![]() O Dia de Satã
Original:Judgement Day
Ano:1988•País:EUA Direção:Ferde Grofé Jr. Roteiro:Ferde Grofé Jr. Produção:Ferde Grofé Jr., Keith Lawrence Elenco:Kenneth McLeod, David Anthony Smith, Monte Markham, Gloria Hayes, Peter Mark Richman, Cesar Romero, Jennifer Perez, Joko Diaz, Soji Sodeke, Joe Mari Avellana, Nigel Hogge, Eddie Gaerlan, Tita Muñoz, Jenny A. Andrada |
As melhores histórias de terror começam do mesmo jeito. Pessoas chegando a um lugar desconhecido, como turistas acidentais, e tendo as dificuldades de adaptação entre as tradições locais, enfrentando as mais variadas ameaças. Trata-se de uma óbvia relação sempre necessária com as questões imigratórias, uma temática em pauta nas mesas políticas, esbarrando em assuntos ainda mais agressivos como a xenofobia e o preconceito. Seja um grupo de amigos numa viagem ao Texas ou até dois americanos de passagem pelo interior da Inglaterra, é possível se sentir como parte dos viajantes em um ambiente novo e hostil, servindo de instrução aos curiosos sobre a importância do planejamento. O Dia de Satã não é uma referência no gênero e abriga a prateleira das produções obscuras do cinema de horror, levemente lembrada na era do VHS, mas, mesmo com limitações de orçamento, é, para mim, um dos meus favoritos de todos os tempos.
O meu envolvimento com O Dia de Satã remete à pré-adolescência, quando um Marcelo curioso adentrava sessões de terror das locadoras em busca de arrepios. A fita não era nem um pouco chamativa, tanto que estava sempre disponível para locação, porém era bastante inspiradora. Lembro das vezes em que eu me sentava com primos e meu irmão para elaborar enredos de terror, com a referência direta ao argumento: uma ou duas pessoas se aventurando numa cidade inóspita, com alteração apenas no elemento sobrenatural: lobisomem e monstros em cavernas escondidas, bruxas perversas na captura de bebês, vampiros se abrigando numa Salem´s Lot brasileira e entidades demoníacas se alimentando de turistas. O filme de Ferde Grofé Jr. foi um dos que mais vi em vídeo, tanto que fiz questão de adquiri-lo no Sebo do Messias e depois o transformei em DVD, com os mesmos defeitos de exibição de imagens, contando com o auxílio do tracking automático. E não me importo em revê-lo centena de vezes para resgatar o período em que eu me tornava fascinado pelo gênero.
É claro que nos dias atuais os fãs de horror não darão o mesmo valor. Quem cresceu com franquias como Jogos Mortais e Invocação do Mal, com efeitos digitais e a necessidade dos jumpscares como medição dos melhores produtos, O Dia de Satã vai soar como um filme caseiro, com atuações risíveis e maquiagem questionável. Vai ter quem o associe aos “made for tv” e vai até entender sua obscuridade. Os fãs do cinema 4K e 8k, das edições de videoclipe, das mortes exageradamente gráficas e da necessidade de rostos conhecidos, oriundos de séries populares – como assim Jenna Ortega não está no filme? -, vão cochilar em O Dia de Satã. Ora, se eu como professor fiquei espantando com a reação dos meus alunos numa exibição ao clássico A Morte do Demônio e lembro das pessoas rindo no cinema em 2000 com O Exorcista Versão do Diretor, um filme atmosférico como o aqui referido seria motivo de desdenhos.
Outro ponto interessante e que serve de defesa a este artigo: o leitor precisa saber que vivi durante trinta anos na Vila Carioca, um subdistrito do Ipiranga. Sempre enxerguei o local como meu Maine particular, desenvolvendo minha literatura em um bairro sobrenatural, envolto em gelo seco e bichanos perdidos. Quando a noite avançava, lá estava o Marcelo olhando pela janela de um sobrado de uma rua morta em busca de assombrações, uma alma errante ou um monstro com vestimenta de palhaço. Imaginava que a qualquer momento iria passar um cortejo fúnebre, uma procissão de monges pálidos, com seus tambores e chicotes caçando aqueles que arriscarem dar uma volta de madrugada. É como se eu procurasse “o dia de Satã” ou dois aventureiros de ocasião, apenas para ter certeza da condição maldita do lugar em que cresci.
Já nO Dia de Satã, os tais aventureiros são Charlie Manners (Kenneth McLeod) e Pete Johnson (David Anthony Smith), em viagem pelo México, contagiando os passageiros de um velho ônibus com música e simpatia pelas estradas empoeiradas. “Do outro lado, do outro lado, o que nos espera do outro lado.“, na canção da dupla já mostra o mantra de qualquer viajante. Quando o pneu estoura, eles são avisados pelo motorista que o próximo ônibus deve levar em torno de 2 a 3 horas. Uma sugestão de cidade que poderia abrigá-los brevemente é San Marcos, mas uma senhora sinistra, com um cajado e roupas escuras, anuncia a existência próxima do vilarejo de Santana, mesmo com a tentativa do motorista de evitar que eles cheguem lá: “Juan Sebastian Rodriguez de Santa Maria avisou-os“.
Eles seguem a bruxa até a indicação do local, antes de ela desaparecer na estrada. Charlie e Pete alcançam uma comunidade simples, com crianças brincando com fogos de artifício e máscaras de demônios à venda. No bar do Enrique Samuel “Sam” Flaherty (Monte Markham), eles conhecem a lenda que envolve a cidade naquele exato dia do ano: “É uma tradição de mais de 300 anos. Uma peste quase matou a população de Santana. Acharam que era um ato do Diabo. Um conquistador, um nobre que fundou a cidade, enganou o Diabo numa barganha. E assim salvou o povo de Santana. Mas não era tão fácil enganar o Diabo. Ele volta uma vez por ano aqui para se vingar, mas só um dia. Então todo ano, os moradores deixam a cidade para o Diabo.“, conta o pai de Angela, dizendo que também deixará o local assim que a filha retornar da escola.
O problema é que a filha resolveu brincar de esconde-esconde com os amigos, e encontrou um local perfeito, nas ruínas de uma torre, e ficou presa, como a adolescente Karen (Katharine Levy) de Mistério no Bosque (The Watcher in the Woods, 1980). Enquanto os turistas não acreditam na lenda e tentam encontrar um quarto na cidade, sem sucesso, Sam percorre as ruas na busca da filha, questionando ao pequeno Juan sobre seu paradeiro. Sem alternativa, ele recorre ao padre Dominic (Peter Mark Richman, de Sexta-Feira 13 – Parte 8: Jason Ataca em Nova York, 1989), lembrando das vezes em que o ajudou e consciente de seu passado obscuro. Por fim, ele deixa claro que irá enfrentar o Diabo para salvar a filha.
Quando finalmente Charlie e Pete se convencem de que há algo errado ali, tentam fugir mas são surpreendidos por uma tempestade e depois encontram abrigo no casarão de Octavio (Cesar Romero, conhecido por ter sido o Coringa na série Batman e Robin, entre 1966 e 1968), com roupas de um antigo nobre, ao lado de sua filha Maria e mantendo na morada o escravo Martin, adquirido na costa oeste da África. Estranhando os aspectos coloniais da residência e a postura de Octavio, Charlie resolve arriscar as ruas, confrontando seres vestidos como monges, soando tambores, usando tochas e chicoteando quem encontram pelo caminho, incluindo os que perseguem suas vítimas a cavalo para depois prendê-las na procissão que irá levá-los diante de Satã.
Aquele clima de horror antigo, com névoas de gelo seco, ruas de paralelepípedos, desertas e úmidas, e pessoas sendo torturadas e presas em cruzes, dá o tom de um Inferno muito bem caracterizado. A sensação claustrofóbica de insegurança é absoluta, colocando o infernauta como testemunha daquela longa noite correndo o risco de um encontro com “aquele que possui a terceira mão“. A ambientação é bem adequada à proposta, com longas escadarias, a cidade quase absolutamente silenciosa, tendo apenas os gritos e murmúrios dos torturados. E o Diabo segue a confecção clássica, com longos chifres e longos cabelos brancos, acompanhado de uma risada sinistra e frases que até hoje não fazem sentido pra mim, principalmente quando a legenda anuncia “Mag is dead“. Na legenda em inglês, é dito algo como “Majesty“.
Aliás, também não faz sentido o prólogo, que mostra uma mulher que depois é identificada como a dona de uma pousada, dando a um tal Olaf uma faca a ser afiada, e dizendo que algo precisa ser feito naquela noite. Deixa a entender que alguém será assassinado pelo tocador de flautas ou algo parecido. Mas ele não aparece mais em cena, e nem se sabe o que ele fez. Provavelmente uma cena que seria colocada depois, mas foi tirada da edição e deixaram essa inicial. Caso algum leitor saiba, fique à vontade para apresentar nos comentários.
Com atuações ruins dos protagonistas e também dos locais como Angela, ainda assim resta uma produção de horror interessante e, repito, atmosférica. Revendo para escrever este texto, ainda considero-o como um dos meus favoritos, e sinto por ele não ser mais conhecido, não ter lançamento em DVD e nem sugestão de uma refilmagem, a partir de sua ideia simples mas muito bem realizada. O diretor, Ferde Grofé Jr., não fez mais nada na função depois de 1988, mas produziu algumas coisas como o documentário Vietnam: Combat Hell 1965-1969, de 2007. Ele é filho do reconhecido compositor Ferdinand Rudolph von Grofé (1892-1972).
Coloquem-se no lugar dos turistas de passagem pela cidade de Santana e conheçam O Dia de Satã, mesmo que queiram deixar o local antes da meia-noite para não perder a alma! Vale o sacrifício!