![]() Três Rios
Original:Três Rios Ano:2024•País:Brasil Autor:César Bravo•Editora: Darkside Books |
Galinhas desvairadas assassinas, abatedouros clandestinos, demônios aparecendo em bares ermos, loira do banheiro, produtos químicos que derretem pele e ossos sem esforço, crateras misteriosas, locadora com fitas suspeitas, dor, agonia, sofrimento e quantas desgraças mais você imaginar em apenas uma cidade. Essa é Três Rios, seja bem-vindo(a)! César Bravo nos apresentou essa amaldiçoada terra do interior paulista banhada em sangue, que se mostrou praticamente um organismo vivo e pulsante, sedenta por carne, vísceras e humanos corrompidos. Passamos por VHS – Verdadeiras Histórias de Sangue, DVD – Devoção Verdadeira a D. e chegamos ao final – ou não – dessa história que ganhou o Brasil com Três Rios (você achou que seria Blu-Ray, não é mesmo?), uma obra que é praticamente um grande Testamento da cidade.
Tal qual o processo de três tiras da Technicolor, o livro é dividido em três partes: azul, verde e vermelho. Logo no prólogo conhecemos Adelaide e Toninho, seu cachorro. Os dois são testemunhas de um crime hediondo, e o assassino não parece ser humano. Em três páginas, César Bravo já mostra a que veio com uma cena brutal. Após essa singela e turbulenta introdução, a parte azul começa com uma personagem já conhecida de desgraças anteriores: Beatrice Guerra. Bia cuida das crianças que foram resgatadas da cratera de Três Rios e que acabaram ficando em estado catatônico, estando assim há anos. A moça acredita que um dia podem voltar a si, e se dedica de corpo e alma a essa causa, contando com a ajuda da recém-chegada Maitê. Após uma tempestade violenta, uma das crianças reage e tenta se comunicar usando nada menos que uma sopa de letrinhas. Paralelamente a isso, acompanhamos os policiais que investigam o assassinato que Adelaide presenciou, e também o novo figurão que movimenta uma legião de fiéis pela cidade, o Abade, com seu culto nada convencional. Na parte verde conhecemos Ada Janot, que está prestes a ser contratada pela corporação de Hermes Piedade, e Gilmar Cavalo, um jornalista encarregado de descobrir mais sobre o tal Abade e também cobrir um curioso caso: o atropelamento de um homem que, aparentemente, surgiu do além no meio da rua e faz afirmações cataclísmicas sobre o futuro de Três Rios. A parte vermelha vem para ligar todos os pontos, revelando os segredos mais ocultos e nefastos da cidade em um ritmo completamente insano. Se o prólogo já foi sangrento, imagine o que te espera na parte vermelha.
Diferente de VHS e DVD, onde temos diversos contos que acabam conversando entre si, Três Rios é uma narrativa única – mas que depende de seus predecessores para existir. Muitos personagens e acontecimentos dos livros anteriores estão de volta, portanto, é imprescindível lê-los para conseguir entender perfeitamente todas as coisas grotescas e bizarras que acontecem aqui, sem perder nenhuma referência. É uma obra densa, não apenas pelas suas mais de 500 páginas, mas também pelo seu conteúdo. São muitos acontecimentos ao mesmo tempo, cada capítulo tratando de um núcleo diferente, e tudo que aconteceu anteriormente na cidade vai ser relevante. Por exemplo, Sopa de Letrinhas foi um conto de Devoção Verdadeira a D., e ele é citado aqui de modo que vai fazer os olhos de leitores mais antigos brilharem. A locadora Firestar, o inescrupuloso Hermes Piedade e as polêmicas envolvendo seu nome, tudo isso está de volta. Interligado, amplificado, fechando o ciclo. Nenhuma daquelas histórias foi à toa, todas levam a esse momento, a esse desfecho de uma até então trilogia da cidade desgraçada do interior do noroeste paulista.
Os personagens dos diversos núcleos apresentados são bem trabalhados e carismáticos à sua maneira. Nos vemos torcendo e temendo por eles, até mesmo por aqueles que parecem um tanto duvidosos e acabam subvertendo as expectativas, como é o caso do Abade, um dos personagens mais intrigantes da obra. Um dos nomes recorrentes de obras anteriores e antagonista da cidade, Hermes Piedade, é apresentado com um grau de complexidade que faz tudo o que aconteceu anteriormente se encaixar como um quebra-cabeças visceral. Não há ponto sem nó.
Como muitas coisas acontecem ao mesmo tempo, e em certo ponto de forma frenética, é preciso total atenção à leitura para não perder nenhum detalhe e acabar perdido. Três Rios é a criação máxima de César Bravo, seu monstro de Frankenstein, com vida e desejos próprios, que se alimenta de desgraças e horrores, que intensifica as vontades mais insanas e cruéis dentro de pessoas sem escrúpulos e egoístas. A obra, assim como a cidade, é complexa e cheia dos recantos mais sombrios que permeiam a mente humana.
A escrita de Bravo prende a atenção desde o início, e é notável a evolução do autor ao longo dos anos e seu comprometimento com o universo que criou. No Bravoverso, nada é feito ou dito por acaso. Se nos livros anteriores era possível perceber a clara influência de autores como Clive Barker e Stephen King, em Três Rios percebemos que a maior influência do autor é…ele mesmo. Seu estilo de contar histórias se tornou único, criando personagens inesquecíveis e narrativas inconfundíveis. Em poucas linhas, leitores mais ávidos do autor batem o olho e já notam “Ah, com certeza isso foi escrito pelo César Bravo!”, consolidando-o como um dos grandes nomes da literatura de horror nacional.
Inclusive, além de críticas sociais ferrenhas, o autor transita pelos mais diversos gêneros do horror. Você gosta de Body Horror? Temos. Horror Cósmico? Temos. Horror Social? Opa, e como temos! Talvez sua preferência seja algo mais sobrenatural, ou religioso? Tem também. Gore então, nem se fala.
Em Três Rios, uma terra maldita onde tudo que é macabro encontra um lar, sangue escorre pelas frestas e horrores acontecem a cada esquina. Com todos os afluentes interligados e os mistérios revelados, será que finalmente esse lugar amaldiçoado encontrará paz? Ou será que a maldade humana vai prevalecer independente do que os habitantes passaram? Se você conhece César Bravo, provavelmente já sabe a resposta.