Biblioteca Gaiman – vol. 1 (2021)

4.5
(8)
Biblioteca Gaiman – vol. 1
Original:The Neil Gaiman Library – Vol. 1
Ano:2021•País:EUA
Páginas:288• Autor:Neil Gaiman •Editora: Intrínseca

Navegando pelas mais diversificadas mídias, criando os mais diferentes mundos e contando histórias de forma única, Neil Gaiman é um dos autores mais aclamados, prolíficos e criativos da atualidade, com um gosto pelo fantástico e sombrio. Muito conhecido e consagrado por Sandman, é até difícil acreditar que suas obras foram rejeitadas no começo de sua carreira, levando-o a trabalhar com jornalismo, entrevistando pessoas e fazendo críticas literárias. Pouco a pouco, criou conexões e conheceu outros artistas tentando se consolidar no meio. Entre eles, Alan Moore, que o impulsionou no mundo dos quadrinhos. Gaiman trabalhou para diversas editoras e passeou por inúmeras narrativas distintas, o que mostra sua flexibilidade como autor. De heróis a histórias sombrias, de romances a roteiros, o autor sabe fazer de tudo com excelência. Não é de hoje que suas obras são reconhecidas, e muitas delas viram adaptações de sucesso. Coraline, Deuses Americanos e Belas Maldições são alguns exemplos de trabalhos que foram parar na TV e, mais recentemente, a adaptação de sua maior obra, Sandman, que já é um sucesso pela Netflix.

Para celebrar o autor e honrar o gênero que o lançou aos holofotes, a editora Intrínseca traz, com um impecável trabalho gráfico, a Biblioteca Gaiman – vol. 1, uma coletânea de cinco histórias até então inéditas no Brasil, do começo de sua carreira, adaptadas por diversos artistas.

Abrindo o volume, temos As Noivas Proibidas dos Demônios Desfigurados da Mansão Secreta na Noite do Desejo Sinistro. Não se deixe levar pelo título, que mais parece o nome de um filme de terror dos anos 50. Inclusive, o começo da história realmente parece um terror gótico antigo, com todos os elementos clássicos: o castelo, a bela moça apavorada, uma floresta assustadora, uma noite escura e um anfitrião macabro. A verdadeira história começa algumas páginas à frente, sobre um escritor sofrendo de um bloqueio criativo, odiando tudo que escreve e querendo desesperadamente mudar o tom de suas histórias.

Os traços de Shane Oakley casam muito bem com a narrativa, trazendo toda aquela atmosfera gótica já citada e também imagens bizarras de demônios e outras criaturas, criando um ritmo muito agradável. Essa primeira história tem o tom sombrio típico de Gaiman, e também um certo humor peculiar. Conforme avançamos, vemos que o gigante título é uma brincadeira com a obra que o pobre escritor tenta dar vida, o que deixa tudo ainda mais divertido, especialmente junto a elementos aterrorizantes. Além de tudo, há uma inspiração/homenagem a Edgar Allan Poe. É uma das melhores histórias de toda a coletânea.

Em Criaturas da Noite temos dois contos com a mesma temática: animais noturnos protetores. O primeiro conto chama-se O Sacrifício, em que um gato preto fica sempre à varanda de uma família, que cuida de seus ferimentos e o alimenta. Toda manhã, o gato aparece com um novo machucado, como se tivesse passado a noite brigando, e ninguém sabe bem o motivo. É um conto emocionante que desmistifica toda aquela crença sem sentido de que gatos pretos dão azar. Aos poucos o tom de mistério vai dando lugar ao sobrenatural, de forma natural, dando um significado grandioso à história. Novamente, a arte é um ponto a ser elogiado.

Já em A Filha das Corujas, novamente temos a presença de uma crença. Um bebê é deixado à porta de uma igreja, e os moradores temem que seja a filha de uma coruja, e querem queimá-la. Afinal, uma ex-freira resolve criar a criança. Medo e superstições rondam o conto, que tem todo o ar de conto de fadas, tanto na arte quanto na narrativa. Mas não se trata de um conto de fadas feliz, e sim voltamos aos seus primórdios, onde há a presença de criaturas impiedosas e coisas ruins podem acontecer.

O próximo conto, e o maior de toda a coletânea, é Mistérios Divinos. Nele, um senhor divide uma história com um rapaz que lhe deu um cigarro, contando sobre o primeiro assassinato da história do mundo. Um anjo foi assassinado no Paraíso durante a criação do universo, e o culpado é um dos seres celestiais. Aqui, mistério investigativo e fé se unem, criando uma narrativa reflexiva sobre certo e errado, bem e mal e justiça. Cada página passada cria um novo questionamento, como seres teoricamente perfeitos podem cometer um ato tão… mundano? Não foram os humanos baseados em imagens divinas? Se somos capazes de matar por inveja ou rancor, por qual motivo seres superiores estariam isentos de tais sentimentos? Ansiamos por descobrir o culpado e o motivo e, ao final, há várias interpretações possíveis. A arte de P. Craig Russel – que também trabalhou em Coraline – traduz muito bem esse thriller celestial, com cores claras retratando a Cidade de Prata e cores sombrias conforme nos aproximamos da revelação final.

Em A Verdade Sobre o Desaparecimento da Srta. Finch, a presença do bizarro é fortíssima, sendo o conto com mais elementos macabros. Um grupo de amigos vai a um teatro antes do jantar, mas não é um teatro comum. Chamado de Teatro dos Sonhos Noturnos, assemelha-se a um circo dos horrores, com as mais deformadas e assustadoras criaturas que a mente pode conceber. A história possui uma aquarela belíssima, além de diversas referências “escondidas” ao longo da trama. Com um pouco de atenção, podemos encontrar figuras como Alice Cooper, Mortícia e até mesmo o próprio Neil Gaiman, entre milhares de outras esquisitices de encher os olhos. Aqui, o autor se sente confortável para fazer o que mais gosta: brincar com a imaginação do leitor utilizando elementos loucos e surpreendentes que prendem durante toda a história.

Por último, fechamos o volume com Arlequin Apaixonado. No dia dos namorados, o Arlequin sai às ruas fazendo travessuras e, afinal, dá seu coração à garota por quem está apaixonado. Sem saber quem pregou o coração em sua porta, a moça tenta descobrir o que fazer com tal presente inusitado. Os traços dessa história são mais realistas, o que destoa um pouco do restante da obra e pode causar certa estranheza, especialmente por vir logo depois da loucura que é A Verdade Sobre o Desaparecimento da Srta. Finch. Apesar da arte, a história tem um plot twist divertido e satisfatório e elementos excêntricos tão presentes nas obras de Gaiman.

O primeiro volume de Biblioteca Gaiman é uma obra obrigatória para fãs do autor e curiosos, pois reúne diferentes estilos e narrativas em uma mesma coletânea, mostrando toda sua sagacidade e desenvoltura sem perder sua essência, sendo interessante tanto para quem já conhece o trabalho de Gaiman quanto para quem pretende ter um primeiro contato com suas obras. As histórias não possuem ligação entre si, porém têm em comum a forte característica de Neil Gaiman de colocar mitos, lendas, superstições e crenças em suas obras de uma forma que o fantástico, o sombrio, o surpreendente e o estranho pareçam absolutamente naturais, e não algo fora do comum.

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Louise Minski

Um experimento de Schrödinger entediado.

2 thoughts on “Biblioteca Gaiman – vol. 1 (2021)

  • 18/11/2022 em 22:43
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    Parabéns pela crítica, mas apenas uma correção: das cinco histórias, apenas duas eram inéditas no Brasil. Mistérios Divinos, Criaturas da Noite e Arlequim Apaixonado (lançado anteriormente como A Paixão do Arlequim) já haviam sido publicados no Brasil pela Editora Conrad. Mistérios divinos em capa dura e os outros dois em capa cartão.

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  • 04/09/2022 em 16:24
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    opa…na verdade a maioria das historias foram publicadas a muuuuito tempo numa coletania chamada fumaça e espelhos….e quem nao tem, recomendo imensamente que procurem…é sensacional…e tem neve, vidros e maça…um dos melhores contos desse monstro da literatura fantastica…no mais, outra critica excelente…parabens aí, louise…sempre um prazer acompanhar voce o boca do inferno…

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