4.3
(6)
Saboroso Cadáver
Original:Cadáver exquisito
Ano:2022•País:Argentina
Autor:Agustina Bazterrica •Editora: Darkside Books

Muitos livros podem ser considerados sensoriais por transpassar suas páginas fazendo seus leitores sentirem o que os personagens estão sentindo, ou até mesmo fazer com que o leitor se enxergue na obra ao trazer situações do dia a dia. Entretanto, são poucos livros que saem de suas páginas com potencial de debate e até mesmo de mudanças. Saboroso Cadáver é um exemplo de uma história que vai além do incômodo para trazer situações tão impactantes e descritivas que se tornam de imediato pontos de reflexão. Mas do que fala essa obra?

Aqui não estamos mais em nossa realidade habitual; nessa distopia conhecemos um mundo pós-pandêmico, onde um vírus atacou todas as espécies animais, não as dizimando, mas fazendo com que elas se tornassem tóxicas ao consumo humano. Essa doença ocasiona uma crise alimentícia severa, fome ao redor do mundo e um aumento da desigualdade social. Como solução a toda essa problemática, uma nova espécie de alimento entra no cardápio: a carne humana.

Mesmo que essa prática de canibalismo se apresente contrária de imediato a diversos grupos sociais, aos poucos, com auxílio da mídia e de supostos especialistas, ela acaba se tornando algo aceitável e até mesmo louvável. Apontada como uma solução à crise financeira e da desigualdade, logo entramos em um cenário onde carne humana é embalada para venda nos açougues e pessoas são colocadas em cativeiro sem as cordas vocais para futuramente servirem como produtos ou para testes farmacológicos dos mais cruéis imaginados.

Esse longo prólogo é apenas o cenário, o pano de fundo, onde Agustina Bazterrica traz sua verdadeira trama, que é a da rotina de um funcionário de um grande açougue, que recolhe pedidos de carne em diferentes níveis de consumidor enquanto dialoga consigo mesmo sobre essa mudança de mundo. Marcos Tejo é filho de uma longa geração familiar que já estava no ramo de açougues no período pré-pandêmico. Dessa forma, tudo que ele traz é comparativo. Sua vida muda quando ele recebe um presente atípico, uma fêmea viva para que ele a coma quando e como bem entender. Sua proximidade com essa mulher, que hora é vista por ele como objeto, hora como ser humano vitimado, é que se estende pelas páginas dessa obra.

Quando eu disse que esse livro nos tira do campo de conforto, isso vai além das cenas de canibalismo, que aqui são descritas minuciosamente para transparecer uma certa “normalidade”, assim como as cenas do açougue, que são metódicas e até mesmo profissionais. O que causa incômodo aqui é o convite subliminar feito pela autora, para que nos enxerguemos nos animais que consumimos, nos mostrando procedimentos que realmente ocorrem em matadouros e que, ao serem feitos em seres humanos, nos soa como inaceitável. Não me entenda mal, não é um livro que te fará ser vegano ou te fará um ativista animal, talvez o faça, mas por sua conta e risco. Aqui o que incomoda é o processo e não o final. Os métodos precisam ser tão cruéis? O que nos torna superiores aos animais que matamos, seja pela caça ou pelo consumo?

Até mesmo essa faceta humana de domesticar e tornar pet alguns animais ao mesmo tempo que ignora a existência de outros é trazida pela autora na figura da fêmea que é o presente de Marcos Tejo. Qual é o limite que um animal precisa ultrapassar para não ser alimento e ser tratado com amor e carinho?

E, por fim, a questão que mais me incomodou foi ver o modo como é feita a desumanização seletiva. Escolhemos quem é animal doméstico, mas também escolhemos quem é humano, quem é civilizado.

Há uma parte onde um grupo de pessoas esfomeadas ataca um caminhão onde há diversas vítimas humanas rumo a um matadouro. Em meio ao banho de sangue, elas são devoradas na rua mesmo, de forma bestial. O que choca os donos do açougue, por sua vez, é apenas a morte do motorista. O coitado tinha família, tinha filhos e era humano. Os outros se mostraram apenas como prejuízo.

Para quem acha que esse processo desumanizador é apenas literário, posso trazer inúmeros exemplos contemporâneos que mostram que ainda é possível ocorrer esse processo. Escravidão, ditadura, entrevistas de menos de sessenta anos atrás onde pessoas apoiam o assassinato de gays e diversos outros exemplos que trazem essa ideia de entender um grupo como humanos e outros como produtos ou como alvos.

Esse livro é provocador, forte e visceral, mas acima de tudo é humano, mesmo que nos mostre a nossa pior faceta.

Sobre a autora:

Agustina Bazterrica nasceu em Buenos Aires em 1974 e é formada em Artes na Universidade de Buenos Aires. Sua vida literária começou em 2013 com o romance Matar a la Niña. Em 2016 ela lançou um livro de contos chamado Antes del Encuentro Feroz, reeditado em 2020, e enfim lança o livro Saboroso Cadáver em 2017. No mesmo ano, por essa obra ela é premiada no Clarín Novela (premiação literária espanhola) e em 2020 ela é premiada pela mesma obra mais uma vez, dessa vez ganhando na categoria de melhor romance no Ladies of Horror Fiction Award.

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1 comentário

  1. O livro é de fato muito chocante, e te deixa extremamente reflexivo. Mas o que mais me intriga é a hipocrisia do Marcos, que se diz enojado em relação a atitude da irmã de manter um “animal” vivo enquanto come seus membros aos poucos, mas, ao mesmo tempo, não só cometeu estupro como tambem roubou a criança ( “seu filho”) e abateu Jasmine, tal como ele criticava.

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