![]() O Grande Búfalo Branco
Original:The White Buffalo
Ano:1977•País:EUA Direção:J. Lee Thompson Roteiro:Richard Sale Produção:Pancho Kohner Elenco:Charles Bronson, Will Sampson, Jack Warden, Slim Pickens, Kim Novak, Clint Walker, Stuart Whitman, John Carradine |
por Marcelo Marchi (@marcelomarchi77)
Injustamente rejeitado pelo público quando do seu lançamento, O Grande Búfalo Branco (The White Buffalo, 1977) é um envolvente cruzamento de western, terror e fantasia. Eu até poderia adicionar drama biográfico a essa mistura de gêneros, mas a maneira como a obra coloca duas figuras reais do Velho Oeste americano, o pistoleiro “Wild Bill” Hickok (Charles Bronson) e o chefe dacota Cavalo Louco (Will Sampson), em uma caçada a um mítico e descomunal búfalo branco é nada além de uma licença poética.
E poético é uma palavra que eu considero muito justa para descrever esse filme. O ano era 1977. Conquanto seja inegável o “efeito Tubarão (Jaws, 1975)” impulsionando a produção de mais uma película de homem versus animal, O Grande Búfalo Branco está muito longe de ser apenas um caça-níqueis: ele traz consigo a filosofia do western revisionista, que já havia gerado filmes como Butch Cassidy (Butch Cassidy and the Sundance Kid, 1969), Onde os Homens São Homens (McCabe & Mrs. Miller, 1971) e Mais Forte que a Vingança (Jeremiah Johnson, 1972), e que se tornaria dominante nas décadas seguintes, como comprovam Dança com Lobos (Dances with Wolves, 1990), O Assassinato de Jesse James pelo Covarde Robert Ford (The Assassination of Jesse James by the Coward Robert Ford, 2007) e tantos outros. Duas características do western revisionista são o estudo da “zona cinzenta” que pode existir entre mocinhos e bandidos e a reavaliação do papel dos nativos americanos, não mais retratados como selvagens sanguinários, e sim como indivíduos lutando para preservar sua riquíssima cultura e o território que lhes era de direito.
Inicialmente afirmando que “índio bom é índio morto”, o personagem de Bronson acaba desenvolvendo com o honrado Cavalo Louco uma relação mútua de respeito e admiração, e os dois unem forças na busca pelo búfalo branco. É interessante notar que, aqui, o pragmático homem branco possui uma motivação ainda mais transcendental do que o nativo americano: embora Cavalo Louco deseje caçar o búfalo para que o espírito da filha morta pelo animal possa descansar em paz, trata-se basicamente da boa e velha vingança; já Hickok quer destruir a fera, cujo caminho jamais cruzou, porque ela o assombra em um pesadelo recorrente, no qual ele vislumbra até mesmo onde ocorrerá o confronto final.
Um western revisionista, sim, mas nada ecológico? Afinal, o búfalo em questão é aparentemente o último de sua espécie na região. Porém, talvez o búfalo branco seja uma alegoria do próprio homem branco. Há um momento no filme em que Hickok apresenta a Cavalo Louco uma triste perspectiva: existem centenas de milhares de brancos. Eles não vão parar de chegar. Mais dia, menos dia, os povos originários serão subjugados. Tal como o homem branco, o búfalo branco é imparável, impiedoso, destruidor. Seu avanço modifica o ambiente – por onde ele passa a terra treme, as pedras rolam. É como uma locomotiva, uma máquina (ah, a arte perdida do animatrônico, este, criado pelo mesmo Carlo Rambaldi, que depois desenvolveria o E.T. de Spielberg). O homem branco ameaça Hickok também – sua vida violenta fez dele alguém procurado em todos os cantos, ao ponto de não poder usar seu nome real.
Em um interessante paralelo, Cavalo Louco também perde o direito ao próprio nome. E isso acontece quando o ancião de sua tribo o vê chorando a morte da filha, um comportamento considerado inaceitável em um homem. O que nos leva a perceber que, em determinado nível, O Grande Búfalo Branco é uma história sobre a busca da masculinidade perdida. Os três personagens que caçam a fera passam por situações nesse sentido. O caolho Charlie Zane (Jack Warden) junta-se a Hickok após uma sequência onde ele falha com uma prostituta na “hora H”. Por sua vez, a noite de sexo de Hickok com Poker Jenny (Kim Novak), uma velha amante, não chega a lugar algum, por mais que ela tente. “Venha para o meu conselho”, Hickok convida Cavalo Louco. Uma confraria de homens lutando contra uma criatura muito mais poderosa para tomar dela sua virilidade. E tudo isso diz muito mais sobre 1977 do que sobre 1874.
J. Lee Thompson, um veterano que já havia comandado clássicos como Os Canhões de Navarone (The Guns of Navarone, 1961) e Círculo do Medo (Cape Fear, 1962) – que Martin Scorsese refilmaria em Cabo do Medo (Cape Fear, 1991) -, dirige o filme com domínio completo tanto das cenas externas no Colorado e no Novo México quanto das cenas em estúdio, que adquirem uma atmosfera etérea, onírica, hipnotizante, realçada pela artificialidade da criatura animatrônica. O roteiro de Richard Sale, adaptando seu próprio livro, conserva certo tom literário nos diálogos, mas é algo que funciona, dado o clima de fantasia épica que paira sobre a história.
Assim como o animal que dá título ao filme, O Grande Búfalo Branco é um espécime raro, abatido na época por aqueles que não foram capazes de perceber sua beleza e singularidade. Hoje, cabe a nós preservar sua memória.
Sobre o autor do texto:
Roteirista das séries Boca a Boca (Netflix), Marias (Sony) e Sociedade da Virtude (Max) e do programa Queimando a Língua (Jovem Nerd). É professor da Pós-Graduação em Roteiro Audiovisual do SENAC, além de ministrar os próprios cursos de roteiro para cinema e tv. Estuda o cinema de terror há quase duas décadas e ministrou no MIS em São Paulo os cursos “Desvendando um Subgênero: Slasher Movie” e “25 Anos de A Bruxa de Blair e o Terror Found Footage“