
![]() Bramayugam
Original:Bramayugam
Ano:2025•País:Índia Direção:Rahul Sadasivan Roteiro:Rahul Sadasivan, T.D. Ramakrishnan Produção:Chakravarthy Ramachandra, S. Sashikanth Elenco:Mammootty, Arjun Ashokan, Sidharth Bharathan, Amalda Liz, Manikandan R. Achari, Aluva Sheeba Sebastian, Akash Chandran, Rafnas Rafeek, Andrè |

O cinema de horror folclórico vive momento de renascimento global. Dos pântanos sombrios de Kerala às florestas geladas da Europa Oriental, cineastas redescobriram que o terror mais profundo não brota de demônios genéricos hollywoodianos, mas das mitologias locais que assombraram gerações antes do cinema existir. A Bruxa (2015), de Robert Eggers, mergulhou no puritanismo da Nova Inglaterra colonial com rigor quase antropológico, enquanto Tumbbad (2018) transformou lenda indiana obscura em pesadelo visual inesquecível. O horror folclórico exige equilíbrio delicado: respeitar as raízes culturais sem alienar audiências externas, criar atmosfera sem sacrificar narrativa, honrar tradições sem se tornar hermético. Bramayugam (2024), ambicioso épico de horror em preto e branco situado no Kerala do século XVII, tenta esse equilíbrio e alcança resultados mistos. Tecnicamente impressionante, visualmente arrebatador em momentos isolados, mas narrativamente irregular, o filme demonstra tanto as possibilidades quanto as armadilhas desse cinema enraizado em mitologias específicas.
A premissa se ancora no conceito do bramayugam, era de caos e trevas na cosmologia hindu onde demônios caminham livremente entre mortais. Thevan (Arjun Ashokan), cantor errante de casta baixa, foge de captores e se refugia numa mansão isolada na floresta. Ali encontra Kodumon Potti (Mammootty), brâmane de casta superior que o recebe com hospitalidade suspeita, e um cozinheiro misterioso (Sidharth Bharathan) que parece aprisionado naquele lugar. Thevan logo percebe que a mansão obedece regras próprias e que sair pode ser impossível. O filme se desenrola como câmara de tortura psicológica disfarçada de conto folclórico, onde a opressão sistêmica das castas se manifesta através de horror sobrenatural.
O roteiro é fundamentalmente burocrático. Explica o mínimo necessário para a história fazer sentido superficial, mas falha em aprofundar tanto personagens quanto o folclore que ancora a narrativa. Thevan é definido quase exclusivamente por sua condição de casta baixa e seu desejo de liberdade, sem nuances que o tornem memorável além de função alegórica. O cozinheiro existe primariamente como exposição ambulante, revelando regras da mansão em diálogos que soam mais como manual de instruções que conversa orgânica. Até Kodumon Potti, interpretado com evidente prazer malévolo por Mammootty, é mais arquétipo que personagem tridimensional: o brâmane corrupto, o poder que se alimenta de subjugados, a opressão personificada. Funcionam como peças de xadrez alegórico, não como pessoas.

O maior problema reside na dependência de conhecimento prévio. Para espectadores familiarizados com mitologia hindu, o sistema de castas de Kerala, lendas locais sobre Yakshis (espíritos femininos) e a cosmologia dos Yugas, o filme ressoa com camadas de significado. Para quem carece desse conhecimento (a vasta maioria da audiência global), a experiência se assemelha a assistir a Hereditário (2018) sem as explicações que o filme fornece sobre o Rei Paimon. Ari Aster planta informações suficientes para que o horror funcione independentemente de conhecimento demonológico prévio, enquanto Bramayugam assume familiaridade e raramente preenche lacunas. A figura feminina que aparece brevemente (presumivelmente uma Yakshi) recebe tratamento tão mínimo que espectadores desinformados podem sequer perceber sua importância mitológica. Os portugueses que surgem no terceiro ato carecem completamente de contextualização histórica, presumindo que audiências saibam sobre colonização portuguesa de Kerala no século XVII.
Rahul Sadasivan, em sua segunda direção após Bhoothakaalam (2022), demonstra olho visual aguçado e compreensão de atmosfera, mas toma decisões estilísticas questionáveis que minam a eficácia do horror. A escolha mais óbvia é o preto e branco, comparação inevitável com O Farol (2019) e o trabalho de Eggers. Mas onde Eggers utiliza fotografia monocromática para amplificar contraste (sombras que devoram personagens, luzes que cegam, cinzas que criam texturas quase táteis), Bramayugam frequentemente opta por paleta cinza uniforme que achata profundidade. Há momentos de genuína beleza visual (a mansão envolta em neblina, silhuetas contra janelas iluminadas, a geometria opressiva dos corredores), mas outros onde a falta de contraste mais dramático desperdiça o potencial do preto e branco. Jarin Paul, o diretor de fotografia, possui competência técnica, mas falta a coragem de Eggers em abraçar extremos de luz e sombra.
A decisão estilística mais prejudicial é o abuso de planos estáticos. Sadasivan adora câmera parada, até em momentos que clamariam por dinamismo. Cenas de perseguição são filmadas em takes longos e fixos que drenam urgência. Confrontos entre personagens acontecem em enquadramentos que pouco se movem, transformando tensão potencial em quadros bonitos mas inertes. Há valor em câmera contemplativa, mas Sadasivan parece preso a um único registro visual, resultando em monotonia que não deveria existir em filme de horror.

O elenco entrega performances competentes dentro das limitações do roteiro. Arjun Ashokan interpreta Thevan com a mesma expressão de terror paralisado por quase todo o filme, uma escolha de atuação (ou direção) que se torna monotônica. Compreende-se que o personagem está constantemente aterrorizado, mas terror tem gradações, nuances, momentos de falsa esperança que tornam o desespero posterior mais impactante. Aqui, Thevan mantém basicamente a mesma cara de assustado do minuto dez ao minuto cento e vinte, eliminando qualquer arco emocional. Sidharth Bharathan como o cozinheiro oferece alguns dos momentos mais humanos do filme, mas permanece fundamentalmente subdesenvolvido.
Mammootty é simultaneamente o maior trunfo e problema do filme. Sua performance é inegavelmente comprometida e cheia de detalhes (a forma como ele inclina a cabeça, o sorriso que não alcança os olhos, a voz que modula entre hospitalidade e ameaça), mas cruza frequentemente para território caricatural. Kodumon Potti por vezes parece vilão de melodrama exagerando cada gesto malévolo, quando sutileza tornaria o personagem mais perturbador. Compare com Ralph Fiennes em A Lista de Schindler (1993) ou Christoph Waltz em Bastardos Inglórios (2009), vilões cujo horror reside precisamente na banalidade, nos momentos de charme genuíno que tornam a violência subsequente mais chocante. Mammootty opta pelo caminho oposto, telegrafando maldade em cada cena. É performance tecnicamente impressionante que funcionaria melhor em registro menos elevado.

O design de produção de Jothish Shankar e Shajith Koyeri é excepcional. A mansão de Kodumon Potti parece realmente habitada por séculos, cada objeto carregando peso histórico, cada cômodo respirando decadência aristocrática. Figurinos de Melwy J. respeitam o período com atenção meticulosa a tecidos, cortes e significadores sociais de casta. Ironicamente, tanto trabalho acaba parcialmente ofuscado pela escolha do preto e branco, especialmente nos momentos em que a fotografia falha em criar contraste suficiente. Texturas ricas de madeira envelhecida, detalhes de objetos rituais, nuances de tecidos, tudo isso se perde em cinza uniforme quando a iluminação não coopera.
A trilha sonora e o design de som são inquestionavelmente os aspectos técnicos mais bem-sucedidos. Há um soundscape que mistura instrumentação tradicional de Kerala com elementos de horror atmosférico, evitando tanto uma simples cópia orientalista quanto o mais genérico do horror ocidental. O design de som utiliza cada canal disponível para criar geografia sonora imersiva: sussurros que circulam, passos que ecoam de direções impossíveis, silêncios súbitos que amplificam tensão. A mixagem é trabalho de artesanato refinado, cada elemento ocupando espaço preciso sem competir por atenção. Em sistema de som adequado, a experiência auditiva de Bramayugam supera a visual.
O ritmo é problema persistente. Com duas horas e dezenove minutos de duração, o filme simplesmente não possui conteúdo narrativo suficiente para justificar sua extensão. O primeiro ato se arrasta estabelecendo atmosfera que já estava clara quinze minutos antes. O segundo ato repete variações da mesma dinâmica (Thevan tenta escapar, Kodumon Potti o impede, revelações mínimas acontecem) sem progressão dramática real. A montagem de é tecnicamente competente mas não consegue superar as limitações do roteiro e da direção. Para filme que se propõe como slow burn, há diferença crucial entre construção deliberada de tensão e simples lentidão.
Os efeitos visuais práticos, principalmente trabalho de maquiagem para transformações corporais e elementos sobrenaturais, são excelentes. Há compromisso com materialidade que honra tradições do horror prático. Infelizmente, os poucos momentos onde o filme recorre a efeitos digitais (primariamente no terceiro ato) expõem limitações orçamentárias. Não são desastrosos, mas são visivelmente artificiais de maneira que quebra imersão. Teria sido mais sábio evitá-los completamente, confiando na sugestão e nos efeitos práticos que o filme maneja tão bem.
A atmosfera e o tom são aspectos onde Bramayugam mais se aproxima da grandeza. Sadasivan cria ambiente de opressão crescente, onde a mansão funciona como personagem próprio, vivo e malévolo. Há sensação genuína de algo estar profundamente errado, de regras naturais não se aplicarem, de tempo funcionar diferente. O problema é que a insistência em planos abertos e estáticos dissipa parte do suspense que a atmosfera constrói. Horror funciona melhor quando a câmera participa da tensão, quando enquadramentos se estreitam, quando o espaço ao redor dos personagens parece comprimir. Sadasivan frequentemente mantém distância contemplativa quando proximidade claustrofóbica seria mais eficaz.

O terceiro ato acelera de forma abrupta após mais de noventa minutos de lentidão calculada. Revelações que mereceriam desenvolvimento são jogadas rapidamente, informações surgem sem preparação adequada. O desfecho é previsível para quem acompanhou a alegoria desde o início, mas chega de maneira apressada que não faz jus à jornada. Os portugueses que aparecem carecem completamente de contextualização, presumindo conhecimento histórico que audiências internacionais não necessariamente possuem. É conclusão que tecnicamente resolve a trama, mas deixa múltiplas pontas soltas e elementos não explorados.
A alegoria sobre poder e castas é inquestionavelmente o aspecto mais bem-sucedido de Bramayugam. Assim como Parasita (2019) utilizou arquitetura literal para manifestar hierarquia de classes, este filme usa horror sobrenatural para expor violências do sistema de castas. Kodumon Potti representa poder que se perpetua através de rituais, que se alimenta literalmente de subjugados, que mantém estruturas opressivas através de mistura de violência e falsa benevolência. A mansão como microcosmo de sociedade estratificada, onde mobilidade é impossível e escape é ilusório, funciona como metáfora potente mesmo quando a narrativa tropeça.
O paralelo com Parasita vai além da crítica social. Ambos utilizam espaços arquitetônicos como manifestações físicas de estruturas de classe, ambos revelam como sistemas de opressão são mantidos através de combinações de violência e convencimento ideológico, ambos sugerem que libertação individual não resolve problemas sistêmicos. A diferença é que Bong Joon-ho equilibra perfeitamente alegoria com narrativa envolvente, personagens complexos e ritmo impecável. Bramayugam sacrifica muito de sua eficácia narrativa em prol da alegoria, resultando em filme que funciona melhor como exercício conceitual que como experiência cinematográfica completa.
O filme funciona melhor como alegoria política que como horror funcional, melhor como exercício de estilo que como narrativa completa. Há talento evidente em praticamente todos os departamentos técnicos, porém falta a visão unificadora que transformaria componentes impressionantes em obra coesa. É o tipo de filme que deixa o espectador pensando “quase“, “se tivesse“, “poderia ter sido“. Quase alcançou grandeza. Se tivesse cortado trinta minutos. Poderia ter sido clássico com roteiro mais desenvolvido e direção menos enamorada de planos estáticos.
Mas há mérito real em tentar algo diferente. Num cenário global onde horror frequentemente se homogeneíza (quantos filmes de possessão genérica existem?), um épico de horror em preto e branco enraizado em mitologia de Kerala é automaticamente interessante. Bramayugam demonstra que o cinema de horror indiano possui mitologias ricas esperando por adaptação, que há audiência para horror lento e atmosférico enraizado em culturas específicas, e que é possível fazer filmes visualmente distintos com orçamentos modestos. O problema é que interesse conceitual não substitui execução narrativa, e isso torna o filme em algo que se admira mais do que se experiencia, que se respeita mais do que se ama. É visualmente impressionante em momentos isolados, sonoramente excepcional do início ao fim, tematicamente ambicioso e politicamente relevante. Mas é também narrativamente irregular, ritmicamente problemático, excessivamente longo e frequentemente hermético.





















