Continente
Original:Continente
Ano:2024•País:Brasil, Argentina, França Direção:Davi Pretto Roteiro:Davi Pretto, Igor Verde, Paola Wink Produção:Murillo Cine, Jéssica Luz, Paola Wink, Georgina Baisch, Bárbara Francisco, David Hurst, Cecilia Salim Elenco:Olívia Torres, Ana Flavia Cavalcanti, Corentin Fila, Silvia Duarte, Breno de Filippo, Sirmar Antunes |
O que inspirou a autora argentina Mariana Enriquez a escrever terror foi a ditadura militar de seu país. O realismo mágico se desenvolveu entre as décadas de 1960 e 1970, antes de Enriquez, como resposta aos regimes ditatoriais latino-americanos, visto que o realismo por si só não era capaz de dar conta dos horrores específicos que experienciávamos. Há espectros que rondam esse canto do mundo até hoje e que seguem inspirando contadores de histórias, seja na literatura, seja no cinema, que rendem resultados muito característicos das nossas produções, com as quais conseguimos nos identificar facilmente.
Em Continente, filme que passou pela 48ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo e estreou recentemente em circuito comercial, o diretor Davi Pretto aborda alguns desses espectros para contar uma história que começa como um drama, mas que esconde algo sob a superfície, assumindo-se mais à frente como um verdadeiro filme de terror.
Amanda (Olivia Torres) é uma mulher que, depois de 15 anos morando na França, volta à fazenda de sua família no sul do Brasil junto com o namorado, Martin (Corentin Fila), para passar os últimos momentos ao lado de seu pai (Luiz Paulo Vasconcellos), já inconsciente em seu leito de morte. Ela é recebida com olhares de hostilidade por alguns dos funcionários da fazenda, inquietos por não saberem o que está acontecendo com o patrão, que lhes deve um acerto. Entre essas pessoas, em sua maioria negras, está Helô (Ana Flavia Cavalcanti), médica do vilarejo e filha da governanta da casa grande, que demonstra esperança de que as coisas mudem quando o senhor da fazenda finalmente morrer.
O roteiro de Davi Pretto, Igor Verde e Paola Wink não entrega de bandeja o contexto das vidas de seus personagens e vamos entendendo aos poucos suas relações e as dinâmicas de poder complexas entre funcionários “comuns” e aqueles que estão mais próximos do patrão. Tudo isso acontece em um entorno rural que é, ao mesmo tempo, belo e hostil, um ambiente que, longe de grandes metrópoles, funciona com base nas regras estabelecidas por quem é mais poderoso.
Continente se alonga nessa primeira metade, até passando um pouco do ponto (é um filme longo, de duas horas), podendo se tornar um pouco cansativo. É aqui que o roteiro também inclui algumas falas excessivamente explicativas, como se houvesse necessidade de reforçar o que já estamos vendo em cena. Não há. São claras as diferenças de classe, a dependência dos habitantes do vilarejo de seu trabalho na fazenda, por mais que o tal “acerto” que tanto é mencionado pareça ser migalhas. O incômodo cresce antes de o tom mudar de vez para o terror.
Vampirismo e muita sensualidade tomam conta de Continente nessa virada, quando o acordo se revela como um pacto de sangue entre senhor e empregados, o custo de se manter a ordem estabelecida em um ciclo de violência e opressão que não termina. Com a morte de seu pai, a nova responsável por perpetuar esse ciclo é Amanda, personagem cujo desenvolvimento sai do lugar comum e segue um rumo mais inesperado, o que é bem-vindo. E ainda que o filme beba muito de outras produções brasileiras, é clara aqui a influência de Desejo e Obsessão, de Claire Denis.
Continente é uma interessante adição ao cinema de terror brasileiro ao explorar o colonialismo, o legado patriarcal, a violência que se perpetua (mesmo quando não é física), as hierarquias de poder e as formas de desejo. Um terror muito nosso, com nossos próprios sugadores de sangue.