A Satanista
Original:The Satanist
Ano:1968•País:EUA Direção:Zoltan G. Spencer Roteiro:Zoltan G. Spencer Produção:Ogden P. Root Elenco:Pat Barrington, Mary Bauer |
Foi dentro do cenário contracultural dos Estados Unidos da década de 1960 que o satanismo começou a emergir como possibilidade ou forma de crença, alcançando uma massa de interessados e se consolidando como doutrina de fato, até onde sabemos. Foi em 1966 que a Igreja de Satã foi fundada por Anton LaVey, líder do primeiro grupo a se consolidar como tal – ainda que não tenham sido os primeiros satanistas da história. Essa “novidade” se relaciona, e talvez só tenha sido possível, devido ao crescimento das tensões políticas daquele período, que foram o estopim que “orientou” a expansão da consciência da juventude da época, principalmente nos países envolvidos em conflitos armados e com grande poder de influência – como era o caso dos EUA – na cobrança por respeito à dignidade humana e a garantia da liberdade de “ser” com igualdade de direitos. Cultura e religiosidade entraram nessa onda, e esse período se tornou muito propício à popularização de “novos olhares” voltados para o misticismo, religiões e filosofias orientais, e conhecimento oculto, de uma maneira mais geral.
Essa guinada “energética” afetou profundamente a cultura popular da época, com literatura, música, artes plásticas (vejam o documentário sobre a Rosaleen Norton no Prime Video, A Bruxa de King Cross) e tantas outras modalidades pegando carona nessa frequência. Esta, no entanto, variava de grupo para grupo, e na mesma medida em que tínhamos hippies pregando paz e amor com flores no cabelo, tínhamos, também, assassinos seriais e seitas matando pessoas de forma ritual como culto a personalidades narcisistas. O culto de LaVey talvez não partilhasse desse tipo de atitude, mas sua premissa partia de uma reverência ao ego, algo que pode descambar em uma série de possibilidades enquanto forma de culto, inclusive nas seitas assassinas, mas essa não é a pauta do momento.
Ou é, mas enfim, voltando. O cinema, óbvio, não escaparia ileso dessa onda. Em 1968, foi lançado O Bebê de Rosemary, adaptação da satânica obra de Ira Levin lançada no ano anterior, e um grande representante não só desse movimento contracultural, mas do cinema de um modo geral. A Satanista é outro exemplar, menor, mas muito menor que a obra de Roman Polanski, com a mesma temática e lançado no mesmo ano mas que, apesar de pobre em muitos aspectos, é um curioso documento que retrata uma época de exploração, seja sexual, comportamental ou de crença.
Na história, Joe e Mary formam um casal que, num passeio de carro, atropela por descuido uma mulher na rua (numa cena que já é estranha por si), e ela (que não se feriu) os convida para um chá (olha só) na casa dela. Chegando à sua casa, bonita e decorada com motivos místicos, ela se apresenta como estudante de ocultismo, e oferece um antigo livro de feitiçaria para Joe conhecer um pouco sobre o tema. Desse dia em diante, Joe folheia o livro diariamente, e passa a ser tomado por pensamentos obscenos, delírios sexuais, além de uma estranha atração pela vizinha ocultista. Em uma nova visita à nova amiga, num sábado (!!!), o casal presencia um ritual “satânico”, no qual Mary é usada como sacrifício, e aqui ambos sofrem com violência psicológica e sexual, e talvez mais.
O que temos aqui é um filme sobre o qual não existem muitas informações além do que é mostrado nos créditos. E olha que nem os atores são creditados! Provavelmente realizado de forma independente e com a precariedade de recursos bem latente, é complicado levar a sério esse filme, principalmente com um expoente como o Bebê de Rosemary batendo na porta no mesmo ano. A trama é narrada por Joe, que se sente altamente atraído pela satanista e confuso com esse “mundo novo” que se apresenta. O fluxo do filme é recheado por reflexões de Joe, um homem não necessariamente conservador nos costumes, mas que olha escondido pela fresta de uma porta que muitos recusam abrir. Nesse sentido, o filme lança muitos olhares sobre esse medo do oculto e sobre o papel da magia e da sexualidade no mundo moderno.
A Satanista sem dúvidas pode ser qualificada como sexploitation. São muitas cenas de sexo amador, mas sensuais em certo nível, apesar das atuações, e o rito pagão no ato final é mostrado de forma menos sensacionalista do que poderia ser. Certamente deixou o casal chocado e amedrontado, e por mais que o filme tente mostrar o lado dos “religiosos” e sua vida de prazeres sem amarras, o direcionamento dado pelo roteiro e direção para essa forma de manifestação como “o mal” é decididamente firme na medida em que submete o casal a diversos tipos de violência.
Outra característica que chama atenção é a trilha sonora. A narrativa é intercalada com grandes vazios de diálogos e pensamentos, geralmente quando ocorrem as cenas de sexo, que são longas e acompanham o ritmo da trilha sonora – esta oscila entre um folk ou marcha psicodélica e um raga indiano guiado por guitarra e percussão hipnótica, à moda do que algumas bandas de rock faziam na época em sessões de improviso. Eu sou do tipo que acha cena de sexo desnecessária em filme, a menos que seja imprescindível pra história, mas não tem como não ficar hipnotizado pela levada apresentada aqui.
A Satanista é uma produção caseira, mas bem orientada para funcionar com os recursos que estavam disponíveis. Sua curta duração (64 minutos) pode parecer extensa devido à precariedade geral da obra, e o enredo simples pode parecer fraco, mesmo sendo mais que suficiente. Para além de seu valor histórico intrínseco (sim), o filme é recomendado para aqueles que gostam de vislumbrar algumas possibilidades de bizarrice cinematográficas que existem por aí, ou mesmo os curiosos em bisbilhotar aqueles ambientes possíveis que, normalmente, não temos coragem de encarar em nossas vidas cotidianas.