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por Vitor Basílio

Hesitei por um tempo em contar este pedaço da minha vida. Francamente, pensando agora, não consigo precisar o motivo. Medo? Vergonha? Vaidade? Talvez sim, talvez não, ou, quem sabe, os três combinados. Bom, o que sei é que tudo me parece bobagem neste momento em que escrevo. Não há fatos que fiquem por muito tempo enterrados, embora haja tanta distorção no mundo. E para você lendo estas linhas, digo que toda boa história tem o seu começo, por mais inocente que pareça. Vou começar suavemente, como vai perceber, mas conforme minha excitação aumentar, prometo que você terá uma surpresa.

O dia que mudou minha existência foi especial: o meu aniversário de 25 anos, 08 de outubro do ano de 2013. Antes, porém, vou dar um breve contexto a respeito de como era a minha vida nessa época. Cursei Letras por um tempo, mas acabei desistindo. Não pelo curso em si, sou um leitor voraz, mas pelos professores e colegas. Arrogantes é o nome certo, afetados o termo pomposo que eles provavelmente usariam, sendo um bando de imbecis o mais preciso. Não pude aguentar muito tempo lá dentro. Sabia que deveria terminar o curso, pois se já é difícil arrumar emprego tendo uma formação, imagina sem. Porém se eu continuasse, no dia da minha graduação eu estaria num manicômio ou dentro de um caixão. Meu estado de espírito no dia que decidi pela desistência era tal que, se tivesse um pouco mais de coragem e os meios, teria ido com uma arma para a faculdade e dado cabo de certos professores e colegas. Mas não valia a pena. Estragar a minha vida por conta de idiotas que não estavam nem aí pra mim? Nada disso.

Bom, essa foi minha experiência lamentável com a universidade. Alguns meses após tudo isso, e apesar de meu receio inicial, consegui um emprego de auxiliar na biblioteca da minha cidade. Isso melhorou de maneira fantástica o meu humor. Nada como me refugiar na calma e silêncio do templo dos livros. O quadro de funcionários era pequeno. A bibliotecária, um aprendiz que ficava apenas no período da manhã, um auxiliar de limpeza e eu. O nosso relacionamento era bom, conversávamos o necessário e cuidávamos da própria vida. Quanto aos usuários, eram em sua maioria adolescentes e pessoas mais velhas. Os primeiros lá iam para buscar livros pedidos pela escola, enquanto os segundos por vontade própria. Alguns eram excêntricos, como a senhorinha que só lia livros de romance, e sempre do mesmo autor, enquanto outros eram solitários que, além dos livros, iam até lá em busca de alguém com quem pudessem conversar, ou que apenas os ouvissem. Eu tinha muito prazer em atendê-los e escutá-los. Digo a você que muito do que hoje sei sobre o ser humano veio dessas conversas, e não as trocaria por nada. Na universidade se aprende muito, é verdade, mas é ainda a vida que encontramos na realidade das coisas. E naquele balcão de atendimento, tive as melhores aulas.

Pois bem, alguém poderia dizer que eu levava uma boa vida para um jovem da minha idade. Emprego fixo, carteira assinada, salário razoável, qualidade de vida confortável. O que mais eu iria querer? Eu não sei, mas faltava algo. E naquela tarde de sexta-feira, logo depois do almoço, no dia do meu aniversário, como eu disse acima, esse algo veio. Na forma de Alice. Ela chegou vestindo uma camiseta vermelha estampada, calça jeans rasgada e tênis All Star. Seu cabelo era bem escuro e liso, a pele acobreada e os olhos pretos como a tinta no papel. No antebraço esquerdo havia uma tatuagem de rosas entrelaçadas. Seu rosto carregava uma sutil expressão de tristeza que se transformou em sorriso ao me ver no balcão.

— Boa tarde, moço — sua voz era baixa, pouco mais alta que um sussurro.

— Boa tarde — respondi reparando num piercing de argola em sua narina esquerda. — Como eu posso te ajudar?

— Eu não sou muito boa em escolher livros, por isso gostaria de uma indicação, por favor — ela falou, apoiando os cotovelos no mármore do balcão de atendimento.

— E quais gêneros te atraem mais?

— Olha, eu gosto bastante de terror. Tanto livros quanto filmes, séries. Também curto bastante romances policiais. Qualquer coisa que envolva mistério me conquista — ela respondeu e notei uma ligeira piscada de seu olho direito.

— Ótimo, eu tenho muitas indicações nesse campo. Também adoro terror e policiais, isso me faz a pessoa perfeita para te indicar esses livros.

Alice sorriu enquanto eu ia buscar os livros na outra sala. Sim, era isso que me faltava. Essa garota poderia ser um estímulo, algo novo e excitante para mudar um pouco a rotina. Não me leve a mal, eu gosto de rotina, acho ela fundamental para qualquer coisa que formos fazer. Mas algumas quebras pontuais também são muito bem vindas. E ali estava a minha. Como proceder agora? Conquistá-la, sim. Afinal, tenho os livros pra me ajudar a iniciar uma conversa. E quem sabe o que pode acontecer daí em diante? Naquele momento, contudo, me concentrei em escolher livros que conhecia, para que pudesse falar com mais propriedade e, assim, evitar qualquer embaraço. Peguei dois do Stephen King, uma coletânea de contos de Edgar Allan Poe e dois romances policiais do comissário Maigret, de Simenon. Acho que isso serviria para o momento.

— Aqui estão…. perdão, como é o seu nome? — perguntei pousando os livros no balcão.

— Alice — ela respondeu, tirando um óculos de aro redondo de dentro da bola. Ela os colocou num gesto rápido e gracioso e continuou  E você, como se chama?

— Rodrigo, para o que precisar — falei com um sorriso.

— Acho que vou precisar de você mesmo, Rodrigo — ela pegou um dos livros e começou a folheá-lo — Eu gosto muito do King. Já li alguns de seus livros, vi filmes baseados neles. Alguns são muito bons, outros péssimos. Você não acha?

— Totalmente — concordei, observando os olhos dela correndo entre as linhas — Nem sempre pode se captar a essência de algumas histórias. Isso sem falar na dificuldade de transição de uma mídia impressa para o audiovisual.

— Com certeza — retorquiu Alice — Como por exemplo O Iluminado. Excelente como filme, péssimo como adaptação do livro. Quantos livros eu posso levar?

— Três. Mas vou abrir uma exceção pra você hoje e te deixar levar quatro.

— Olha só, deve ser o meu dia de sorte, então — ela fixou o olhar nos meus lábios por alguns segundos e continuou — Acho que você vai me deixar mal acostumada, Rodrigo.

— Não é sempre que encontro alguém que compartilha dos meus gostos, por isso acho que vale a exceção, você não acha?

Ela sorriu e me olhou de cima a baixo:

Sim, acho que você está certo. É muito bom encontrar pessoas que pensam como a gente.

— Sem dúvida, Alice, sem dúvida — aos meus ouvidos, o tom da minha voz pareceu carregar uma excitação exagerada. Pigarreei suavemente e voltei a falar num registro mais neutro — E aí, já decidiu quais serão os escolhidos?

— Bom, estou entre esses dois do King e esse do… — ela baixou os olhos para a capa — Poe. Foi ele quem escreveu aquele poema famoso, não é? O Corvo?

— Os contos dele são ótimos. Ele é uma das influências do Stephen King, sabia?

— Verdade? Eu ainda conheço pouco dele, só o poema e aquele detetive que ele criou o Dupin, ou algo assim

— Sim, isso mesmo. Bom, então acho que você vai gostar muito dessa coletânea. Apesar da minha oferta, ela acabou levando apenas três livros, os dois do Stephen King e o do Poe. Efetuei o empréstimo no computador e enquanto anotava na papeleta a data em que ela deveria devolver as obras, resolvi arriscar.

— Sabe Alice, já que você vai levar só três livros, tenho uma proposta para você: — ela me olhou atenta e uma leve tensão varreu seu rosto, a íris escura me estudando atrás das lentes circulares dos óculos — que tal transformarmos a oferta do quarto livro em um encontro? Assim podemos continuar a conversar e quem sabe descobrirmos se temos mais gostos em comum.

— Interessante proposta, Rodrigo — ela falou com um ar de alívio e a sombra de um sorriso se projetou em seus lábios — Acho que é uma boa ideia. Afinal, como você mesmo disse, não é todo dia que encontramos alguém que compartilha dos nossos gostos, não é verdade?

— Sim, claro — respondi satisfeito — Seria muito ruim sairmos hoje mesmo? Para podermos continuar a conversa…

— Não, pelo contrário, seria uma boa — disse ela com um tom de excitação e surpresa na voz.

Trocamos nossos contatos, ela agradeceu pelos livros e foi embora. A tarde correu sem maiores novidades, alguns frequentadores de sempre, poucos novos. Às 17h30 o expediente se encerrou e a quebra da rotina começou. Sim, o algo diferente que eu tanto ansiava começaria dali poucas horas. Assim que cheguei em casa, mandei uma mensagem para Alice. Ela respondeu com razoável rapidez e combinamos de nos encontrarmos num barzinho próximo ao centro da cidade às 21h30. Admito que estava um pouco nervoso conforme ia me arrumando. Meu histórico com garotas era modesto, apenas envolvimentos casuais. Eu nunca havia namorado. Talvez algo dentro de mim enxergasse essa possibilidade em Alice. E, olhando em retrospecto, vejo que ela seria a escolha perfeita para um primeiro relacionamento sério. Alice era inteligente e bem articulada. Causou um grande impacto em mim durante nosso encontro. Admito a você que me lê que cheguei a sentir por ela algo muito próximo ao amor. Sim, não há porque ter vergonha em reconhecer isso. O amor é um sentimento que engrandece. Mesmo quando não é correspondido. Sim, ouso dizer que são justamente nesses casos que ele mais purifica e enobrece o ser humano. Claro, o amor correspondido também é bom, mas ele não dura muito tempo, essa é a verdade. Basta uma crise para que ele acabe e seja facilmente substituído pela indiferença, pelo ódio, e até mesmo pela vingança, o que resulta sempre em tragédias desnecessárias. Já o amor não correspondido não. Este dura para sempre, cada vez mais forte e vigoroso, sempre pronto a se derramar. Por isso o que Alice e eu tivemos foi tão forte, tão belo, tão avassalador que faria um namoro convencional se tornar um faz de conta infantil piegas e insosso.

Conforme eu disse, marcamos de nos encontrarmos às 21h30. Fiquei na dúvida se atrasava um pouco, imaginando que Alice também se atrasaria, ou se chegava pontualmente. Acabei por chegar no barzinho às 21h32, nem muito atrasado, muito menos adiantado. Dei uma olhada geral pelo lugar e não vi Alice. Como a noite estava agradável e o céu limpo e cheio de estrelas, optei por uma mesa do lado de fora. Disse ao garçom que esperava alguém e pedi uma cerveja. O nervosismo voltou a tomar conta de mim, e procurei me distrair observando ao meu redor. Já havia um movimento considerável no lugar apesar do horário. A maioria eram grupos que ocupavam de duas a quatro mesas na parte de dentro, enquanto a parte externa era preferida pelos casais. Perto de mim estavam uma mulher loira bonita aparentando uns 40 anos e um rapaz com pouco mais da minha idade. Ele tagarelava sem parar, olhando fixamente sua companheira. Falava com uma cadência acelerada, aparentemente sem pensar muito no que dizia, apenas deixando jorrar as palavras, talvez acreditando que assim impressionaria aquela mulher mais velha. Ela, por sua vez, o escutava, ou fingia escutá-lo, com uma expressão que misturava o tédio e o arrependimento. Provavelmente ela só queria alguém para tomar uma cerveja e transar sem compromisso. Porém, acabara arrumando um palestrante. Os olhos dela encontraram os meus por um instante e senti que eles suplicaram para que eu a tirasse dali. Indiquei a cadeira ao meu lado com um leve aceno de cabeça e ela pareceu entender que eu esperava alguém. Nesse momento, o rapaz fez uma rápida pausa em seu discurso para dar um gole em sua cerveja, que a essa altura deveria estar quente, ou choca, dependendo de há quanto tempo ele estava falando. A mulher loira aproveitou o silêncio e acendeu um cigarro. O tagarela, ao ver isso, fez uma expressão de espanto logo substituída por uma de protesto e já se preparava para abrir a boca novamente quando parou. Talvez um pensamento simples tenha passado por sua cabeça. Se reclamasse do cigarro, perderia a chance de transar naquela noite. Eu acreditava que ele já perdera, mas ainda não havia se dado conta. A única salvação que ele tinha era se a mulher estava carente ou com tesão, o que era praticamente a mesma coisa. Fosse o que tivesse passado em sua cabeça, o rapaz desistiu de repreender a companheira por fumar e voltou ao seu monólogo. A loira continuou a saborear o cigarro, soprando a fumaça lentamente e olhando os carros que passavam na rua diante de nós.

— Oi, Rodrigo

Dei um pequeno pulo na cadeira ao som daquele cumprimento. Era Alice parada na minha frente e sorrindo. Vestia um top branco com alça e uma saia preta de couro. O cabelo tinha um pequeno coque no topo da cabeça. No rosto, os óculos de aro redondo e um batom vermelho realçando os lábios. Uma pequena bolsa preta pendia em seu ombro direito. Também notei que ela tinha um piercing no umbigo, além daquele no nariz.

— Alice, oi — respondi ainda perdido pelo leve susto — Espero que você não se importe de ficarmos aqui Está uma noite tão bonita, achei que seria um desperdício ficarmos lá dentro.

— Nem um pouco — ela respondeu enquanto se sentava — Concordo plenamente. A noite está maravilhosa. Se eu tivesse chegado primeiro, também teria pegado uma mesa aqui fora.

— Você está linda. Adorei esse seu piercing no umbigo — não gostei de como isso soou, eu parecia um adolescente bobo e enfeitiçado. Mas já tinha dito. Agora era torcer pra ela ter gostado, ou fingido gostar.

— Obrigada, Rodrigo. Você também não está nada mal — ela falou e riu jogando a cabeça para trás — Sim, era uma vontade minha ter um piercing no umbigo. Doeu um pouco, mas valeu a pena.

Bom, acredito que agora seja o momento de irmos para o que interessa, não é mesmo? O encontro ocorreu maravilhosamente. Senti uma conexão muito forte com Alice, e acredito que ela também comigo. Ela falava de uma maneira doce e ao mesmo tempo eloqüente, expressando suas opiniões de uma forma tão encantadora que era impossível não concordar, muito menos se dispersar enquanto ela falava. O rapaz da mesa ao lado, com a loira bonita, deveria ter algumas aulas com Alice. Enfim, nos aproximávamos do fim do encontro e eu queria chamá-la para ir pra minha casa. Sim, era o primeiro encontro, mas algo me dizia que não haveria mal algum nisso.

— Alice — comecei ainda um pouco incerto —  Sabe, nossa conversa está tão agradável e eu estou me sentindo tão bem com você. Eu queria saber uma coisa, que tal irmos lá pra casa e ficarmos mais à vontade?

Ela sorriu, deu um gole na cerveja e avançou lentamente em minha direção. Grande foi a sensação do beijo. Eu já havia ouvido falar que em meditação nós podemos sentir a alma saindo do corpo, mas sempre tive dúvidas. Porém eu poderia jurar que naquele momento eu saí do corpo. Era como se a minha alma e a de Alice se entrelaçassem num nível superior, quântico, ou como queiram chamar. Eu subia cada vez mais, embalado numa paz e leveza que jamais imaginei poder sentir. Então, senti um baque, como aquele quando estamos quase dormindo e acordamos de repente. O beijo havia acabado.

— Eu tenho uma ideia melhor — Alice ainda tinha o rosto próximo ao meu, sua voz era um sussurro e sua mão esquerda acariciava minha coxa — Que tal irmos para a minha casa? É aqui pertinho e acredito que vamos ficar muito mais à vontade e confortáveis lá. — Como eu poderia dizer não a ela? Talvez fosse mesmo melhor, afinal de contas.

Depois de nos beijarmos mais uma vez, pedi a conta. Pagamos e eu perguntei como iríamos e ela disse que a pé mesmo pois eram apenas três quadras de distância. Andamos o breve caminho de braços dados e rindo despreocupadamente. Quando chegamos em frente a um pequeno prédio marrom ela disse que era ali. Enquanto entrávamos e subíamos a escada, Alice me explicou que alugara uma kit net naquele local havia poucos meses, após finalmente ter a coragem de sair da casa dos pais. Dissera que a mãe ficara preocupada, pois uma jovem morando sozinha no centro da cidade era perigoso.

— Lógico que entendi a preocupação dela — Alice dizia enquanto colocava a chave na fechadura — mas a nossa cidade é tão tranquila em relação à violência. E o que mais me incomoda são os pervertidos e tarados que moram aqui. Daqueles que parecem nunca ter visto mulher além de em revistas e na internet. Com os da rua eu já aprendi a lidar desde adolescente.

Uma pontada de tristeza me atingiu depois de ela dizer essa última frase. Alice abriu a porta e entramos.

— Bem vindo a minha suntuosa mansão — ela falou abrindo os braços e dando um giro ao redor de si mesma.

O lugar era pequeno, mas bem organizado. Na sala havia um sofá bege um pouco gasto, uma mesinha de centro que começara a descascar nas beiradas e uma TV.

Logo atrás havia uma cozinha pequena com geladeira, pia e um armário. No mais um pequeno corredor com dois cômodos, provavelmente o quarto dela e um banheiro. Minúsculo, mas aconchegante. A ordem do dia para a urbanização moderna, se poderia dizer.

— Fica à vontade, Eu vou ao banheiro rapidinho — disse Alice, tirando os sapatos e me indicando o sofá com a mão.

— Posso tomar um copo d’água?

— Sim, tem um filtro ali na pia e copo no armário

Dizendo isso, ela entrou no corredor e desapareceu pela porta do lado esquerdo. Eu fui a mini-cozinha. A louça estava lavada e dois pratos, duas facas, três garfos e duas colheres descansavam no escorredor de louças. O pequeno filtro de barro estava do lado direito da pia, ao lado do armário. Abri-o e tirei um copo que um dia contivera requeijão e me servi de água. Voltei ao sofá e esperei por Alice. Ela saiu depois de um tempo, já sem os óculos e com o coque desfeito. Sentou-se ao meu lado e começamos a nos beijar. Minhas mãos passeavam sem rumo por seu corpo, ora se demorando em suas coxas, outras em seus flancos. Senti que elas tremiam sutilmente, apreensivas com o próximo ato. Então, enquanto eu beijava o pescoço de Alice e ela gemia baixinho, decidi agir. Coloquei a mão direita no bolso com cuidado e segurei firme o objeto que eu havia pegado na cozinha. Sem que eu tivesse consciência, a estocada foi certeira. Alice deu um grito e levou as mãos até as minhas. Seu sangue era quente e espesso. Ela ergueu os olhos do ferimento até meu rosto, confusa entre a excitação e a surpresa. Eu sorri e puxei a faca. A perfuração foi um pouco acima do umbigo. Aproveitando que ela estava num torpor, dei mais um golpe, agora diretamente no umbigo. Alice gritou novamente e tentou se proteger em vão. Ela estava tão linda e seus olhos pareciam perguntar por quê.

— Porque assim é muito mais gostoso, minha querida — disse eu respondendo a sua pergunta silenciosa.

E cravei a faca mais fundo em sua barriga. Alice gemeu novamente, mas agora de dor. Seu corpo pendeu para trás, já começando a ficar sem forças. Eu me levantei, deixando-a livre para realizar seus últimos atos em vida. Ela ainda olhava pra mim sem entender, e admito a você que quase cheguei a me arrepender. Eu sabia que uma garota com aquela era difícil de se encontrar, mas o que poderia haver de ser? Lembra-se que eu disse no começo que algo estava faltando? Pois era justamente isso, tirar uma vida. Não há nenhuma sensação no mundo que se compare a essa. Todas as outras se desgastam com o tempo e não fazem mais o mesmo efeito. Matar não, pelo contrário. A satisfação e a plenitude só aumentavam a cada nova vez. É a melhor experiência que você pode ter com outra pessoa. O mais profundo tipo de intimidade possível.

Pois bem, Alice agonizou por mais uns minutos antes de morrer. Acabou ficando com os olhos abertos. Eu os fechei e beijei demoradamente sua testa. Depois deitei seu corpo no sofá e cruzei seus braços na altura do peito. Retirei a faca com cuidado e notei, em meio ao sangue, o seu piercing do umbigo. Apanhei-o e fui até a cozinha para lavá- lo na pia. Iria levá-lo como um pequeno souvenir. Aproveitei e também lavei a faca. Depois voltei até a sala e dei mais uma olhada em Alice. Ela estava tão serena, dormindo tranquilamente o eterno sono. Tirei um lenço do bolso traseiro da calça e o utilizei para abrir a porta, afim de não deixar digitais. Fechei-a com cuidado e parti.

Finis operis, caro leitor. Essa é a história do meu primeiro assassinato. Queria contá-la como forma de um futuro testamento, ou, quem sabe, como material de estudo para quem for analisar o meu caso algum dia. Evoluí muito no meu modus operandi desde então, já são seis anos desde essa primeira morte que impetrei. Porém esse charme e novidade da primeira são únicos. Provavelmente um dia serei pego, leitor. E sofrerei todas as conseqüências, mas hoje apenas quis relembrar daquela que iniciou tudo. Aquela que balançou meu coração e quase me fez desistir antes mesmo de começar. Aquela que ainda lembro e vejo no fundo dos olhos de cada nova vítima. Alice, pois ela foi a minha primeira vítima.

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