
![]() Dente Canino
Original:Kynodontas
Ano:2009•País:Grécia Direção:Yorgos Lanthimos Roteiro:Yorgos Lanthimos, Efthimis Filippou Produção:Yorgos Tsourgiannis, Yorgos Lanthimos Elenco:Christos Stergioglou, Michele Valley, Angeliki Papoulia, Christos Passalis, Mary Tsoni, Anna Kalaitzidou, Steve Krikris, Sissi Petropoulou, Alexander Voulgaris |

Antes de ser aplaudido em Hollywood por A Favorita (2018), Pobres Criaturas (2023), Tipos de Gentileza(2024) e aquele humor estranho que virou sua marca registrada, Yorgos Lanthimos já estava incomodando a audiência de um jeito quase zoológico. Dente Canino (Kynodontas, 2009) é a prova disso: o filme funciona como um laboratório, um espaço onde Lanthimos testa o que acontece quando se distorce linguagem, afeto e autoridade até o ponto da barbárie doméstica silenciosa. E foi justamente esse desconforto meticulosamente planejado que chamou a atenção do mainstream e das grandes premiações — sem perder a frieza que já era sua assinatura. É impressionante pensar que foi este mesmo filme que pavimentou a estrada para Hollywood, mostrando que é possível conquistar público e crítica com ideias radicais, estética minimalista e experimentação narrativa.
O filme nos apresenta uma família aparentemente comum: pai, mãe e três filhos adolescentes que nunca viram o mundo lá fora. A educação das crianças é baseada em mentiras sistemáticas, distorção da linguagem e medo. Aqui, o mar pode ser uma cadeira, o telefone um salmão, o gato é inimigo. O que Lanthimos constrói é uma parábola absurda, mas assustadoramente crível, sobre poder, domesticação e controle. A obediência absoluta substitui grotescamente o amor, e cada gesto cotidiano da família é um exercício de tensão silenciosa. O que poderia parecer cômico, na superfície, rapidamente se revela perturbador. A genialidade de Lanthimos está justamente em manter esse equilíbrio: você ri nervosamente, mas logo percebe que o riso é uma defesa diante de algo muito errado.

O elenco contribui significativamente para a atmosfera do filme. Christos Stergioglou, Michele Valley e Angeliki Papoulia entregam performances contidas e inquietantes, refletindo a repressão emocional de seus personagens. A escolha de Mary Tsoni, uma cantora punk sem experiência anterior em atuação, como a filha mais nova, adiciona uma camada de autenticidade e estranheza ao filme. Sua presença no elenco é um exemplo da abordagem única de Lanthimos, que prefere trabalhar com atores que tragam algo inesperado para seus papéis.
Visualmente, o filme é impecável. A câmera fixa observa os personagens como espécimes, os enquadramentos isolam cada indivíduo, e a fotografia, com sua frieza quase cínica, reforça o desconforto. Os diálogos são secos e sem concessões — ninguém sorri de forma natural. A ausência de trilha sonora para guiar a emoção obriga o espectador a sentir, sem fuga. Essa escolha deliberada é o que transforma Dente Canino em cinema de autor: crueldade formal que, anos depois, viraria sua marca registrada. Cada detalhe é pensado para reforçar a ideia de uma realidade manipulada — não há exageros desnecessários, apenas rigor quase científico.
O filme é, em termos conceituais, um ensaio sobre controle e poder. Lanthimos não quer discutir política ou sociedade diretamente; o foco é íntimo, familiar. O pai é a figura máxima do poder, controlando a linguagem e moldando a percepção das crianças. O horror não está nos monstros externos, mas na construção da obediência e na manipulação do mundo percebido pelos filhos. E é justamente essa frieza, esse olhar clínico, que torna o filme tão perturbador — você observa, impotente, a desumanização acontecendo diante de seus olhos.

Quem acompanha a carreira do diretor percebe como este laboratório inicial se expande em trabalhos posteriores. Em O Lagosta (2015), o confinamento se torna social, uma sátira à solidão e ao conformismo, onde o amor é regulamentado. Já em O Sacrifício do Cervo Sagrado (2017), o controle cede lugar à culpa, e o horror ganha contornos morais e metafísicos. A excelente crítica publicada aqui no Boca do Inferno pelo Ivo Costa apontou com precisão que, em Sacrifício do Cervo, o diretor transforma o desconforto em liturgia, com um ritmo que “angustia pela frieza”, convertendo a tragédia em ritual moderno. Em Dente Canino, esse mesmo desconforto é bruto, sem intermediários — não há mitologia, nem alegoria racionalizada. Há apenas a brutalidade da forma e o olhar clínico sobre o que a domesticação faz com a mente. O longa é, portanto, é o ponto de partida: mais experimental, mais frio, menos preocupado em agradar o público — mas já estabelecendo a assinatura estética e filosófica que Lanthimos carregaria adiante.
Alerta de spoilers
As cenas que definem o filme são quase cirúrgicas: o jantar familiar rígido mostra controle absoluto; os close-ups nos objetos e nas palavras inventadas reforçam a reprogramação da realidade; o ritual do dente canino simboliza a passagem violenta para a liberdade; os enquadramentos clínicos isolam os personagens e aumentam o distanciamento emocional; e a saída ambígua para o mundo externo, com a filha ferida, captura uma liberdade incerta, lembrando que o horror não termina na porta — ele se expande para além da casa. O final é um dos momentos mais marcantes: a filha mais velha quebra o próprio dente canino, sangra e se joga para fora da casa. É liberdade? Autolesão? Rito de passagem? Tudo isso junto. A distorção da linguagem funciona como tecnologia de poder, moldando percepção e neutralizando pensamento crítico. O familiar se torna ameaçador, a casa, prisão silenciosa. O dente canino, que parecia promessa de emancipação, transforma-se em símbolo de sacrifício e negociação de poder. Lanthimos nos lembra que autonomia tem preço, e que o horror mais profundo não está só do lado de fora, mas dentro de cada um de nós.

Fim dos spoilers
É verdade que alguns críticos apontam o distanciamento emocional do filme. A rigidez formal de Lanthimos impede empatia convencional, mas é justamente isso que o torna tão perturbador. Observamos impotentes a dissolução da humanidade em rituais de obediência. O riso surge nervoso, quase automático, como defesa. O grotesco e o banal se misturam, o absurdo encontra o cotidiano, e a sensação de desconforto permanece muito tempo depois de o filme terminar. Essa combinação de humor ácido e desconforto é marca registrada do diretor, e aqui funciona como uma ferramenta quase cirúrgica para gerar tensão e reflexão.
Além disso, o filme funciona como uma reflexão sobre linguagem, poder e socialização. Cada palavra inventada, cada gesto ritualizado, cada objeto deslocado é um lembrete de como somos moldados pelo ambiente, muitas vezes sem perceber. A exploração da linguagem como molde da realidade é outra característica forte do diretor, presente também em obras como O Lagosta, onde a comunicação e o silêncio são estruturantes da sociedade que ele cria. É o tipo de experiência cinematográfica que estimula o espectador a pensar além da narrativa, questionando como nos comportamos em nossas próprias famílias, comunidades e estruturas de autoridade.

No fim, Dente Canino continua sendo uma das experiências mais desconfortáveis e fascinantes do cinema contemporâneo. Ele não quer ser entendido, quer ser sentido — um experimento que foi longe demais e, de certa forma, reflete o mundo que o criou. Antes de Pobres Criaturas, antes do brilho e do verniz dourado, Lanthimos já havia criado sua fábula sobre poder, linguagem e obediência. O estilo visual distinto, os enquadramentos quase clínicos e a manipulação da atmosfera reforçam o impacto da obra, lembrando o quanto seus filmes exploram temas universais como controle e comportamento humano. E, como todo bom horror doméstico, deixa aquela pergunta incômoda: e se o monstro não estiver trancado dentro de casa, mas dentro de nós mesmos?
Agora, com Bugonia, que estreou em 7 de novembro de 2025, Lanthimos promete levar sua assinatura ainda mais longe. O filme, estrelado por Emma Stone e Jesse Plemons, é um remake do sul-coreano Save the Green Planet! (2003) e segue dois jovens que sequestram uma CEO, acreditando que ela seja uma alienígena disfarçada. A trama absurda e a crítica social afiada indicam que Lanthimos continuará a desafiar o público com sua visão única. A expectativa é alta para ver como ele abordará temas como conspirações e desconfiança em um cenário contemporâneo.





















