Nasceu e mora até hoje em Carlos Barbosa, uma pequena cidade de 21.500 habitantes no interior do Rio Grande do Sul. Trabalhou no Contexto, o jornal da cidade, a partir de 1992, primeiro como revisor ortográfico, depois como repórter e fotógrafo. Fundou a Necrófilos Produções Artísticas entre 1995 e 1996. Tem quatro filmes “oficiais“: Ponto de Ebulição, Patricia Gennice, Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado e Mistério na Colônia. Colabora com o site Boca do Inferno desde 2002. Tem uma coleção com 1.500 fitas e 200 DVDs, a maioria de horror/suspense, ficção científica e filmes esquisitos em geral.
Saiba mais da mente perturbada de Felipe M.Guerra numa entrevista exclusiva…
Boca do Inferno: Quando e como você teve seu primeiro contato com o gênero terror? Quais as manifestações que você aprecia? (livros, filmes, jogos)?
Felipe M.Guerra: Vou falar a verdade: sempre fui um cara meio cagão pra essas coisas de terror. Morria de medo de tudo, principalmente de escuro. Na época de férias, a Globo sempre passava os filmes da série Tubarão, principalmente a Parte 3, aquela que era em 3-D nos cinemas, tinha o Dennis Quaid e o Louis Gosset Jr., e no final o tubarão explodia e um pedação de mandíbula enorme voava em direção da câmera, lembra? É, o filme era fraco demais, mas eu não podia nem olhar de relance que me mijava de medo. Se visse uma gotinha de sangue, já saía dando faniquito. Quem te viu, quem te vê… Então, uma belo dia, eu tinha uns 9 anos, talvez menos, o SBT exibiu, “pela primeira vez na televisão”, o filme Um Lobisomem Americano em Londres, de John Landis, e aquilo foi um divisor de águas para mim. Porque eu tinha uma total aversão ao horror, mas vendo aquele filme, que misturava de forma muito inteligente terror e humor, eu percebi que levar uns sustos não era uma experiência assim tão aterradora e, graças às piadas e ao clima bem construído, você pode se divertir, e muito, vendo um filme de horror. Sem contar que aquela cena da transformação do David Naughton em lobo, ao som da música “Blue Moon“, perverteu minha pobre e inocente cabecinha. Ao mesmo tempo em que eu ficava horrorizado e com pena do personagem, eu pensava: “Porra dum c****lho, como é que os caras fizeram isso? Será que ele está se transformando de verdade?“. A partir daí, não parei mais de ver filmes do gênero, mas sempre com um pouco de medo, eu não conhecia muita coisa do gênero, tudo era novo, não existiam clichês. Lembro que durante uma época eu morria de medo de A Colheita Maldita, aquele filminho bagaço baseado no conto de Stephen King, porque eu tinha visto o trailer e havia aquela cena que o guri era atropelado na estrada e de repente ressuscitava e agarrava o motorista – ou algo assim -, e isso me deixou completamente aterrorizado. Os primeiros filmes de horror que eu vi, depois do Lobisomem…, foram A Volta dos Mortos-Vivos, Evil Dead (esse sim me apavorou!), Sexta-Feira 13 Parte 4, A Hora do Pesadelo 2 e por aí vai. Não parei mais de ver.
E a partir daí comecei a consumir outras coisas referentes ao terror, tipo revistas em quadrinhos. Naquela época existiam duas saudosas publicações de quadrinhos de horror nacional, chamadas Mestres do Terror e Calafrio, que eram ótimas, apesar de terem uma ou outra história bem bobinha. E eu passei a devorar esse tipo de coisa. Depois livros, primeiro os básicos, tipo Stephen King, Edgar Allan Poe, tentei ler H.P. Lovecraft, mas achei muito complicado naquela época… bah, eu tinha uns 12 ou 13 anos! Minha mãe chegou a ficar preocupada comigo, pois aquele guri que antes se mijava de medo de entrar num quarto escuro sozinho tinha virado adorador de horror de uma hora para a outra! Aí começaram a publicar aquela velha revista Cripta do Terror, com histórias de horror feitas nos Estados Unidos, nos anos 50, e aquilo para mim foi uma realização. Eram histórias excelentes. Inclusive mandei uma carta para a revista e eles publicaram, tenho a edição guardada até hoje!
E sempre vendo cada vez mais filmes de horror. Quando estava com uns 15 anos era a fase da rebeldia, aí eu adorava pegar essas baboseiras de Faces da Morte e assistir na sala quando a família estava por perto. Aí sim eles achavam que eu estava ficando louco! Tinham medo que eu estivesse pensando em cometer suicídio! Bah, quando eu lembro dessas coisas… Demorou um pouco para eles perceberem que no fundo eu era um garoto saudável e que ver essas coisas fazia parte do amadurecimento… Hoje não posso nem ver. Essas bobagens gratuitas… Outra coisa que não me seduz é aquela série japonesa Guinea Pig. Isso aí é coisa pra sádico. Eu adoro gore e violência em filmes, mas tem que haver um mínimo de história para amarrar o negócio. Agora, se é gore por gore, aí eu não curto. E é o caso dos Faces da Morte e dos Guinea Pig. Mas tem quem gosta.
Quanto a jogos de terror, nunca foram os meus preferidos… Mas tenho que dizer que achei arrepiante o primeiro Alone in the Dark, que rodava nos tempos dos velhos PCs 386… Lembro até hoje que logo no começo do jogo você tinha que empurrar um armário para uma janela, impedindo que um demônio entrasse na casa… Bah, isso aí era filme de terror total, dava até medo! Tenho saudades desse jogo, que agora o verme do Uwe Boll, o diretor do péssimo House of the Dead, está transformando em filme. Pobre Alone in the Dark…
E eu sempre gostei de escrever sobre filmes, especialmente sobre os filmes que eu gosto. Quanto eu estava bem na adolescência, não existia Internet, então você imagina como era eu, morando numa pequena cidade do interior do Rio Grande do Sul, querendo conversar com meus amigos sobre Enzo G. Castellari e Antonio Margheritti. Foi um milagre fazer alguns deles assistirem ao Massacre da Serra Elétrica original, para que pudesse ter alguém com quem comentar o filme, e foi outro milagre fazer dois amigos meus assistirem toda a série Twin Peaks que eu tinha gravado quando passou na Record. Isso porque eu adorava essas coisas e não tinha com quem falar sobre elas! Quando eu estava na 8ª série, cheguei a encher um caderno com críticas sobre os filmes de terror que a locadora da minha cidade tinha. Eram umas cem críticas cheias de detalhes, claro que eu era muito novo na época e dava cinco estrelas para A Hora do Pesadelo 3, por exemplo, o que eu não faria hoje. Mas é engraçado porque naquela época eu já tinha visto tanto filmes como Demons, do Lamberto Bava, quanto Nosferatu, do Murnau, e todos os textos estavam lá naquele caderno, com cotações de uma a cinco estrelinhas, tipo o Guia de Vídeo Nova Cultural (que eu comprei desde a edição de 1989). Pena que ninguém nunca viu esse meu guia infantil de filmes de horror… Quem sabe um dia o Boca do Inferno não se interessa em publicá-lo? Ainda tenho ele guardado, inclusive com umas observações feitas com o passar dos anos (inclusive mudanças nas cotações, hehehehe).
Quando surgiu a Internet, um novo mundo se abriu para mim! Antes, as únicas fontes de informações sobre cinema eram os guias da Nova Cultural e as revistas SET e Video News. Essa última era quase toda escrita pelo Rubens Ewald Filho, era uma merda! Com a Internet, finalmente eu podia pesquisar material sobre coisas que não existiam no Brasil (tipo o cinema de horror europeu e oriental) e também podia escrever textos para pessoas que soubessem sobre o que eu estava falando. O primeiro lugar onde comecei a escrever sobre filmes na Internet foi no site do Fulano, porque eles davam prêmios para as melhores críticas de cada mês e eu ganhava sempre. Minha casa está cheia de álbuns de fotos do Fulano, adesivos do Fulano, post-it do Fulano, canetas do Fulano, camisetas do Fulano e o escambau. Depois descobri que existia o Cinema em Cena, peguei algumas críticas do Fulano, reescrevi e publiquei lá. Acho que nem tinha Boca do Inferno nesta época… Então descobri, por meio da revista Sci-Fi News, que havia um site brasileiro sobre a série Halloween, que era o site do Alexandre Sobrino, existente até hoje. Entrei lá e fiquei fissurado com o fato de existir alguém tão obcecado pela série Halloween quanto eu – porque eu sempre gostei mais do Michael Myers do que do Jason e do Freddy. Mandei um e-mail enorme para o Sobrino com umas considerações minhas sobre a série e ele publicou, achou o máximo. Depois mandei vários outros. Até que um dia resolvi pegar uns textos que tinha escrito sobre a série Sexta-Feira 13 e mandei para ele. Acabamos ficando amigos e ele publicou o material todo. Foi por meio do site do Sobrino que eu descobri que existia o Boca do Inferno, na época beeeeem no início, era um site até feio de ver, sem ofensa.
Então, quando eu percebi que o site do Sobrino era meio comportado demais para alguns textos que eu tinha escrito, como por exemplo sobre Cannibal Holocaust e a série Demons, escolhi o Boca do Inferno como vítima. Na época, só o Renato Rosatti era colunista fixo do site. O primeiro texto que eu mandei foi o do Cannibal Holocaust, em agosto de 2002, porque eu achava um absurdo o fato de não haver nenhuma página em português sobre este filmaço do Ruggero Deodato – e até hoje, se você procurar, vai ver o meu e mais quatro ou cinco artigos em sites brasileiros, quando muito. Acho que foi isso que me levou a escrever sobre filmes de terror: tornar conhecidos os filmes que injustamente são desconhecidos no Brasil. É quase como uma cruzada para mim, e fico realizado em fazer este trabalho, mesmo sem ganhar nada com isso.
Mas minha realização mesmo seria se alguma distribuidora de vídeo ou DVD lesse esses textos, percebesse a importância desses filmes e fizesse um trabalho de relançamento (ou lançamento, no caso de alguns ainda inéditos) no país. Até agora já apareceu muita gente cantando de galo por aí, dizendo que ia lançar de tudo e para todos, mas até agora vi bem pouco de prático, infelizmente. Me dá vergonha saber que hoje não existe nem 10% da produção cinematográfica nacional em DVD. É um milagre termos o box do Zé do Caixão em DVD, mas são só as suas obras mais conhecidas. Ninguém pega e lança um Sexo e Sangue na Trilha do Tesouro ou um Inferno Carnal (filmes mais desconhecidos do José Mojica Marins) em DVD. E é lastimável não termos nada do Fauzi Mansur, do Ivan Cardoso, lançado em DVD… Nós simplesmente não valorizamos nossa cultura.
Boca do Inferno: Qual o tipo de filme de terror que mais te agrada? Por quê? (zumbis, vampiros, mortos-vivos, assassinos em série, terror sugerido, terror explícito).
Felipe M.Guerra: Eu gosto de todos os tipos de filme de terror, embora hoje já não tenha mais tanta paciência para essas franquias que não acabam nunca, mas não têm relação entre as sequências (tipo A Colheita Maldita), e muito menos para o “terror teen”. Lenda Urbana é algo que nunca mais vai passar no meu videocassete, muito menos no DVD. E não dou um tostão para ver essas bobagens. Tanto que filmes do gênero, da safra mais recente, eu nem cheguei a ver, e nem tenho curiosidade.
Bom, eu gosto muito dos filmes italianos sobre zumbis e canibalismo, para mim o que de melhor foi feito no cinema de horror das últimas três décadas. A crueza técnica, o estilo documental, a narrativa séria e sem as piadinhas tradicionais do cinema americano, a produção bagaceira e a violência aos borbotões são coisas que me atraem nesses filmes, às vezes tachados erroneamente de “trash”. Quando vejo alguém chamando Cannibal Holocaust de filme trash chega a me dar um arrepio, uma vontade de dar um tapão na orelha do cara para aprender a não falar bobagem… Agora, mais recentemente, o cinema oriental de horror está me atraindo bastante, mas existe pouquíssima coisa desse material lançada no Brasil, eu não gosto de importar e ODEIO baixar filmes para ver no computador, então me fodo e fico sem ver coisas como Battle Royale 2 e Ju-On, que todo mundo está comentando…
Mas eu também gosto de filmes de terror sugerido, onde a violência e os efeitos especiais são deixados de lado, tipo a recente trilogia oriental Ringu – O Chamado e o clássico Inverno de Sangue em Veneza, acho que uma das coisas mais assustadoras que eu vi nos últimos anos (o filme é antigo, mas eu só consegui assistir há uns 3 anos).
Boca do Inferno: Qual as sua visão sobre os filmes de terror da atualidade? O que mudou?
Felipe M.Guerra: Atualmente, está horrível, e já virou clichê falar isso. O cinema americano, que já nos brindou com pérolas como a trilogia dos mortos-vivos, de George A. Romero, com O Massacre da Serra Elétrica, com Halloween e outras preciosidades, agora está afundado numa necessidade desesperada, infantil, caça-níqueis de fazer remakes. Eu não concordo com isso, mesmo assumindo que alguns filmes recentes, tipo as refilmagens de Dawn of the Dead e O Massacre da Serra Elétrica, até ficaram legais…
Agora, o que eu questiono é: pra quê? Por que refilmar esses clássicos? Nem é refilmar, porque os caras só se apropriaram do nome e fizeram histórias diferentes (tanto no Madrugada dos Mortos quanto no Massacre), com alguns elementos recorrentes aos dois filmes originais. Então, se é assim, porque não fizeram filmes independentes? Tipo, em vez de Dawn of the Dead remake, porque o Zack Snyder não filmou Attack of the Flesh Eater Zombies? Por que essa necessidade de dizer: “Estou refilmando um clássico”, ao invés de tentar fazer uma história original? E o pior é que se não são remakes, os americanos têm lançado uns filminhos muito abobados, repletos de adolescentes, piadinhas fora de hora e efeitos especiais de videogame. Não consigo lembrar um filme americano de terror que eu daria cinco estrelas, acho que nos últimos 10 anos… E eles estão abusando muito dos efeitos especiais de computador. Eu sou contra isso. Sou mais de Tom Savini do que de Stan Winston. Tem que meter a mão na massa, colocar pele caindo e sangue falso, nada daquele sangue horrível feito por computador, em CGI… E os filmes classe B americanos, que anteriormente eram a salvação da pátria, hoje são horrorosos: ou são slasher movies com adolescentes ou então bobagens com monstros mutantes em CGI. Larguei de mão…
O cinema europeu de horror já foi excelente, mas infelizmente as pequenas produtoras italianas foram à bancarrota e hoje gênios do gênero, como Ruggero Deodato e Lamberto Bava, são obrigados a trabalhar para a TV italiana, em trabalhos que desmerecem totalmente o seu talento… E como a TV tem que passar coisas “censura livre“, imagina quando vão ser lançados filmes como aqueles que estes realizadores faziam nos anos 80. Tenho pena de caras tipo o Luigi Cozzi, que fez Alien Contamination e Paganini Horror, e hoje é dono de um museu sobre o Dario Argento em Roma, ao invés de estar filmando. Pô, até o Quentin Tarantino é um grande fã do Cozzi e fala maravilhas sobre Alien Contamination!
Cada vez mais eu me convenço de que a salvação do cinema de horror atual vem do Oriente. A trilogia Ringu é uma das melhores coisas que já apareceu no gênero nos últimos tempos. Infelizmente, pouca coisa é lançada no Brasil e o cara acaba não vendo nada que vem do Japão e da China. Eu mesmo confesso ter pouquíssimo conhecimento do horror oriental. Mas o pouco que eu vi me deixo fascinado. Tipo o primeiro Battle Royale. Isso é filme macho, sem concessões, uma coisa que nos EUA nunca iriam fazer (crianças se matando, e violentamente?). Um filmão, que nem foi lançado no Brasil. Outra preciosidade made in Japan é Evil Dead Trap, uma doideira que lembra os filmes do Dario Argento e ainda tem uma subtrama envolvendo snuff movies. Parece que virou série e teve duas continuações, mas infelizmente eu só conheço a primeira. E tem uma cacetada de produções que eu adoraria ver, mas de que jeito, se não lançam por aqui? Estão falando maravilhas de Dark Water, do Hideo Nakata, que é o mesmo diretor de Ringu, e ouvi até boatos de que o Walter Salles iria refilmar ele nos Estados Unidos… Mas para o cara ver essas coisas, só importando DVDs e VHS, e pagando uma fortuna por isso, ou baixando filmes pela Internet, o que eu não gosto e não faço.
E enquanto os caras de olhinhos puxados estão dando um banho de criatividade e produção no gênero, os americanos vêm falando de “remakes” de Quadrilha de Sádicos e Assalto à 13ª DP… E são essas produções que as distribuidoras nos empurram goela abaixo! Ah, na Inglaterra também tem saído alguns filmes bem interessantes, tipo Dog Soldiers, e na Alemanha, como o Anatomia e A Experiência. Mas normalmente, estes filmes chegam aqui com muito atraso e bem pouco comentados, tipo A Experiência, que é de 2001 e foi lançado aqui três anos depois sem qualquer publicidade. Aí o cara precisa adivinhar que esses filmes existem!
Boca do Inferno: O que é a Necrófilos? Por que esse nome? Quando surgiu? Quem faz parte? Quais os primeiros filmes?
Felipe M.Guerra: A Necrófilos Produções Artísticas é uma produtora amadora de filmes amadores, por mais redundante que isso pareça. Foi fundada por mim como uma brincadeira, entre 1995 e 1996, quando eu apostei com um amigo, o Eliseu Demari – hoje co-produtor e ator dos filmes -, que seria capaz de fazer um curta em vídeo em dois dias. Tinha que ter meia hora de duração, uns efeitos sangrentos e tal. Eu tinha roteiro, alguns “atores“, locações e muita boa vontade… Só me faltava uma câmera. Então tive que chamar meu amigo Zema (Mathias Gusso), que na época estava namorando uma guria numa cidade vizinha e era o maior pau mandado – ele vai ficar louco quando ler isso, mas era verdade. O Zema tinha câmera, mas estava sempre namorando, então tive que dar um desdobre (uma enrolada) nele para convencê-lo a não só emprestar a câmera, mas também aparecer no filme e se sujar de sangue falso. Aí a gente filmou aquilo que ficou conhecido como Ponto de Ebulição.
Depois, em 1998, eu estava com um roteiro excelente para um longa-metragem, uma comédia com toques de policial e horror, chamada Patricia Gennice (uma homenagem para uma ex-namorada). Eu adorava aquela história, mas não sabia o que fazer com ela. Então, resolvi filmar eu mesmo. Foi aí que comprei a camerazinha podrona e amadorzona que eu uso até hoje, uma Panasonic beeeeem limitada, que na época custou 800 reais – hoje sai pelo dobro ou mais. E depois que eu estava com a câmera nas mãos, não parei mais. Infelizmente, a vontade é maior que as condições, nem sempre eu consigo filmar, por causa de trabalho e estudos, e assim a Necrófilos tem apenas umas cinco produções, apesar de existir oficialmente há quase dez anos. Sai praticamente um filme ou curta a cada dois anos! Por mim eu faria um filme diferente por fim de semana, mas o trabalho e os estudos não permitem, nem os atores são tão dispostos quanto eu!
Mas também tivemos alguns projetos que não deram certo. Teve um filme que eu tentei fazer sem roteiro, filmando conforme me dava na telha. Até coloquei um amigo meu, o Cabeça (Gustavo Zanuz), andando com uma flor na mão dentro de um salão de baile lotado, enquanto filmava ele… Alto mico! E nem usamos para nada. Outra furada foi o filme Escrito nas Estrelas, uma mistura de terror, romance, comédia e Pulp Fiction, envolvendo drogas, prostitutas lésbicas, um padre assassino e um cara que lia os pensamentos dos outros e fazia magia negra. Era muita doideira, eu estava curtindo a fama aqui na cidade por causa do Patricia Gennice e a gente começou a filmar esse outro em 1999. Eu achei que podia fazer tudo, aí enchi de cenas de perseguições de carros, tiroteios, matanças mil… Chegamos a construir até dois cenários para as cenas, mas depois de uns 20 minutos de gravações, me vi forçado a cancelar o filme, pois era muito ambicioso. E teve muitos outros projetos, tipo o de Puteiro Sangrento, que seria uma continuação não-oficial de Um Drink no Inferno (isso antes de fazerem as Partes 2 e 3!), e Enigma, filme mais sério que se passaria em uma igreja abandonada que fica aqui na minha cidade. Por um motivo ou outro, todos esses filmes começaram a ser pensados e produzidos, mas acabaram morrendo na praia.
Eu poderia ter me acomodado e parado com a brincadeira, mas não queria. Então em 2001 veio o Entrei em Pânico ao Saber o que Vocês Fizeram na Sexta-Feira 13 do Verão Passado, que é a evolução satírica do roteiro “sério” de um slasher movie que eu queria fazer. O problema é que eu pensei: “Com esses recursos que eu tenho, esses atores ruins e os efeitos especiais improvisados, mesmo que o filme seja sério, o pessoal vai dar gargalhada“. Aí resolvi avacalhar e fazer uma sátira ao cinema de horror, mas mesmo assim meti umas cenas bem violentas para contrastar. Foi aí que comecei a trabalhar com meus irmãos Rodrigo e Diego nos papéis principais e coloquei uma turma de meninos e meninas mais novinhos para atuar, pois é um pessoal que tem mais vontade e disponibilidade para filmar. Os meus amigos estava todos velhos e “adultos” demais para se meter numa roubada dessas. O sucesso do Entrei em Pânico… foi estrondoso e eu fiquei todo ano de 2002 divulgando ele.
A Necrófilos tem hoje uma equipe de umas 10 pessoas que acabam se envolvendo em todos os filmes, mas eu não vou dar nome aos bois para não ser injusto e deixar alguém de fora. Tenho que dar um mérito para o meu irmão Rodrigo, o famoso “Goti“, que está se puxando e ajudando muito na produção desse novo filme. Além de ter feito, sem reclamar muito, cenas terríveis como andar de calcinha e comer carne crua! E o Eliseu também é um cara que se puxa e aguenta meus egocentrismos e projetos mirabolantes, inclusive ajudando financeiramente a torná-los realidade.
E para terminar essa resposta longuíssima, o nome Necrófilos tem duas explicações. O Eliseu gosta de dizer que é por causa do caráter mórbido das nossas produções, mas tem uma historinha engraçada por trás. Em 1995 eu e uns amigos fizemos uma banda punk de garagem que, por sorte, não saiu da garagem. Eu fazia as letras e cantava, ou melhor, gritava no microfone. E na hora de inventar um nome para a banda, uns queriam Alívio Imediato (argh!), outro queriam nomes em inglês, e eu sugeri Necrofilia. Ninguém sabia o que era. Quando eu expliquei, o resto da banda resolveu que o nome seria Os Necrófilos, abreviado depois para Necrófilos. E escolheram esse nome como uma forma de auto-crítica, porque todos nós concordávamos, naquela época, que as meninas com quem a gente saía eram tão ridículas que pareciam estar mortas, então nós éramos uns necrófilos. Bah, eu nem deveria ter contado isso, ó céus! Por sorte, o nível de meninas melhorou com o passar do tempo. Por sorte, também, todos vocês ficaram privados de conhecer o poder das minhas cordas vocais.
Boca do Inferno: Fale sobre seu próximo filme e projetos.
Felipe M.Guerra: Em 2003 comecei a escrever o roteiro do Entrei em Pânico 2, que iria começar bem onde parou o primeiro, tipo um Halloween 2. Mas parei porque não conseguia pensar em nada realmente engraçado. Ia ser mais curto que o primeiro (que ficou com duas horas), aí o slogan seria: Mais violento. Mais assustador. Mais curto!. E nos créditos iniciais teria assim: Entrei em Pânico 2: a conclusão da trilogia. Bobagens mesmo, não sei se alguém ia rir disso. O Goti, que morreu no primeiro filme, iria voltar numa cadeira de rodas, e os sobreviventes, o Eliseu e a Niandra, também. O Geison estaria atrás deles e o Goti, por ter passado por uma experiência de “quase morte“, começaria a ver pessoas mortas, tipo O Sexto Sentido, uma desculpa para participações de todos os atores que morreram no primeiro filme, e iriam aparecer culpando o Goti por suas mortes. Mas acabei deixando a história de lado.
Então comecei a investir em Canibais & Solidão, roteiro que eu escrevi em 2003 e comecei a filmar em novembro do ano passado. Trata-se de uma comédia romântica misturada com terror, porque eu não consigo fazer um filme em um único gênero. Ele surgiu da ideia de fazer um filme de canibais, imitando aqueles feitos pelos italianos entre os anos 70 e 80. Mas como ia ficar muito bagaceiro botar uns manés vestidos com roupinha de índio correndo no meio do mato, resolvi fazer uma história diferente, misturada com American Pie, onde o canibalismo acaba como uma metáfora das transformações da puberdade. Tipo, o herói, que vai ser o meu irmão Rodrigo, de novo, pensa em comer mulheres, só que literalmente. Bah, é um bagaço, mas ficou o que ficou! Algo inclassificável!
Infelizmente, sofri um baque enorme há uns três meses. Era maio e eu estava com o filme bem encaminhado, prevendo o lançamento em 12 de junho, para aproveitar o Dia dos Namorados, porque o filme é bizarro, mas também é uma história de amor. Foi quando um dos atores principais, o Marcelo Ferranti, que também estava no elenco do Entrei em Pânico 1…, resolveu abandonar o projeto com mais de 70% de filme gravado… Como eu nunca fiz contrato nem nada, e como os atores nem são pagos, nem tenho como obrigar o cara a continuar o filme, e nessa brincadeira ele fodeu com o trabalho de umas 20 pessoas! Agora estamos lentamente voltando e regravando as cenas, já com um outro ator no papel daquele que saiu. Uma grande sacanagem que já virou lenda aqui na cidade… Claro que perdi um pouco do tesão de fazer, devido à necessidade de refilmar a maior parte do que estava pronto, mas… nada pode deter a Necrófilos! E esse roteiro eu adorei desde quando acabei de escrever e reli. Decididamente, algo que eu não consigo assumir que foi escrito por mim, talvez tenha sido psicografado, talvez o Ed Wood tenha me ditado do além-túmulo!
Quando acabar o Canibais & Solidão (se é que vou acabar, hehehehe!), vou me dedicar com 100% de certeza absoluta a um filme mais curto e mais fácil, que eu estou adiando há uns cinco anos, sobre bebês mutantes canibais que vivem nos esgotos das grandes cidades. Não vou dar maiores detalhes sobre a trama para não me plagiarem, mas vai ser a coisa mais bagaceira já vista na história do cinema amador, sem precisar mostrar nudez ou escatologia! Porque meus filmes também são “família”. Hahahaha. Eu sou um Spielberg do cinema amador!
E quando esse estiver pronto, tenho dois projetos mais ambiciosos pela frente. O primeiro é um faroeste, que é meu segundo gênero preferido. Eu já tinha essa ideia desde os tempos do Patricia Gennice, mas agora, claro, todo mundo vai dizer que eu estou pensando nisso por causa do Kill Bill. Mas tem um fundo de verdade, porque a ideia voltou à tona depois que eu me emocionei com o filme do Tarantino… O título vai ser Deus os Cria, Eu os Mato. Já existe um western italiano com esse nome, por isso vai ser uma “homenagem”. Como o personagem principal é um padre assassino, tem tudo a ver.
E meu outro projeto ambicioso é a refilmagem trash de um clássico do cinema americano, mas sobre isso eu não vou falar porque não quero que me copiem e nem que depois fiquem me cobrando sobre isso! Vocês vão ter que esperar! E ainda quero fazer um filme de mortos-vivos, mas tudo depende de eu conseguir aperfeiçoar uma maquiagem razoavelmente decente – nada de pintar o rosto dos atores de verde, como George A. Romero e Bruno Mattei!
Boca do Inferno: Quais as dificuldades em produzir filmes independentes? Você tem apoio financeiro, algum patrocínio?
Felipe M.Guerra: A maior dificuldade é essa que eu enfrentei há pouco tempo: a falta de comprometimento do pessoal. Tudo bem, o projeto é meu, o roteiro é meu, a ideia é minha, e algumas pessoas não se comprometem, acabam levando na brincadeira. Tipo, nesse fim de semana tem filmagem. Marco com os quatro “atores” que vão aparecer em cena. Chega no dia, três estão lá, mas o quarto me liga: “Bah, cara, não vai dar, tenho que namorar”… ou “Tenho prova, preciso estudar”. Não tem jeito, sempre dá uma zebra. Eu já me prometi escrever roteiros mais simples, onde fiquem no máximo duas pessoas em cena por vez, mas sempre esqueço na hora de inventar novos filmes e acabo fazendo cenas com cinco, seis, dez pessoas, e aí me fodo para filmar, depois.
Outra limitação óbvia é o equipamento. Minha câmera é a mesma desde 1998, de vídeo amadoríssima, já caiu no chão, já levou banho de groselha e até já foi atropelada uma vez! Ela não está gravando som direito, por isso obrigo os atores a falarem bem alto e gravo as cenas em close. Claro que eu queria uma filmadora melhor, até digital. Mas e sai do bolso de quem? Edição também. Hoje eu faço edição linear, de vídeo para vídeo, a edição mais porca e trabalhosa que tem. Se eu queria trabalhar com ilha de edição? Claro que queria! No computador? Claro que queria! O único problema que vejo no computador é que é um tanto difícil de aprender a fuçar nos programas, e a digitalização das imagens ocupa um espaço enorme no disco rígido, é pesado demais para trabalhar… E como eu não tenho muita paciência para computadores, acabo deixando de lado, tipo, o pior burro é aquele que não quer aprender, não é? Sei lá, prefiro botar a mão na massa e fazer do jeito que eu sei fazer do que me puxar para aprender a fazer melhor. É teimosia, mas…
Quanto ao apoio financeiro, nunca tive, não tenho e nem sei se quero ter. Puxando tudo do próprio bolso, como eu faço, é meio complicado e às vezes falta grana. Também não se tem condições de fazer melhor algumas coisas. Por outro lado, é totalmente independente. Se eu fosse atrás de recursos, tipo, via Lei de Incentivo à Cultura, ou de alguma empresa aqui da minha cidade, eles iam ficar em cima de mim, me pressionando, querendo ver o investimento deles valer a pena. E eu não quero isso, não quero ter que ficar dando satisfação, tipo: “Usei o dinheiro de vocês nisso, nisso e nisso”. Outra: eles iam pedir datas, quando começa, quando termina, quando fica pronto. E não é bem assim. Eu filmo quando tenho tempo, quando posso e quando meus atores podem. Um filme meu pode demorar três meses ou um ano para ficar pronto. E isso um investidor ou patrocinador não ia entender. Agora, imagine se o Canibais & Solidão tivesse patrocinador, o rebu que ia ser, com essa encrenca toda do mané que desistiu do filme e travou a produção? Pois é… Tem todo esse lado. Se eu tivesse uma estrutura mais profissional, adoraria receber apoio financeiro. Mas do jeito que está, não tem condições.
Você não perguntou, mas eu vou responder: claro que queria fazer isso de forma profissional, e eu sonho um dia estar fazendo cinema profissional, ganhando dinheiro para isso, podendo pagar cachê aos atores, com câmeras e equipamento de primeira linha. E tenho certeza que um dia farei isso. Infelizmente, não vejo mercado para filmes de horror no Brasil. Os poucos que tentaram (José Mojica Marins, Ivan Cardoso, Fauzi Mansur, Francisco Cavalcanti, Jair Correia) se foderam e estão até hoje tentando filmar de novo.
Boca do Inferno: Quanto tempo demora para que um filme da Necrófilos esteja pronto, editado e finalizado? Qual filme demorou mais e deu mais trabalho?
Felipe M.Guerra: É que nem eu disse antes: depende da vontade do pessoal. Poderíamos fazer filmes em uma semana, um mês, um ano… Depende de uma série de fatores. Filmar é um verdadeiro parto, é quase impossível conseguir juntar os atores. Eu atualmente estou trabalhando com uma geração que nem é a minha, é uma garotada na faixa dos 18 aos 20 anos, porque os meus amigos, aqueles que apareceram nos meus primeiros filmes, estão todos com trabalhos sérios, quase casados e não querem nem saber de se meter nessas frias. E em breve vai acontecer o mesmo com estes atores que estão trabalhando comigo agora, então vou ter que pegar gente cada vez mais jovem! Chega a ser irônico: eu, que odeio terror teen, acabo tendo que fazer justo terror teen!
Bem, as filmagens são o mais demorado, devido à agenda apertada de todo o pessoal. Durante a semana todo mundo trabalha de verdade e estuda, então nem pensar. E no final de semana às vezes a galera quer ir pra balada ou namorar, então o filme pode ficar emperrado por semanas, meses, até os atores voltarem a ter vontade de filmar. É complicado. Talvez, se tivesse como pagar cachê, fosse um pouquinho mais profissional a estrutura…
A edição, como é de vídeo para vídeo, demora pelo menos uma semana. Normalmente, eu marco o lançamento do filme para lugares públicos, tipo o cinema aqui de Carlos Barbosa, antes de ter o filme pronto. No caso do Patricia Gennice, em 1998, por exemplo, eu marquei com um amigo meu para passar o filme no bar dele. Na madrugada anterior ao dia do lançamento, eu filmei o final do filme! E acabei de editar duas horas antes da hora marcada para a exibição!
No Entrei em Pânico… foi a mesma história: acabei de editar no dia anterior à exibição no cinema. Já pensou se dá uma zebra, uma pane em um dos meus vídeos, e eu não consigo acabar? Tínhamos até vendido já uns 100 ingressos antecipados!!! Eu nunca esqueço de uma história sobre o cineasta russo Sergei Eisenstein, que na década de 20 editou a sua obra-prima O Encouraçado Potenkim também em cima da hora da exibição, e acabou colando alguns dos pedaços de película com cuspe! Ele passou toda a projeção desesperado achando que o rolo iria se arrebentar a qualquer momento! Imagina só!
O nosso filme mais trabalhoso, até hoje, foi o Patricia Gennice, porque ele foi feito sob condições extremamente adversas. Ninguém sacava nada de cinema, nem eu. Eu filmei ele sem a menor ideia de como iria editar, se ia dar para botar música por cima, etc. E como a história se passava numa única noite, ele era filmado sempre à noite, normalmente de madrugada, a partir das 3 da manhã, para a polícia não pegar a gente. Porque na época eu não tinha aparecido no Fantástico e ninguém sabia que tinha um bando de malucos fazendo filmes na cidade. Como eu ia explicar para a polícia que nós, todos cobertos de sangue falso, com revólveres de verdade (do meu pai), facões e machados, correndo e gritando pelas ruas desertas, estávamos fazendo um filme??? Era cadeia direto! Até por perturbação da ordem pública!
Nunca esqueço uma madrugada que filmamos numa enorme escadaria, do lado de um prédio residencial, a cena em que um assassino profissional, de smoking, dá um tiro no personagem interpretado pelo Eliseu. O assassino era o Zema. Ele estava com um calibre 38 de verdade que era do meu pai, sem balas, claro. E estouramos uma bombinha para simular o barulho do tiro, porque eu nem imaginava que dava para colocar som depois por cima do filme, na hora da edição. Aí o Eliseu caía gritando e esguichando sangue por um buraco na camisa, o maior berreiro. A cena foi feita quase toda num único take, apesar do Zema ter dado risada no meio, porque sujou a camisa do Eliseu e não dava para voltar e fazer de novo. Aí parei de filmar e gritei: “Porra, essa ficou boa demais! Eliseu, tu parece que morreu mesmo!”, isso falando alto, e tal… E o Eliseu, morto no chão, me olha assustado e aponta para cima. Quando eu olho, tem metade do prédio do lado de onde a gente filmava, acordados, de pijama ou roupão, nas sacadas e janelas, assistindo as filmagens! Não sei como nunca chamaram a polícia por causa disso… Imagina se pensassem que os dois estavam se matando mesmo? Como explicar o que era aquele 38 de verdade? Fazer cinema em cidade pequena, decididamente, não é fácil…
Boca do Inferno: O que mudou na sua vida depois do sucesso do seu trabalho? Ganhou a chave da cidade? Vai se candidatar a prefeito? Dá autógrafos?
Felipe M.Guerra: Sabe que às vezes eu vou na faculdade (curso Jornalismo, ainda), que fica a uma hora de viagem da minha cidade, e um ou outro colega me reconhece, pelo nome na chamada ou pela cara – porque minha cara não é lá muito comum. Aí eles ameaçam fazer aquela balbúrdia, tipo, cutucando os colegas e apontando pra mim, dizendo: “Olha, o cara que apareceu no Luciano Huck, que faz filme trash“, e tal. E quando isso acontece, eu fico vermelho pra caramba e peço pro cara ficar quieto. Bah, eu gosto de falar sobre tudo, menos sobre mim. E aí se começam a me fazer perguntas sobre meus filmes, meu trabalho, e como eu fui pro Luciano Huck, como eu fui pro Fantástico, bah, eu fico todo perdido, dá vontade de sair correndo.
Então, eu sou um cara que não gosta dessa “fama“, de ser reconhecido. Eu gosto que as pessoas vejam meus filmes, mas não faço questão de ser reconhecido, tanto que se ninguém me pergunta, eu nem digo que faço filmes amadores – às vezes, uns colegas de aula só descobrem isso no fim do semestre e se sentem traídos por eu não ter contado.
E é um saco esse negócio de ser conhecido, porque só ficam te cobrando coisas. Às vezes até para puxar assunto. Tipo, “E aí, fazendo um novo filme?“, e coisa e tal. E eu não sou um cara de muita paciência para ficar explicando a mesma coisa pela centésima vez. Até porque, na maioria das vezes, os caras que perguntam isso não conhecem porra nenhuma nem viram os outros filmes que eu fiz, e só perguntam por perguntar, não dão a mínima para o que eu vou dizer! Eu sou um cara de paciência limitada! hehehehehe
A chave da cidade ainda não ganhei, mas em compensação já não preciso mais me esconder tanto para filmar. Nos tempos de Patricia Gennice, a gente saía correndo ao primeiro sinal de carro de polícia passando. Em março deste ano, eu estava filmando na rua às três da madrugada e uma viatura parou bem do lado da calçada onde eu estava com a filmadora. Eu simplesmente continuei filmando e não dei a mínima. Depois de meio minuto, a viatura foi embora! Agora, me chamam de “Spielberg” meio na sacanagem mesmo. Depois que conheceu pessoalmente o Luciano Huck graças a mim, até o prefeito da cidade me olha diferente. E eu só preciso me esconder para fazer as cenas mais delicadas, tipo uma parte de Canibais & Solidão onde eu aparecia pelado em cima do telhado da minha casa – ninguém quis fazer essa cena e eu resolvi fazer eu mesmo, até pela honra de ser o primeiro numa cena de nudez do cinema de Carlos Barbosa! Então estávamos lá no telhado da minha casa, com uma galera assistindo e dando muita risada nas sacadas de um prédio que fica bem do lado, e de repente eu lá peladão, só com uma meia cobrindo o saco, e passa a viatura da Brigada na rua. Tinha que ver a correria: eram quatro marmanjos correndo e se encolhendo atrás do chaminé da minha casa para a polícia não ver aquilo! Porque pensa, como é que eu ia explicar o que estávamos fazendo lá?
Autógrafos eu nunca dei, mas, em compensação, estou namorando desde novembro do ano passado uma bela garota de uma cidade vizinha que só me conheceu graças às minhas aparições na TV. É mole ou quer mais?
Boca do Inferno: Que conselho você daria às pessoas que estão interessadas em entrar no ramo dos filmes independentes?
Felipe M.Guerra: Meu conselho: assistam muitos filmes! Não precisa fazer cursos de cinema para aprender sobre linguagem cinematográfica. Infelizmente, a gente vê filmes amadores onde o cara deixa a câmera num tripé por cinco minutos e bota os manés falando decorado na frente. Se já é difícil acompanhar uma cena estática assim num filme profissional, imagina num amador! Eu mesmo fiz essa cagada uma duas vezes e agora, mesmo ainda sendo um cineasta amador, adotei um estilo de edição Michael Bay, ou seja, cortes muito rápidos, câmera sempre se mexendo de um ator para outro, nada de tripé, nada de apoio… A câmera precisa sacudir e se movimentar!
Infelizmente, neguinho quer fazer filme hoje em dia e já sai pedindo pro papai comprar câmera digital e placa de edição de vídeo no computador! Ah, tem que começar fazendo filme que nem macho, com câmera caseira fudidona, aquelas de filmar batizado e festa de aniversário… E editar da câmera pro vídeo ou de um vídeo para outro, para ficar uma coisa bem porca e amadora, mesmo, mas criativa, para mostrar que você é um cara esforçado e pode tirar água de pedra.
Mas não, o que acontece é maluco colocando um pano azul na sala de casa e fazendo superproduções à la George Lucas, porque depois bota no computador, mete chroma key e faz a festa colocando mil fundo e efeitos. Eu sou o inimigo número 1 dos computadores em filmes amadores. Acho que a edição no computador mata o filme amador. E tem mais: filme de terror não é efeitos de computador, não é sangue digital, não é Bill Gates. É sujeira, isso sim, tem que botar a mão na massa e fazer sujeira.
Então, façam filmes bem amadorzões antes, e pensem no computador depois, crianças… Lembrem que antigamente não existia computador e mesmo assim o Lucio Fulci fez um filmão tipo Zombie. Tem que praticar muito e pensar em soluções baratas para as coisas. Por exemplo, quando eu filmava Entrei em Pânico…, tinha uma cena no roteiro onde um cara morria com uma torneira enfiada no pescoço. Claro, eu escrevi aquilo tudo muito bonito e muito legal, mas sem a menor ideia de como fazer. Na hora de filmar, tentamos colar a torneira no pescoço do “ator” com cola, durex e até cola de silicone (usada para tapar furos em encanamento), e nada da torneira ficar quieta. Então o que eu fiz: deitamos o ator no chão e colocamos a torneira de pé no pescoço dele. Depois, eu simplesmente virei a câmera para fazer como se ele estivesse de pé! E engana!
Mas tem mais: se você acha que o seu trabalho está bom, divulgue. Ou vocês pensam que o pessoal da Globo colocou matéria sobre meus filmes no Fantástico por causa dos meus belos olhos castanhos? Gastei alta grana mandando cópias de Entrei em Pânico… pra Deus e o mundo, e deu no que deu: primeiro revista SET, depois canais de TV regionais, depois a Globo, depois Luciano Huck. Estou já me programando para o Oscar 2005.
Divulguem, façam barulho. Hoje em dia, com a Internet, qualquer bocó tem página na rede para o mundo todo ver. Se não fizer propaganda, ninguém sabe o que você está fazendo. Eu nem acabei Canibais & Solidão e há uns quatro meses saiu uma foto das filmagens num jornal de abrangência regional – eles estavam fazendo uma reportagem sobre filmes amadores e toparam com meu fotolog, onde tinha umas fotos dos bastidores do filme. Então, foi publicidade de graça para um negócio que eu nem acabei! Se só sua mãe, seu pai e seus amigos assistirem o filme, de que adianta? Para mim, só isso não chegava. Filmes foram feitos para serem vistos!
Boca do Inferno: Para finalizar, na sua opinião, qual é o segundo melhor filme de terror de todos os tempos? Por quê? (segundo, porque já sabemos que Evil Dead é o primeiro…hehehe)
Felipe M.Guerra: Bah… Essas perguntas sobre “melhores” filmes eu odeio, porque não consigo me decidir por um ou outro. É tipo “o melhor filme de todos os tempos”, eu não consigo conceber que Cidadão Kane, do Orson Welles, por melhor que seja, tenha este título de “o melhor dos melhores“, ainda mais existindo obras-primas como O Encouraçado Potenkim, Metrópolis, Nosferatu, e até excelente filmes mais recentes, tipo Era Uma Vez no Oeste e Apocalypse Now.
Então, se fosse para escolher, tipo, os cinco melhores filmes de terror de todos os tempos, sem ordem de preferência, eu colocaria Dawn of the Dead (do Romero, não o remake do Snyder, óbvio), O Massacre da Serra Elétrica, do Tobe Hooper, Evil Dead, obviamente, The Beyond, do Fulci (é difícil escolher um filme só do Fulci, mas esse representa bem a obra do diretor, embora eu também goste muito do Zombie), o Cannibal Holocaust do Deodato e O Despertar da Besta, só pra não deixar o José Mojica Marins de fora. Mas aí falta uma pá de outros filmes que eu adoro. E também é injusto não citar diretores tipo Dario Argento, Mario Bava, e muitos outros. Bem… o melhor é esquecer essas listinhas. Cada um tem os seus clássicos, e era isso! Deixa quieto, Marcelo, não vai me comprometer!