por Roberto de Oliveira
Já eram quatro e meia da madrugada quando Jonas acordou ainda sentindo sono, sentado confortavelmente na poltrona macia do ônibus de viagem que rumava para Londrina, no estado do Paraná. Jonas estava vindo de Curitiba, onde já morava havia algum tempo. Londrina era sua terra natal e estava regressando para visitar seus pais, pois já não os via há um bom tempo, quase dois anos, desde que fora embora para a capital do estado em busca de trabalho e de novos rumos para sua vida. Conseguira um bom emprego, já estava cursando a faculdade de Ciências Sociais e já estava com planos de arranjar namorada para um possível relacionamento sério.
O ano era 1975 e Jonas já estava com 22 anos de idade. Cursando a faculdade há quase um ano e meio, o jovem já se encontrava imbuído de ideais socialistas advindos das teorias de Marx, e apesar de nutrir certa paixão por tais ideias, ainda não se filiara a nenhum partido político e nem se assumiu como militante de esquerda, embora tivesse alguns amigos militantes e filiados a partidos.
Sentindo as pálpebras pesadas, dificilmente ele dormiria como fizera horas atrás, pois por alguma estranha razão, a minúscula lanterna localizada acima do banco de passageiros piscava algumas vezes em ritmo lento, parecendo um vagalume; poderia ser algum fusível defeituoso, porém apenas a lanterna do banco de Jonas que apresentava tal problema. As lanternas dos demais acentos do ônibus permaneciam acesas.
Observando a escuridão pela janela do ônibus, as lembranças passavam em sua mente como um filme – lembranças da infância em Londrina, brincadeiras com os amigos na escola ou nas ruas do bairro em que morava. Jogava bola em um campo gramado quase todas as tardes com a turma de meninos da vizinhança; também lembrava-se do primeiro beijo que dera na menina que gostava. Beijo singelo no rosto, mas que despertou a primeira paixão no coração do menino. As agradáveis lembranças passavam pela mente do jovem, tal como as paisagens passavam pela janela do ônibus, iluminada por tímidos raios do sol nascente que anunciava o raiar do dia.
Já eram quase 6 horas e Jonas já se espreguiçava na confortável poltrona do ônibus, esticando os braços e bocejando longamente. O ônibus já estava a poucos quilômetros da rodoviária e os demais passageiros começaram a despertar e preparar-se para o desembarque. A cidade já se encontrava desperta, pois o tráfego de automóveis já era intenso nas principais vias urbanas próximas ao centro.
Por volta de 6h30 o ônibus chegava à rodoviária e, dentro de poucos minutos, os passageiros desembarcavam a passos meio lentos e formavam fila defronte ao gigantesco porta-malas do ônibus a fim de pegarem suas respectivas bagagens.
Após retirar suas malas, Jonas dirigiu-se ao ponto de taxi mais próximo, pois queria chegar rápido à casa de seus pais. A maioria dos táxis já havia saído levando os passageiros recém-chegados aos seus respectivos destinos. Quando Jonas dirigia-se para um táxi que ainda se encontrava no ponto, um corcel amarelo com placa de táxi estacionou próximo a ele, prontificando a oferecer-lhe o transporte.
– Bom dia jovem. Esta precisando de transporte? – perguntou educadamente o taxista ao estacionar próximo à calçada onde Jonas caminhava.
— Bom dia! Sim, preciso de transporte. — respondeu Jonas cordialmente com um leve sorriso.
O taxista então desceu do carro e dirigiu-se à parte traseira do veiculo para abrir o bagageiro. Após adentrar o automóvel e assentar-se no banco traseiro, Jonas disse ao motorista que o levasse à Vila Nova, bairro onde seus pais moram e onde ele cresceu.
— Você é daqui de Londrina? — perguntou o taxista.
— Sim, nasci e cresci aqui, mas atualmente moro em Curitiba. — Respondeu Jonas. — Nasci aqui e passei a infância na Vila Nova. — completou o jovem.
— Que legal, garoto! Eu nasci e cresci em Curitiba, mas encontrei meu caminho em Londrina; me sinto melhor aqui. Sou taxista há 5 anos, mas já fiz outros trabalhos anteriormente. Já estou aqui há 9 anos.
— Hum, legal! Deve ser muito bom encontrar o próprio caminho em outra cidade. Estou gostando muito de Curitiba, mas não tenho certeza se vou ficar lá para sempre.— disse Jonas.
— Vou ter que pegar um cliente que irá para a mesma região que você. — disse o taxista um pouco antes de virar a uma rua à direita. Ao passar em frente a uma praça pública, o taxista estacionou o veiculo próximo à calçada onde se encontrava um homem vestindo terno preto e segurando uma pequena maleta nas mãos.
O taxista percorreu mais algumas quadras enquanto o passageiro permanecia calado, sentado ao lado de Jonas. O homem misterioso era careca e utilizava óculos escuros, o que reforçava sua aparência soturna e causava um certo desconforto em Jonas, que procurava olhar um pouco mais para a paisagem externa, o que o fazia relembrar da infância e lhe proporcionava agradável distração.
O jovem talvez não tivesse percebido, mas o caminho estava bem diferente, pois a partir do local onde o taxista recolheu o novo passageiro, a rota não o levaria até a Vila Nova, seu antigo local de moradia. Olhando a paisagem que passava pela janela do carro, Jonas “viajava” cada vez mais para o passado puro e alegre de sua infância.
Dificilmente ela estranharia a mudança da rota, pois nunca andara de táxi em Londrina, apenas de ônibus no decorrer de sua infância e adolescência. O taxi percorrera cerca de 2 quilômetros a partir do ultimo ponto e antes que Jonas pudesse perceber que a nova rota não o levaria até o seu destino, algo inesperado aconteceu; um lenço umedecido em alguma substancia entorpecente envolveu rapidamente sua boca e nariz sufocando-o; a mão firme do novo passageiro atacou o rosto de Jonas e agilmente um braço também firme abraçou fortemente o seu pescoço para que ele não tentasse nenhuma reação.
O jovem sentiu seus músculos relaxarem em questão de segundos; seu coração a principio acelerou, mas logo assumiu um ritmo cadenciado e lento; suas pálpebras pesaram e seu corpo todo esmoreceu… não havia reação… nem tempo… nem pensamento… seus olhos fecharam.
Um balde despejava água fria na cabeça de um jovem desacordado… outro balde de água fria e Jonas despertou sentindo a água entrar em suas narinas e invadir suas vias respiratórias; acordou tossindo quase engasgando. As pálpebras pesavam e sua visão estava bem turva, bastante embassada pela água e pelo forçado despertar.
A visão aos poucos foi se delineando e ganhando forma. Havia dois homens de frente para ele; o homem calvo sentado em uma cadeira, usando terno preto e óculos escuros, o encarava; mais ao fundo, o motorista de táxi também o olhava. Jonas estava com as mãos amarradas e sentado em uma cadeira. Seus pés estavam amarrados por cordas na cadeira, para que não tentasse se levantar.
— Olá senhor Jonas Carneiro da Silva. Como se sente? — perguntou o homem de terno preto.
Após sacudir a cabeça e piscar os olhos repetidas vezes, Jonas perguntou gaguejando e um tanto assustado:
— Que-que quem são vocês? O q.. querem?
— Queremos apenas fazer algumas perguntas, garoto. Tudo o que você tem a fazer é colaborar. Responda tudo o que este homem lhe perguntar. É sério filho, colabore e tudo ficará bem. — disse o taxista aparentando calma e serenidade.
—Senhor Jonas, diga-me: quem é Carlos Vitor de Souza? Você o conhece? — perguntou o homem de terno.
— Si-si sim, eu conheço. Por quê? — disse Jonas, bastante assustado.
— Sabemos que ele é militante de esquerda e tem fortes ligações com algumas pessoas que organizam protestos em Curitiba. O que você pode nos dizer a respeito, senhor Jonas?
— Nã-nã não sei de nada, apenas somos colegas de estudo.
— Mesmo? — questionou o homem e em seguida deu uma ordem: “Taxista”.
Ouviu-se um som proveniente de eletricidade e Jonas sentiu seus músculos se contraírem forçadamente e um estremecimento percorrer-lhe todo o corpo. Ele estava sem camisa e havia eletrodos grudados em seu peito nu, transmitindo uma carga de corrente elétrica para o seu corpo, fazendo o jovem experimentar uma sensação agonizante que pareceu uma eternidade, mas que durou apenas 10 segundos. De repente cessou o tenebroso ruído de corrente elétrica e o jovem experimentou uma sensação de alívio… mas por quanto tempo?
Olhos fortemente fechados por alguns segundos… abriram-se repentinamente, arregalados, após o jovem sentir uma mão em seu ombro direito. Uma voz já familiar lhe disse:
— Filho, faça conforme está sendo pedido. Colabore! — disse o taxista ao assustado jovem que respirava fundo e começava a suar friamente, sentindo um calor crescente de dentro para fora.
— Retomemos o assunto então… agora diga, Jonas, o que sabe exatamente sobre o seu amigo Carlos Vitor de Souza? — o homem de terno preto continuava com o interrogatório.
—E-e-eu o conheço háa-apenas seis meses. So-somos colegas d-de faculdade. Ma-ma-mas eu não tenho participação em nenhum grupo político; ape-apenas co-compartilhamos conhecimento. — Respondeu o assustado rapaz, tremendo como uma vara verde e ainda suando.
— Devo lhe advertir senhor Jonas, que sabemos que seu amigo Carlos é um convicto militante de esquerda e pode ter fortes ligações com lideres de grupos de esquerda que estamos rastreando. Você provavelmente conhece outras pessoas ligadas à seu amigo Carlos. Entregue-me os nomes e nada acontecerá à você.
— No-no-nomes? Como assim? Nã-nã-Não sei nome de ma-mais ninguém. Já di-disse, não estou seguindo lado nenhum. — respondeu o assustado jovem.
— Taxista, aumente um pouco voltagem. — após a ordem do misterioso homem, o motorista de táxi ampliou um pouco a voltagem do aparelho, o qual estava ligado ao peito de Jonas por meio de alguns fios.
— Então Senhor Jonas, não vai mesmo me dizer os nomes?— perguntou o homem de preto.
— Já di-disse que não sei de no-nome algum.
Alguns segundos de silêncio…
— Taxista! — O substantivo soou como uma ordem e fez-se ouvir um forte e irritante som de corrente elétrica. Mais uma vez músculos se contorciam enquanto uma coluna vertebral se esticava e um corpo jovem se debatia em meio a espasmos agonizantes… a voz não saia e os olhos pareciam querer olhar para o interior das cavidades cranianas… tremedeira e espasmos que pareciam não ter fim… o som de eletricidade cessou de repente e um rapaz molhado de suor respirava profundamente e com toda a intensidade de seus pulmões. Seus batimentos cardíacos tinham um ritmo acelerado, e ele parecia sentir a pulsação por todo o seu corpo.
— Como pode ver, senhor Jonas, podemos continuar esse interrogatório o dia inteiro, pois eu dependo de suas respostas. — disse friamente o estranho homem. E prosseguiu. — Eu sei que Carlos Vitor de Souza troca correspondências com militantes do estado de São Paulo e até mesmo de Brasília. Dissemina idéias esquerdistas em seu meio social, e principalmente entre vocês, colegas de faculdade. Saiba jovem tolo, que neste momento em outras partes deste estado, provavelmente outros de seus amigos estão passando por este mesmo interrogatório. Isso significa que você não esta só. Portanto, colabore respondendo minhas perguntas e então, eu solto você para que possa voltar para os seus pais e tudo ficará bem.
Com a respiração ofegante e o corpo molhado de água e suor, Jonas mal tinha tempo de pensar. Seu cérebro parecia incapaz de processar informações precisas, mesmo as mais básicas. Abriu os olhos devagar e piscando levemente, pois permanecera com os olhos fechados após o último eletro-choque. A imagem de Carlos, seu colega de faculdade e militante de esquerda, lhe veio à mente e por um momento sentiu vontade de maldizer o colega, xingá-lo em voz alta, porem o fez apenas em pensamento. “Maldita hora e maldito dia em que fui apresentado à ele”, pensou Jonas. Tudo foi há apenas seis meses e embora compartilhassem ideias semelhantes à respeito da política do país ou de ideais políticos, Jonas não era um militante de esquerda.
Considerava-se simpatizante, pois o contato com a sociologia e o pensamento de Marx a respeito da luta de classes era algo difícil de desvencilhar e de não se identificar. Afinal teses que falam diretamente aos anseios de igualdade e liberdade para uma sociedade mais justa seduzem qualquer estudante universitário, desde que este seja imbuído de sonhos e ideais que aspirem ao bem estar da sofrida população.
Jonas olhava para cima em direção ao teto. Percebeu que era uma sala grande e bem iluminada. Olhou em volta e viu algumas caixas de madeira empilhadas num canto e uma velha mesa de madeira em outro canto. De um modo geral, a sala parecia ser um antigo local vazio, abandonado. O homem misterioso estava em pé, fumando um cigarro, exalando baforadas de fumaça pela boca, descontraidamente. Olhava em volta ou para baixo e dava pequenos passos em um chão empoeirado. Parecia estar num momento de relaxamento; logo jogou no chão o cigarro que já estava fumado pela metade e o pisoteou. Voltou-se para Jonas, sentou na cadeira defronte ao rapaz para, então, prosseguir com o interrogatório. O motorista de táxi estava logo atrás de Jonas, no mesmo local.
—Então, temos um futuro sociólogo, hein?! Certamente é um entusiasta ou amante das ideias libertárias de Marx, certo senhor Jonas?— disse o homem misterioso ao pobre rapaz, que após ouvir isso sentiu uma “faísca” de raiva ascender em sua mente, tal o sarcasmo expresso pelas palavras de seu interlocutor.
—Você poderá ser um bom sociólogo, embora talvez isso não lhe dê muito dinheiro. Já o seu amigo Carlos talvez não tenha essa chance. — A frase soou como uma sentença, num típico tom de frieza. E Jonas respirou fundo. Sentia aquela “faísca” crescer por dentro… parecia queimar-lhe o peito. O motorista do táxi observava com certa apreensão e parecia um pouco preocupado, embora procurasse disfarçar.
— Pode me dar 1 minuto para falar um pouco com o rapaz? — o taxista interveio de forma até surpreendente. — Prometo que serei rápido! – concluiu.
— Ok taxista, vou aceitar a sua ajuda, afinal você tem sido útil até aqui. Pode falar com ele, te concedo 2 minutos até. Espero que me surpreenda. — o homem misterioso concordou e afastou-se um pouco do local para fumar mais um cigarro, que ele logo foi acendendo, enquanto o taxista sentou-se na cadeira pra conversar com o rapaz.
— Jonas, o que você realmente sabe sobre o seu colega Carlos? O que você souber diga à este homem. Tente não complicar as coisas! — disse o taxista demonstrando certa preocupação para com o abatido rapaz.
—Po-por que você também ta-tám-m-me perguntado isso? Eu nã-não sei nada sobre alguma ligação do Carlos co-comlíderes de partidos. Não vou dizer o q-q-que não sei.— disse Jonas ainda gaguejando.
— Garoto, não dificulte ainda mais a situação! Você viu o modo como aquele homem fala e olha para você, sem nenhuma piedade? Ele é um torturador e não vai terminar essa conversa enquanto você não disser algo que o satisfaça.
— Po-porqueta-tá preocupado co-comigo? Vo-você deve estar s-s-sendo pago p-p-pra fazer este trabalho sujo, não é? Tá com medo de não receber?
— Não é isso rapaz, estou tentando te ajudar a facilitar as coisas, entende? Posso não ser nenhum santo… faço meus trambiques, mas nunca machuquei e nem matei ninguém.
— Tá com medo de pegar uma pena pesada, ca-caso vá pra cadeia, não é? — Jonas o questionou com certa irritação e sentindo uma ardência crescente em seu peito.
— Entendo que está com bastante raiva agora… mas peço que colabore.— disse o taxista olhando nos olhos do jovem, sentindo-se um tanto compadecido pelo sofrimento de Jonas – o taxista baixou o olhar levemente para baixo e para esquerda com expressão séria e um tanto triste, talvez ostentando uma ponta de arrependimento. Concluiu dizendo um pouco hesitante: — Eu lamento… Jonas.
— Não lamenta, não! – respondeu Jonas, de maneira convicta e até surpreendente.
Passaram-se os dois minutos estipulados pelo torturador. O taxista voltou para o equipamento de eletrochoque, enquanto o torturador expelia uma última baforada de fumaça pela boca, e jogava uma bituca de cigarro no chão, pisoteando novamente para apagar a brasa. Depois caminhou lentamente na direção de Jonas, ajeitou a cadeira e sentou-se novamente diante do pobre rapaz para, então, dar prosseguimento ao interrogatório.
Jonas estava cabisbaixo, respirava normalmente e já não estava com a tremedeira de antes.
—Muito bem, Senhor Jonas. Eu presumo que o taxista tenha conseguido alguma informação valiosa de sua parte. Fique à vontade para me contar.
Jonas respirou fundo, ainda sentindo o leve ardor no peito. — Eu diria tudo se soubesse mesmo de algo, mas sei que mesmo assim vocês poderiam me matar.
— Não estou aqui para matar ninguém, senhor Jonas. Mortos não dão informação. E você deve apenas dizer o que certamente sabe, pois você já nos confirmou que é amigo de Carlos Vitor de Souza. Amigos normalmente sabem das atividades um do outro, principalmente quando são colegas de estudo.
— Que Carlos é militante de esquerda eu sei e todos sabem. Mas eu não sou militante, não me filiei a grupo nenhum, e mesmo que você me torture o dia inteiro, eu não vou confirmar o que não é verdade.— concluiu Jonas de forma resoluta.
— O que você puder nos dizer, logo saberemos. Taxista!— após a ordem, o motorista de táxi ligou o equipamento erguendo para cima a chave margirius, à qual constitui de uma pequena alavanca; após ligá-la, girou levemente um grande botão que regulava a voltagem do aparelho que era mostrada em um visor contendo um ponteiro e as indicações de voltagem, que naquele momento indicavam 150 volts.
Jonas novamente sentia a corrente elétrica percorrer-lhe o corpo e provocar-lhe incômoda tremedeira… de olhos fechados ele passou a respirar fundo, concentrando-se no ato da respiração; o ardor no peito aumentava à medida em que se concentrava na respiração. Apesar da agonia do choque elétrico, a sensação de calor no peito parecia lhe proporcionar um certo conforto, uma certa segurança. Era uma sensação diferente.
A mão do taxista desligou a chave do equipamento a pedido do torturador, pois este lhe acenara com a mão. A tremedeira de Jonas cessou… o calor do peito se estendia até a barriga do jovem. Uma sensação térmica que lhe parecia boa e o rapaz sentia menos agonia do que antes. Algo diferente estava acontecendo! De repente o zunido de corrente elétrica parou, pois o equipamento foi desligado e o rapaz já respirava mais aliviado ainda que sob o olhar frio do torturador. Jonas continuava respirando fundo e permanecia de olhos fechados.
Sentindo o suor frio escorrendo-lhe por todo o corpo, Jonas respirava fundo ainda sentindo alivio proporcionado pelo calor que já estendia para o seu ventre e lhe proporcionava a inexplicável sensação agradável de segurança – ele desejava sinceramente essa sensação em todo o seu corpo, não queria que parasse, de algum modo tinha de continuar… mas aquilo estava sendo provocado pelo eletrochoque?! Embora fosse agradável a sensação, era assustador pensar que fosse desencadeada pela corrente elétrica, afinal, pela lógica qualquer pessoa ou qualquer ser vivo ficaria abalado e traumatizado após receber várias e desagradáveis descargas de choque elétrico não importa qual fosse a tensão ou voltagem.
O jovem respirava com menos profundidade, pois já não sentia tanta aflição, apenas uma leve tremedeira manifestada em pequenos espasmos devido aos efeitos do eletrochoque. Seu corpo estava completamente suado de modo que suas calças até se umedeceram tamanho o suor escorrido. Entretanto, sentia sua mente calma e a visão já ficava menos turva, pois enxergava claramente seus algozes interlocutores, principalmente o homem careca vestindo terno preto que já acendera outro cigarro enquanto aguardava alguma resposta de Jonas.
Jonas permanecia tranquilo, mesmo continuando amarrado à uma cadeira e com eletrodos grudados em seu peito para receber eletrochoque… e não deixava de ser assustador o fato de permanecer tranquilo em tal situação, após receber varias descargas elétricas e ter experimentado momentos agonizantes. Afinal não havia nenhuma resposta precisa para esse estranho conforto que sentia e parecia crescer cada vez mais em seu interior. Ele já nem conseguia pensar em nada que fosse pior do que a agonia que já havia sentido momentos antes, mesmo sabendo que provavelmente o pior ainda aconteceria, pois teoricamente não havia como escapar, a menos que alguém curioso o suficiente passando por aquele local isolado os encontrassem e num ato de muita coragem enfrentasse os dois algozes e libertasse Jonas, talvez a polícia de algum modo pudesse chegar seguindo alguma pista muito sutil, mas tal ideia acabava se tornando mera divagação. Crimes de tortura demoram a ser descobertos, se realmente forem descobertos.
Enquanto o jovem permanecia imerso em divagações, o homem de preto já havia se levantado, e andando pela sala em círculos um tanto preocupado e pensativo enquanto seu cigarro aceso exalava fumaça que deixava o ambiente um tanto enevoado, tal como as divagações de Jonas ou olhar preocupado do taxista que já se encontrava bastante cansado pela situação.
O homem misterioso após muito pensar, foi caminhando lentamente na direção do taxista e ao se aproximar começou a conversar com ele em voz baixa, parecendo murmurar algo que Jonas não podia ouvir. O jovem ficou observando os dois, mas ainda imerso em alguns pensamentos e lembranças agradáveis. Entretanto, preocupava-lhe a questão de que provavelmente Carlos, seu amigo e colega de faculdade, estivesse também em sérios apuros tanto quanto ele, e ainda com a vida em jogo, bem como seus outros colegas que tinham algum envolvimento com ideais socialistas.
Terminada a conversa, o homem misterioso se afastou lentamente já acendendo outro cigarro e posicionou-se de costas para o taxista e também para Jonas, ficando de frente para uma parede – parecia estar esperando, mas… pelo que?! O taxista ficou por um instante cabisbaixo, parecia um pouco triste embora compenetrado com as mãos postas sobre o equipamento de voltagem – com a mão esquerda o taxista girou lentamente o botão que aumentava a voltagem e o ponteiro preto alcançou o numero 200. O aparelho emitia um zumbido que era um tanto alto devido ao silencio do local.
Jonas notou que logo receberia outra descarga elétrica em seu corpo e embora ainda estivesse sentindo o estranho conforto que se apossara de seu ser ao longo de todo esse tempo, ele temia pelo que viria a seguir – provavelmente a intensidade do eletrochoque, agora seria maior… o taxista fechou os olhos, suspirou fundo… Jonas também fechava os olhos com a intenção de concentrar-se e começou a respirar fundo… e com a mão direita o taxista ligou a chave margirius…
O som perturbador da corrente elétrica mais uma vez tomava conta do ambiente enquanto o corpo de um jovem amarrado numa cadeira estremecia completamente numa agonia infinita, sentindo seus músculos se retesarem freneticamente. Mesmo em tamanha agonia, Jonas respirava fundo e concentrava-se cada vez mais em sua respiração, procurando ouvir o som do ar sendo inalado e exalado de suas vias respiratórias embora isto parecesse impossível, mas… parecia funcionar, pois a sensação confortante de calor em seu peito aumentava e ele sentia intensamente a energia que se apossava de seu ser e agora parecia fluir em suas veias.
De repente, o eletrodo grudado no lado esquerdo de seu peito soltou uma faísca e se desprendeu caindo ao chão. O taxista percebeu a faísca, enquanto que o homem misterioso apenas olhava para baixo exalando a fumaça do cigarro que fumava. Após o eletrodo cair, o taxista desligou o equipamento e Jonas imediatamente sentia espasmos musculares para logo depois, começar a relaxar e respirar fundo. Sentia uma leve ardência no local onde estava o eletrodo que se soltou e uma ótima sensação em seu interior proveniente daquela agradável onda de calor que agora se apossava de todo o seu corpo. Lentamente abriu os olhos sentindo-se renovado e enxergando claramente seus algozes.
Além da boa sensação, o jovem sentia uma energia em seus músculos como se estivesse pronto para alguma luta. Sentia-se preparado para enfrentar algo, embora estivesse sentado a uma cadeira com seus pulsos muito bem amarrados. Nesse momento Jonas encarava seus algozes com muita segurança, e o homem misterioso percebeu tal segurança em seu olhar, embora não fizesse a menor ideia do que estava se passando com o jovem, mas ele percebera que seria muito mais difícil de obter alguma informação segura naquele momento.
O homem misterioso fitou os olhos de Jonas e o que viu, foi um jovem que parecia muito bem e até revigorado de certo modo, mas… pelo que exatamente? Pela corrente elétrica de 200 volts que percorrera seu corpo e que seria mais que suficiente para mata-lo? A expressão do algoz era sempre séria e indiferente, mas a frustração que sentia em seu intimo era obvia e embora não transparecesse, ele teve até a impressão de que Jonas foi capaz de perceber isto ao fitar o seu olhar.
Tomado por um misto de frustração e raiva, o misterioso sentia uma grande vontade de revidar ainda que isso talvez não resolvesse muita coisa e o jovem não lhe passasse a informação de que precisasse. Ajeitando seus óculos que mais pareciam uma máscara, voltou-se para o taxista e lhe disse algo em voz baixa. Jonas percebeu algo estranho na expressão do taxista, pois seu rosto empalideceu de repente e ele ficou um tanto quanto sem jeito, meio cabisbaixo. O taxista olhou por sobre o ombro direito e observou seu contratante misterioso que mantinha a expressão dura e impassível, aguardando o cumprimento da ordem que fora dada.
Ainda cabisbaixo, o taxista fechou os olhos por alguns segundos após ligar a chave margirus, e o zunido da corrente elétrica fazia-se ouvir no ambiente silencioso. Ao abrir os olhos, fitou Jonas e aos poucos foi girando o botão que aumentava a voltagem, primeiro o ponteiro apontava para 200… a corrente já percorria o corpo de Jonas provocando-lhe estremecimentos… após 3 segundos aproximadamente, o taxista ajustou o ponteiro para 300 – Jonas respirava fundo concentrando-se e sentindo o calor reconfortante em seu peito e em seu ventre crescendo em seu interior… após 5 segundos controlando a hesitação, o taxista girou totalmente o botão e o ponteiro atingia a numeração máxima… 500 volts, o jovem respirava profundamente enquanto seu corpo estremecia freneticamente… cerca de 1 minuto ele ficou estremecendo, mas ainda respirando profundamente. Aos poucos o estremecimento pareceu diminuir… e realmente diminuía.
Após 30 segundos aproximadamente o estremecimento cessou para o espanto dos dois algozes que se entreolharam sem entender o que acontecia, pois Jonas respirava profundamente. O aparelho parecia zunir mais alto, e Jonas apresentava um estranho estado de tranquilidade… alguma coisa muito incomum acontecia, como se o seu corpo tivesse absorvido a eletricidade naquele momento a ponto de se estabilizar e não apresentar nenhuma reação contraria ao eletrochoque, pois conseguiu conter a tremedeira.
A lâmpada que iluminava o ambiente apresentava variação enquanto o aparelho zunia cada vez mais até apresentar um estalo em seu interior, sinal de que alguma coisa havia se rompido, o que deixava os algozes ainda espantados e agora impressionados. A luminosidade foi aumentando e em segundos tornara-se intensa… assustadoramente intensa de modo que os dois homens olhavam impressionados e sem nada dizer, pois não cabiam palavras naquele momento. Até que repentinamente… a lâmpada explodiu, dezenas de minúsculos cacos de vidro espalhavam-se pelo ar e o taxista soltou um grito de dor, pois alguns cacos de vidro atingiram um de seus olhos e ele não desviou a tempo ; o homem misterioso não fora atingido nos olhos já que não tirava os óculos em hipótese alguma, mas alguns cacos lhe fizeram pequenos cortes no rosto.
Jonas sentia uma poderosa energia fluindo de seu interior à medida em que respirava fundo e se concentrava. Sentia que poderia canalizar essa energia e direcioná-la externamente, pois estava claro que o dano causado no equipamento de eletrochoque e a explosão da lâmpada eram manifestações dessa energia. Agora ele precisava descobrir um meio de se libertar da corda que prendia fortemente seus pulsos – instintivamente o jovem começou a esfregar os pulsos provocando um atrito na corda. Sentiu seus pulsos se aquecerem rapidamente e não era apenas pelo movimento frenético que fazia para tentar se libertar – a energia estava sendo canalizada e o calor crescente passava de seus pulsos para a corda que começou a desfiar aos poucos e o jovem logo sentiu uma dor de queimadura nos pulsos e um cheiro de queimado. A corda incendiou e logo caiu ao chão ainda queimando e a queimadura do pulso o jovem conseguia suportar não esboçando grandes reações.
Jonas levantou e antes que pudesse respirar aliviado jogou-se rapidamente ao chão para desviar-se de tiros… o homem misterioso sacara de uma arma que ele trazia escondida em algum bolso interno de seu paletó e agora tentava matar o jovem pois seus planos para extrair de Jonas as informações de que precisava, sem dúvida falharam.
Dois tiros foram disparados pela arma do homem misterioso e quando seu dedo indicador já ia pressionar o gatilho para o terceiro tiro, o taxista saltou sobre ele e ambos rolaram no chão numa desesperada luta corporal. Segurando fortemente a pistola o homem misterioso tentava desesperadamente apontar o cano em direção ao peito do oponente a fim de desferir um tiro para coloca-lo fora de ação – o taxista segurava com muita firmeza o pulso do oponente a fim de contê-lo e parecia nem sentir dor em seu olho ferido, tamanha sua concentração e esforço para se defender do adversário.
Rolaram no chão uma, duas, três vezes… e o taxista valendo-se de seu porte físico que lhe conferia maior força que o oponente, achava-se em boa vantagem estando por cima do adversário até que um ouviu-se um tiro… seguido de um pequeno grito de dor, pois um tiro atingiu o taxista de raspão na orelha arrancando-lhe um pequeno pedaço de cartilagem, o que causava uma dor irritante. Levando a mão à orelha, largou o pulso do adversário e rolou para o lado gemendo de dor. O homem misterioso refazendo-se aos poucos da luta, levantou-se o mais rápido que pôde segurando firmemente a arma e observando o taxista agonizar.
— Muito bem! Nada mal para um motorista de taxi. Mas não se preocupe, não vou matá-lo. Apesar do seu atrevimento você tem sido muito útil e ainda vai me levar de volta para o aeroporto e, é claro receber sua grana pelo serviço.
— Vá para o inferno!— disse o taxista. — posso não ser nenhum santo, pois já fiz e faço muitas coisas erradas na vida, mas nunca torturei ninguém e não sou um assassino.
— Ora, ora! Deixemos a suposta moralidade de lado e vamos nos ater à realidade, motorista. Afinal, você faz o seu trabalho sujo e eu faço o meu. E o meu trabalho agora é dar cabo da vida deste jovem que diz não saber de nada! — Após dizer isso recarregou a arma.
— Me procurando? — Disse o jovem que agora já não demonstrava o menor sinal de medo. Ao virar-se para o lado esquerdo, de onde ouviu a voz, o homem misterioso com um certo espanto deparou-se com um Jonas bastante seguro e confiante, de olhar firme e destemido.
— Hum, aí esta você que diz não saber de nada! — disse o homem misterioso tentando disfarçar a surpresa ao ver o jovem ostentando certa calma e encarando-lhe diretamente nos olhos. Apontou a arma em direção ao rosto de Jonas para então cumprir o veredito que acabara de dizer segundos antes.
— De agora em diante, meu caro e imbecil jovem, você realmente não saberá de mais nada, já que assim deseja.
Subitamente, Jonas segurou tocou o cano da arma e a apontou para o lado, fora do rumo de sua cabeça.
—De agora em diante, meu caro algoz, você provará a agonia que eu senti ali naquela cadeira.— disse Jonas com uma confiança e coragem que nunca experimentara anteriormente. E antes que o algoz pudesse tentar mais alguma reação, sentiu um leve tremor na mão… aos poucos o tremor foi tomando conta de seu braço… e de seu tronco… e do restante do corpo… uma tremedeira agonizante se apossou do corpo. Uma forte corrente elétrica percorria seus músculos e veias, e a intensidade aumentava cada vez mais tornando-se insuportável de modo que o homem revirou os olhos e podia-se ver a parte da branca de seu globo ocular após seus óculos terem caído ao chão.
Sentindo as pernas bambas pela extrema tremedeira provocada pelo eletrochoque, o homem caiu de joelhos enquanto Jonas segurava o cano da arma que até já soltava uma leve fumaça devido ao aquecimento. Após um ultimo espasmo o homem cai ao chão sem vida e bate rosto no chão frio de modo a se ouvir um baque. A arma parecia colada à sua mão que já ostentava queimaduras em seus dedos e dois filetes de sangue escorriam de suas narinas.
O taxista permanecia em silêncio e perplexo pelo horrenda cena que acabara de presenciar. Jonas caminhou em sua direção e curvando levemente o corpo estendeu-lhe a mão para ajuda-lo a se levantar.
— O que foi isso? Que coisa é essa que você tem capaz de produzir choque? — Perguntou o taxista um tanto assustado.
— Nem eu sei. Só sei que a partir de hoje minha vida não será mais a mesma.— disse Jonas olhando para as mãos, e na sua mão direita havia marcas de queimadura nos dedos devido ao aquecimento do cano da arma que ele havia segurado. O jovem estava tão perplexo quanto o taxista, por ter descoberto o estranho dom que salvara sua vida e dali para frente mudaria sua ótica sobre a realidade.
— Sinto muito por ter lhe feito passar por tudo isso garoto. Você tem todo direito de se vingar ou me entregar para a polícia se quiser, e eu não vou resistir e nem fugir.
— Não se preocupe, eu não farei isso não. E de certo modo você é quem salvou a minha vida. Afinal você entrou em confronto com esse homem enquanto eu tive tempo de me libertar e eu até poderia ter fugido se quisesse. O que aconteceu aqui vai ficar entre nós, eu não direi nada a ninguém e acredito que você também não dirá, pois muitos pensarão que somos loucos e assassinos.
Meia hora mais tarde Jonas e o taxista já estavam longe dali. O jovem aceitou uma carona, mas não exatamente para sua casa. Ele teria que decidir quando visitaria seus pais e o que fazer de sua vida dali para frente, pois devido aos estranhos acontecimentos sua vida virara pelo avesso e possivelmente ele poderia ser perseguido por outros homens misteriosos querendo interroga-lo a respeito de suas escolhas politicas — e Jonas já não sabia se Carlos Vitor de Souza e seus outros amigos estavam vivos. A vida social de Jonas Carneiro da Silva após seu retorno à sua cidade natal seria o contrário de tudo o que ele idealizou e construiu até então.
— Adeus taxista, e obrigado por me ajudar. Não somos amigos, mas lhe agradeço por ter me ajudado. Espero sinceramente que você não volte a cometer delitos e prossiga sua vida de modo normal, atrás do volante de seu taxi. — Disse o jovem com gratidão sincera e não demonstrando nenhum rancor do motorista.
— Adeus jovem e obrigado pela confiança que me deposita agora. Prometo que vou sim mudar de vida e apenas dirigir meu taxi e procurar trabalhos honestos, pois hoje descobri o quanto estou cansado por ter me sujado em trabalhos que poderiam ter custado a minha vida. Muito obrigado. Você, apesar de muito jovem já é um grande homem. — disse o taxista um tanto consternado, mas aliviado por ambos estarem a salvo da loucura paranormal que experimentaram.
Um aperto de mão selou a despedida. O taxista e o jovem estudante seguiriam seus respectivos caminhos. Jonas sentia profundo alivio, mas também grande preocupação pelo estranho poder que despertara de seu interior, pois não sabia se conseguiria controlar para sempre tal habilidade e se isso lhe faria algum mal futuramente.
No local onde tudo aconteceu, jazia o corpo do homem misterioso, eletrocutado de forma um tanto misteriosa. Em algum momento as autoridades chegariam ao local e futuramente constaria em alguma pasta de arquivos secretos, uma missão fracassada sob circunstâncias misteriosas, encerrada de forma subjetiva com um fino véu de sobrenaturalidade no chão frio daquele porão.