Os Mistérios de Udolpho
Original:The Mysteries of Udolpho Ano:1794•País:UK Autor:Ann Radcliffe•Editora: GG and J. Robinson |
“Todos eles afirmaram ter ouvido ruídos estranhos no castelo. Reunidos na copa, depois da ceia, contavam uns aos outros histórias de fantasmas, cada qual a mais aterradora.”
Corredores silenciosos que conduzem a diversos cômodos, com baixa luminosidade, passagens secretas, alçapões, estátuas mortas e as longas escadarias que servem de ambientação para assombrações errantes, na condução de largas correntes enquanto sussurram nas paredes frias. O horror gótico se desenvolveu nas ruínas da Idade Média, nos relatos aterrorizantes dos heróis que retornavam de suas batalhas sangrentas, e, principalmente, no sugerido, no que se esconde à espreita e influencia os vilarejos que circundam os castelos envoltos em neblinas. A obra pioneira desse estilo foi O Castelo de Otranto, de Horace Walpole, que já trazia muitos desses elementos e outros resgatados dos primórdios da literatura de Shakespeare. O ano de sua publicação, 1764, é o mesmo do nascimento de uma autora que soube explorar melhor seus conceitos.
Ann Radcliffe (1764-1823) está entre os primeiros nomes da literatura gótica, tendo ajudado a popularizar o estilo. Foi uma mulher extraordinária, que detinha uma escrita descritiva de muitos valores, servindo, inclusive, como ferramenta histórica, mas também soube refletir sobre a própria literatura de seu tempo, criticando os excessos de Matthew Gregory Lewis, e determinando a diferença entre terror e horror, algo discutido e ampliado por H.P.Lovecraft em seu livro “O Horror Sobrenatural na Literatura“. Ann escreveu em vida cinco romances, sendo que o quarto foi “Os Mistérios de Udolpho” (The Mysteries of Udolpho), lançado exatos trinta anos depois da obra de Walpole.
Foi inicialmente publicado em quatro volumes pela GG and J. Robinson, de Londres, mas também pode ser encontrada em duas partes e com o título em português “Os Mistérios do Castelo de Udolpho“. É uma obra longa e com muitas descrições de paisagens exóticas nos Pireneus e Apeninos e ambientações como Veneza, mas não é cansativa pela forma como se apresenta e conduz as aventuras da jovem Emily St. Aubert, desde a relação com o pai, Aubert, após a perda repentina da mãe, até a morte deste durante uma longa viagem que a permitiu conhecer Valancourt, com quem nutriu um carinho recíproco.
Após a morte da mãe e consciente dos problemas financeiros do pai, Emilly viaja com ele de Gasconha através dos Pireneus até a costa mediterrânea de Roussillon. A mesma doença que levou sua mãe atinge seu pai, que falece durante a viagem, deixando-a como órfã sob a tutela de sua tia, Madame Cheron, que deixa evidências de sua frieza em relação à garota, indo contra seu relacionamento com Valancourt. A situação piora quando a tia se casa com o supostamente rico Montoni, com o ideal de levá-la em definitivo para a Itália, tentando obrigá-la a se envolver com o Conde Morano, sem muito sucesso pela personalidade forte da protagonista. É na revelação das maldades de Morano ao tentar subtrair as terras da Madame Cheron que aparece finalmente o tal Castelo de Udolpho do título.
“O conde foi informado do terror do pessoal; disseram–lhe que a ala norte estava assombrada por espíritos.”
Um local de muitas lendas entre os serviçais, como outros ambientes por onde Emilly passa em sua jornada – o som que antecede a morte, ouvida pela garota, nas proximidades do convento estão entre os momentos aterrorizantes da literatura de Radcliffe -, o Castelo é bem antigo e imenso, localizado em uma área rural erma, contendo passagens secretas e criptas. As menções a fenômenos sobrenaturais auxiliam na construção do gótico, ainda que o livro não seja exatamente de horror. Há outras convenções góticas na obra como o tom pessimista, pela morte e tristeza, a atmosfera de incerteza, os ambientes fantasmagóricos e a exaltação à Natureza, com a presença do herói tradicional e o vilão característico.
Radcliffe constrói uma belíssima história que flui entre perdas e conquistas, com personagens profundos e sensíveis. Nota-se também um estilo aventuresco, de exploração e descobertas. Os mistérios que compõem a obra vão além do Castelo no vale e estão também relacionados a um segredo do pai de Emilly, algo que será revelado apenas na parte final.
Mesmo não figurando entre as obras de destaque da autora – Um Romance Siciliano (1790) e The Italian (1797) são seus maiores sucessos -, vale a pena acompanhar esse capítulo fundamental dos primórdios da literatura gótica. O livro seria lembrado por Jane Austen no também ótimo Northanger Abbey (1817), e serviria de inspiração para Edgar Allan Poe, e as irmãs Charlotte (de Jane Eyre, 1847) e Emily Brontë (O Morro dos Ventos Uivantes, 1847). Teve a admiração de Honoré de Balzac (1799–1850), Victor Hugo (1802–1885), Alexandre Dumas (1802–1870) e Charles Baudelaire (1821–1867). Até mesmo Dostoyevsky teria dito que a literatura de Radcliffe o deixava “boquiaberto de êxtase e terror“.
E, sem dúvida, ela possui um estilo agradável de leitura, conduzindo o leitor como um parceiro em sua caminhada literária, colocando nas páginas as poesias compostas por Emilly enquanto observa “a imponente cordilheira dos Pirenéus” e passeia por castelos assombrados, envolto em mistérios e segredos.
“Não temia os espíritos, dizia, e quanto aos vivos, se aparecessem, iria lhes provar que não tem medo deles.”