a família Brady. Tamanha é sua revolta que os chama perversamente de porcos, alegando que jamais deveria ter deixado o filho sair com alguém daquela laia. Não gostando nem um pouco do que ouviu, Francis, revoltado e indignado, decide que os Nugent são agora seus inimigos jurados.
Após o suicídio de sua adorada mãe, Francis começa a mostrar cada vez mais traços de desequilíbrios mental e emocional, aflorando uma crueldade que sempre esteve ali, e agora foi desperta. Seu ódio pela família Nugent toma proporções absurdas, levando o garoto ao reformatório devido a um extremo ato de vandalismo, onde sofre repetidos abusos até ser solto, deixando a situação cada vez pior. O pequeno Francie está prestes a chegar ao seu limite e explodir, determinado a honrar seu título de “porco”.
A história é contada sob a perspectiva de Francis, de modo que ficamos com a sensação de estarmos dentro de sua cabeça, com uma torrente de pensamentos sendo despejada sem interrupções, literalmente. Sua confusão mental fica evidente e é transferida para o texto, nos dando essa mesma sensação. Não há divisão clara de capítulos ou de acontecimentos, muitas vezes nem mesmo vírgulas, o que pode causar certo estranhamento. São memórias um tanto obscuras e distorcidas jorrando conforme o protagonista vai se lembrando delas em sua mente, à época, infantil. Pouco a pouco, vemos a inocência se transformando em maldade.
Somos bombardeados com diálogos ora reais, ora imaginados e claras alucinações do personagem, mesclados à realidade dos fatos. Os abusos sofridos e mesmo suas ações são contadas com bom humor, tentando transformar traumas sérios em piada, como se não fossem nada demais, tentando proteger sua infância minimizando a importância dos acontecimentos e escondendo sua dor, o que faz tudo ficar ainda mais perturbador. Tanto quanto seus atos.
Francis mostra claros sinais de esquizofrenia, distúrbios de personalidade e problemas com controle de raiva. A depredação que o faz ser levado ao reformatório é acompanhada de uma série de devaneios que fazem total sentido para o garoto naquele momento. Cada coisa que faz é de modo sensato em sua cabeça, sendo justificada especialmente como se tudo fosse culpa da senhora Nugent, não dele. Francis culpa os novos vizinhos por tudo que dá errado em sua vida, afinal, foi a partir de sua chegada que as coisas desandaram, fazendo com que ficasse completamente abandonado inclusive por Joe, acontecimento que contribuiu para deixar seu último rastro de humanidade para trás.
Butcher Boy mostra como o meio pode transformar uma criança. Francis já tinha maldade em si, mas a sucessão de abusos verbais, emocionais e psicológicos aos quais foi submetido foram grandes responsáveis por acabar com o que restava de sua sanidade e escrúpulos. Exposto frequentemente a um ambiente desequilibrado em casa, aliado à sensação de abandono, angústia, injúrias e de não ser devidamente ajudado quando necessário fez sua mente distorcer acontecimentos e normalizar violência e agressividade.
Patrick McCabe também faz o paralelo sociocultural citado no começo do texto. Os Nugents são os “colonizadores” com boa educação, bons modos e bens, enquanto os Brady são a escória irlandesa desprezada, de quem só se espera sujeira, ignorância e atos grotescos. E é exatamente isso que vão ter.
O autor ganhou o Irish Times Irish Literature Prize for Fiction por Butcher Boy, que também possui uma adaptação cinematográfica feita pelo cineasta Neil Jordan, intitulada Nó na Garganta (1998).
O livro possui gatilhos de abuso infantil, suicídio e violência, não sendo recomendado para pessoas sensíveis aos temas tratados.
Parece maneiro. Vai para a lista! Obrigado pela resenha.